Olhares

Um desintegrado lastro humano

Por Fabrício Brandão

Desenho: Re

Os dias caminham sobre o imenso território do planeta. Vez por outra, estamos inebriados ao ingerirmos, muito sem querer, doses cavalares de realidade. E a pergunta fica: alguém de fato encontra completude diante da incessante rotina do real?

De um lado, o que vemos e tomamos como coisa viva e presente na lonjura do tempo. Do outro, as construções internas reivindicando espaços libertários de representação. No consumo diário das cápsulas da realidade, alguém sempre encontra espaço para modificar a tônica ensaiada das coisas. E quando o livre universo da abstração adentra uma janela de nossa frágil casa, ali, na porta dos fundos, foge exasperada a banal figura de um olhar domesticado das coisas.

Definitivamente, não somos animais feitos para acostumar as horas. Podemos até, com certa frequência, negligenciar a face do inconformismo e postularmos alguma espécie de acomodação do olhar. Mas chega um momento em que isso não se torna mais possível, pois há chamados apontando rumos nada cartesianos, nos quais tempo e espaço são elementos nem um pouco mensuráveis sob aspectos de quantificação aparente.

A valoração íntima do modo como cada pessoa vislumbra as nuances do mundo alveja diretamente alguns lancinantes cenários. São recortes da existência a nos provar que é possível ressignificar a vida em grande parte. É o que tenciona a artista plástica Re, quando faz da sua arte um mergulho constante no território complexo e misterioso da introspecção.

Ao nos mostrar seus desenhos, Re põe em evidência uma espécie de desconstrução das formas tradicionais. As paisagens humanas por ela visitadas são o reflexo de um universo pessoal de abordagens, filtros de um olhar que expõe em certa medida o caráter maculado das nossas humanidades.

Desenho: Re

Seja na deformação de corpos, na utilização de sutis recursos irônicos ou na acidez crítica dos contextos, a desenhista invoca a urgência fragmentária das identidades mundanas. Trata-se de um vasto painel de sombras duma consciência dispersa por entre os vãos das desventuras dos homens, suas escolhas, bem como o idioma dos equívocos nossos de cada dia.

Mas eis que há a palpável constatação de que mergulhamos no fosso abissal da chamada pós-modernidade. Nesse contexto largamente indefinido pela fluidez das identidades e, sobretudo, pela ausência de um sujeito único e assentado numa zona de segurança, é que percebemos a contribuição da artista no que se refere ao desafio de pensar o estado atual das coisas às quais estamos submetidos.

Re é na verdade a persona artística de Renata Lisboa, trans, paulista, estudante de arquitetura, um alguém que vai moldando sua identidade em meio ao fluxo de alumbramentos inquietantes. Sua jovem idade (19 anos) é inversamente proporcional à promissora capacidade que possui de pôr em xeque através de sua obra a fixação de qualquer verdade universal.

Transitando entre o niilismo e o pessimismo, a artista confessa que suas inspirações vêm de nomes como os de Tim Burton, Jodorowsky e Iberê Camargo, além de artistas independentes, sobretudo aqueles pertencentes ao surrealismo pop.

Na inscrição traumática e apocalíptica dos seus desenhos, Re traz à tona as marcas de uma arte que provoca e, ao mesmo tempo, não congratula com vãs esperanças de futuro. É como se cada forma, contorno ou cor empregados fossem um vivo atestado de que estamos implicados até o pescoço com aquilo que quiçá também somos: misto de sujeitos errantes com falsas ilusões de salvação.

Desenho: Re

 

*Os desenhos de Re são parte integrante da galeria e dos textos da 115ª Leva

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.

 

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