Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

A fotografia tem o condão de vislumbrar perspectivas que se agigantam cada vez que a subjetividade governa seus signos. O modo como um fotógrafo observa a vida e seus complexos fenômenos é especial quando se pode olhar tudo como se fosse a primeira vez. O real, atravessado pelos recursos advindos da alma humana, não é mais o mesmo. Muda sempre, como se estivéssemos mirando um caudaloso e intrépido rio. Assim, flagrar os instantes que nos agarram incessantemente e despertam nossa atenção passa a ser uma missão deveras intuitiva e sensível, mesmo considerando o necessário domínio técnico.

O que será que norteia o olhar frente ao universo de pontos de vista que está diante de nós? Talvez um alguém como a paulistana Mercedes Lorenzo saiba nos responder com a propriedade de quem percebe caminhos singulares por entre os dias. Dona de uma visão que associa poesia à imagem, Mercedes penetra nas sutilezas e retira delas a matéria que dá sentido ao seu ofício. Mesmo no registro da materialidade das coisas e seres, a fotógrafa consegue um resultado que vai além de uma noção concreta e acabada de tudo. Nela, um vigor abstrato e intimista é capaz de redimensionar o foco da criação, fazendo com que um novo impulso seja conferido à existência.

Formada em Desenho Publicitário e Fotografia pela Escola Panamericana de Artes (EPA – SP), Mercedes direciona suas ações para uma reflexão mais humanista das coisas, fato que a estimula a desenvolver novos trabalhos. Na entrevista que agora segue, a artista fala, dentre outros temas, dos motores de sua criação, da especial relação com a palavra e faz algumas reflexões sobre o papel da arte na contemporaneidade.

 

Mercedes Lorenzo / Foto: Rubens Guilherme Pesenti

 

DA –  Não há como passar por suas fotografias sem observar a forma como os espaços são captados. Disso, deriva uma escrita da luz que permeia o ambiente das intervenções humanas, de como divisamos ser e não-ser. Visivelmente habitados ou não, muitos de seus lugares possuem a marca vigorosa dos vestígios. Como lidar com isso na criação da imagem?

MERCEDES LORENZO – Há uma frase de Anais Nin, em meu blog, que resume fantasticamente esta questão: “não vemos as coisas como são, vemos as coisas como somos”. Isso pra mim implica que a criação fotográfica é uma conversa íntima entre o que é pré-existente no ambiente com o que necessita de via de expressão dentro da mente do fotógrafo. A partir desse diálogo mudo, das concordâncias e dissonâncias entre eles, vai se estabelecendo um ponto fino de equilíbrio e toda essa dinâmica acontece às vezes em questão de segundos. Mas sempre existe essa conversa íntima e ela determina o que será ignorado e o que será ‘focado’, usando metáforas da própria fotografia. É algo no qual não costumo prestar atenção consciente em relação ao processo em si. Por isso, talvez a dificuldade em te responder objetivamente. É intuitivo e orgânico para mim.

 

DA – Falando em caráter orgânico da fotografia, o que mais chama atenção é o menor nível de interferência possível por parte de quem faz os registros. Acredita que a poesia da imagem se inscreve no pacto silencioso entre o fotógrafo e o universo das coisas?

MERCEDES LORENZO – Sim, sua observação é pertinente. De fato, nos trabalhos fotográficos autorais/conceituais eu tento o mínimo de interferência possível, algo como uma busca da “legitimidade” da cena, embora isso seja ilusório: o olhar, o enquadramento, o foco ou qualquer outro elemento de escolha aleatória no ato de captar a imagem já é uma interferência, e ela se prolonga depois no tratamento da imagem em pós-produção. Não sou o tipo de fotógrafa “purista” nesse sentido, estou interessada justamente em transmitir uma linguagem poética. E quando penso em poesia, não penso necessariamente em coisas belas ou benfazejas. Esse pacto entre o meu olhar e o universo das coisas, como você diz, é uma espécie de transgressão ou licença poética. A não-interferência é quase que honrar a veracidade de algo que só eu estou vendo num determinado instante.

DA – Seus caminhos iniciais na arte apontam para um envolvimento com os desenhos. Você traz algum entendimento dessa fase para o olhar de fotógrafa? Diria que houve uma espécie de transição?

MERCEDES LORENZO – Desde pequena eu desenhava. Num determinado momento, na escola, percebi que desenhava um pouco melhor do que os colegas e então pratiquei com mais determinação. A princípio, copiando imagens que gostava e depois criando umas poucas. Mais tarde, nos anos 80, fiz o curso de Desenho Publicitário, especificamente pensando em aplicar aquele “dom” a algo que pudesse também me satisfazer profissionalmente. Trabalhei por alguns anos com desenho-animado comercial até me mudar de São Paulo para Santa Catarina, onde residi por 25 anos.

Nesse intervalo de tempo, tive outras atividades, trabalhei e estudei inúmeras coisas diferentes e me envolvi mais e mais com a linguagem, a palavra. Então, a transição não foi direta, embora eu tenha hoje consciência de que tendo a pensar sempre em termos visuais, quando penso em algo pela primeira vez. Isso é natural em mim, e provavelmente tem tudo a ver com a escolha da fotografia e o fato de me sentir tão à vontade nessa atividade.

Acredito, sim, que a facilidade do “entendimento espacial” das coisas, proporcionado pelo desenho, favoreça de algum modo o exercício da fotografia, bem como a dinâmica do mundo da publicidade seja um treinamento e tanto para determinados desafios da fotografia documental.

 

DA – Há também a Mercedes que se deixa envolver pelos enlaces poéticos, pela feitura de versos que sabem a delicados percursos existenciais. Em que medida a convergência entre palavra e imagem pontua sua trajetória?

MERCEDES LORENZO – O meu envolvimento com a poesia começou mesmo antes da fotografia profissional, e foi em parte incentivado por amigos que leram alguns escritos meus. Acredito que a palavra tomou destaque em minha vida também influenciada pelos meus estudos em Neurolinguística por volta dos anos 90. A poesia, a meu ver, é um imenso exercício de síntese desse mistério que chamamos Vida, com o pior e o melhor que ela possui. Essa síntese se vale da ferramenta “palavra”, assim como a fotografia é também uma outra forma de síntese que se vale da imagem. São signos que na minha vivência pessoal estão intimamente ligados e creio até que se confundem, na medida em que meus escritos carregam em si uma forte dose visual, e as fotos carregam em si uma dose igualmente grande de simbologia poética. De todo modo, não me considero poeta, apenas arrisco expressões escritas aqui e ali como parte da experiência de pensar o mundo.

Mercedes Lorenzo / Foto: Lais Simenikim

 

DA – Na sua opinião, qual o grande desafio da criação fotográfica frente às “facilidades” do mundo digital que nos atravessa? Não nos iludimos com uma revolução muito mais tecnológica do que inventiva?

MERCEDES LORENZO – Como disse anteriormente, não sou “purista” no sentido de evitar a manipulação digital da imagem quando se trata de buscar uma linguagem a ser transmitida e, claro, dependendo do contexto e finalidade do trabalho em questão. Fotojornalismo é diferente de fotografia conceitual. Mas, ao contrário do que muitos acreditam, a manipulação da imagem fotográfica já existia desde os primórdios da fotografia analógica, e muitos dos efeitos digitais hoje propagados têm sua origem justamente nos laboratórios químicos e em grandes nomes como o de Man Ray, para citar um. Isso não invalida de modo algum o trabalho conceitual que é isento de manipulação, acho que há lugar para todos os tipos de expressão individual. A qualidade da ideia final transmitida é o que deveria contar, não propriamente o processo em si, mesmo sendo ele uma parte lúdica e apaixonante do nosso trabalho. Cada fotógrafo tem habilidades específicas e preferências pessoais ao usar suas ferramentas disponíveis para chegar aonde quer. É a sua “paleta de pintor”, que apenas começa na câmera. O grande desafio, a meu ver, reside no mesmo lugar de sempre: a originalidade e consistência do trabalho, seja digital ou analógico.

 

DA – Seus registros para a publicidade possuem uma conotação artística deveras importante. Imagina rupturas ali?

MERCEDES LORENZO – Eu penso que a publicidade é um segmento que acompanha de perto todo tipo de inovação e consegue, talvez mais do que nenhum outro, absorver tendências de novas linguagens. Claro que estou falando da publicidade de alto nível. Então, nesse sentido eu acredito que, mais do que ruptura, é uma evolução constante. Meus registros para publicidade se querem sempre consoantes com essa maneira de assinalar uma valorização da inteligência do cliente e do seu público.

 

DA – Quando a arte não passa impune pelas questões de nosso tempo, seu significado ganha corpo especial. E você traz isso à tona na série Lançar Luz à Indiferença. O que lhe é mais caro nesse percurso?

MERCEDES LORENZO – Fico gratificada por você ter feito menção a esse trabalho, ele me é muito caro em vários sentidos. Acredito que a arte pode refletir as questões de seu tempo de forma implícita ou mais explícita, como uma crítica, que é o caso da série Lançar Luz à Indiferença. Minha experimentação com essa explicitude se deu transitando na linha tênue entre crítica e provocação. Toda a série foi produzida por mim com recursos fotográficos e de edição digital de imagens, de forma a chegar perto de um efeito “publicitário” muito mais do que propriamente “artístico”, pois se valeu dessa linguagem para dar ambiência ao questionamento proposto. A importância deste tipo de trabalho no meu percurso é a de me colocar em contato com todas as realidades sociais que me cercam, mas não apenas isso: pensá-las, propor um pensamento crítico e independente sobre elas, uma aproximação a elas por parte dos que ainda não o fizeram. São muitas ambições, eu sei, mas aprendi com a poesia que nós nunca sabemos exatamente onde uma ideia pode florescer e o quão longe ela pode alcançar.

DA – Chama atenção a forma como você aborda a perspectiva do masculino no ensaio Ecce Homo Nudus. A poesia do corpo revela um olhar especial sobre o homem, desanuviando tensões aborrecidas do gênero e propondo outras leituras. Estamos diante de um resgate necessário?

MERCEDES LORENZO – Sim, sem dúvida, eu acredito que estamos diante de um resgate necessário, em muitos sentidos. Apesar de aclamado na mídia e amplamente exibido na publicidade, o que observo é um recrudescimento em termos de moralismo no que se refere ao corpo na sua expressão natural. Esse recrudescimento se reflete inclusive nos espaços da web com uma censura indiscriminada que coloca a pornografia e o mau gosto no mesmo patamar de um Davi de Michelangelo, por exemplo. Também se reflete na reiteração de dogmas medievais travestidos de condutas contemporâneas. Este ensaio está entre os meus favoritos, não somente pelo resultado estético, mas também pelo que ele simboliza e tenta resgatar. Ele vem acompanhado em meu site de um texto introdutório, onde resumo essa visão que vai além do erótico, do comercializável, do corpo idealizado. O corpo aqui se quer parte indissociável do Ser. É incrível que em pleno século XXI ainda não tenhamos irrestritamente difundida a ideia revolucionária do psicanalista Wilhelm Reich, que nos mostrou que a mente humana está “espalhada” por todo o corpo e não reside apenas no cérebro. Esse conceito é a antítese da dicotomia repressora e moralizante, e mesmo sem essa clareza o ser humano o tem intuído ao longo das eras. Mas aí já vamos descambar em Foucault (risos).  Eu quis que fosse um nu masculino porque também nessa especificidade residem tabus, já que o corpo da mulher é muito mais exposto pela mídia em geral. A inspiração final, o start da coisa, veio quando pude obter num sebo (já que se encontra esgotado) o maravilhoso livro da fotógrafa Vania Toledo: “Homens, um ensaio”. Editado em 1980, ele traz várias personalidades masculinas da época (e ainda atuais) em fotos de nu absolutamente naturais, despojadas, e em situações que evocam particularidades de cada um deles. Fiquei me perguntando por que o livro não foi reeditado, pois existem tão poucos ensaios desse tipo no país. Considero esse trabalho transformador e poético num nível muito sutil, e por isso ele me é caro.

DA – Em termos artísticos, acredita que a contemporaneidade é um convite à transgressão?

MERCEDES LORENZO – Em termos artísticos, só entendo como possível a transgressão (risos). Só consigo conceber a criação como algo que transgride em maior ou menor grau o que é vigente. Isso se aplica, a meu ver, desde o começo dos tempos. Mas contemporaneamente acho que o desafio é maior, na medida em que existem já inúmeros referenciais para a arte de outras épocas. Transgredir sendo criativo, hoje em dia, exige ao menos um superficial conhecimento do que já foi feito, e isso não é pouco. As ferramentas que permitem a auto-expressão criativa podem ter sido ampliadas e/ou facilitadas, mas o conteúdo continua dependendo única e exclusivamente do elemento humano. A multiplicidade de nossos dias talvez dificulte exatamente a observação do cerne daquilo que é vigente, para então poder ser transgredido. Por isso a arte hoje, na minha opinião, tem a importância da síntese. Para chegar a essa síntese é preciso pensar – num momento em que a palavra de ordem é consumir.

Mercedes Lorenzo / Foto: Rubens Guilherme Pesenti

DA – O que você não endossa nesse estado de coisas chamado pós-modernidade?

MERCEDES LORENZO – Vou tentar resumir, porque a pergunta é bastante abrangente. Acredito que muitos comportamentos dessa nossa era chamada pós-moderna são mais reativos do que pró-ativos, eles são consequência de um mundo sem garantias e em pleno processo de transformação de valores. Essa transformação não precisa ser negativa em si mesma, mas requer a todo momento a validação ou não de ideias que eram dadas como certas até o século passado. Nem todos têm a predisposição para esse constante questionamento e alguns se sentem sem chão, sem referências, e as buscam onde for mais conveniente segundo suas afinidades. Nesse sentido, o que eu não endosso de forma nenhuma, são todos os tipos de fundamentalismo: seja religioso, ideológico, político, etc. Também não endosso o automatismo consumista como fórmula de escape para o enfrentamento existencial a que todos estamos sujeitos. É uma vã tentativa anestésica num momento em que a humanidade precisa estar disponível e alerta para todo tipo de ideia que possa promover justiça social e a sustentabilidade do meio ambiente a longo prazo. E isso, na minha opinião, precisa ser feito não só urgentemente, mas com alegria, com vistas à felicidade.

DA – Por tudo o que você já viveu com a fotografia, o exercício do olhar implica mais em estranhamento, contemplação ou espanto frente ao existir?

MERCEDES LORENZO – O exercício do olhar… acho que é uma soma dessas coisas que você disse, e talvez mais algumas. Não poderia me restringir a uma delas, mas isso sou eu. O estranhamento é fundamental, me mobiliza, não me deixa acomodar e provoca a criação de novas sinapses o tempo todo. Sem o estranhamento não haveria o aprendizado. Confesso ter uma verdadeira satisfação diante do estranhamento, pois implica sempre que algo é novo para mim. O espanto é mais emocional, e implica mais na construção íntima daquilo que futuramente vai demandar uma expressão externa. A contemplação, sim, faz parte do exercício do olhar, porém ao contrário: para dentro. É ali que eu tento exercer a contemplação, como quem se pergunta “o que é que tem aí para se expressar?” ou “o que é que já assentou o suficiente aí dentro para ter uma possibilidade de síntese e/ou entendimento?“. Isso tudo se mistura, como você disse, frente ao existir. E acho que a arte não deve nunca dar respostas prontas, mas saber fazer as melhores perguntas, como na Cajuína de Caetano: “existirmos, a que será que se destina?”.

 

* Algumas fotografias de Mercedes Lorenzo fazem parte da nossa 72ª Leva.

 


 

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3 Comentários

  1. Bravos Mercedes! “””a que será que nos destina?””” Orgulho viu! Parabéns!

  2. Mercedes é tudo de ótimo e o site idem.Resultado: SHOW!
    Beijos
    rosa pena

  3. Ótima entrevista. A fotografia me aguça para a poesia. E um fotógrafo que transita pela linguagem poética, que toma para si o experimento do mundo, seus urgentes desafios – o desafio de desentranhar-lhe o cerne, e ainda com vistas à felicidade, mobiliza-me enormemente. Conheço alguma coisa do trabalho da Mercedes e admiro, mas depois desta entrevista, quero ver bem mais.

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