Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

Na rota de um escritor há muito mais indagações do que respostas. Muito mais dúvidas do que qualquer outra coisa. Carregar na alma um punhado de incertezas é parte integrante da sina de qualquer mortal, mas parece que no caso de criadores as percepções ganham um relevo bastante dimensionado. Afinal, o que busca quem escreve? Reconhecer-se entre os seus iguais? Procurar um sentido para a existência? Libertar-se?

As perguntas predominam. No entanto, cabe questionar se realmente é importante saber das motivações. Atrai mais descobrir que escritores não são seres divinos e, portanto, nem de longe portadores de atributos espetaculares. São gente comum, tão atravessados que estão por suas questões humanamente cotidianas.  O grande aspecto é que tais autores são providos de ferramentas diferenciadas de apreensão da vida e seus fenômenos. Transpiram demasiadamente na direção de uma obra, sem construir caminhos a partir do nada. Por maior que seja a carga de abstração ou subjetividade envolvida numa via de criação literária, estará em curso também um processo consciente e criterioso de escolhas.

Nada melhor do que ter representações concretas daquilo que foi mencionado acima. E é possível captar tal atmosfera na obra de um autor como Thiago Mourão. Seu romance de estreia, “Java Jota”, lançado recentemente pela Editora Patuá, ousa percorrer as intricadas zonas da criação. O livro aborda a trajetória de um escritor na busca obstinada pela construção de sua obra. Com o vigor contido nos intervalos e esperas, o romance vai delineando cenários que demonstram o quão complexa e, por vezes, exasperada é a missão de um escritor em ter materializada a sua pretensão. Nesse ínterim, o personagem central depara-se com suas divagações, arroubos, constatações, mas principalmente com a confirmação de que a sua sina comporta paisagens marcadas por uma cruel inquietude.

Thiago Mourão se define como um baiano nascido no Rio de Janeiro. De forma independente, lançou seu primeiro livro de contos. Formou-se em Biologia, trabalhou com teatro, escreve e produz vídeos institucionais, e está na iminência de cursar um mestrado em literatura criativa na Harvard Extension School. O autor acolheu a Diversos Afins para uma conversa sobre um tudo. Deixou marcadas as impressões sobre seu novo livro, mencionou um pouco da sua concepção criativa, ressaltando a forma como observa os desafios de seu tempo. Pelo diálogo que aqui se faz presente, Thiago traz em si a procura inominada que ofícios como o da literatura sugerem.

 

Thiago Mourão

Thiago Mourão / Foto: divulgação

DA – Java Jota é um ser que personifica a busca de um autor pela construção efetiva de sua obra. Nessa perspectiva, tal representação traduz algo comum a muitos que se dedicam ao ofício literário. O que dizer dessa, digamos assim, angústia da criação?

THIAGO MOURÃO – Me parece algo instintivo, talvez não tenha o nome de angústia, talvez não tenhamos ainda criado um substantivo para nomear a sensação do ato da criação. Angústia parece ser a mais próxima, mas a gente pode descartá-la pelo fato de angústia não ser prazerosa (ao menos para mim) e a sensação do ato de criar, que parece angústia, me dá muito prazer. Fiz teatro. Os três segundos antes de o espetáculo começar ou de entrar em cena, aquele black out infinito depois do terceiro sinal, são os mais emocionantes. Você sabe o que vai fazer, teoricamente há controle do que vai acontecer, mas quando se pisa o pé no palco há prazer e emoção que incluem a angústia, por conta da possibilidade do erro e do desconhecido, mas não se esgota nela, há uma busca muito maior. Vejo como alguém que pula de paraquedas. Há adrenalina, ansiedade, medo, angústia, e tudo isso dá prazer. Acho que o prazer é maior do que a angústia. Por isso digo que é instintivo, a gente busca o prazer o tempo inteiro, até como estratégia evolutiva, mas ninguém busca a angústia. Talvez, a busca pelo prazer gere inquietação, expectativa e, também, angústia. E acho que é a inquietação que faz a alma do criador, seja ele artista, estrategista, arquiteto…  Java foi muito escrito na angústia, como o sentimento mesmo da mulher perdida (algo que Raul Seixas falava muito e já me encantava desde novo), mas principalmente no prazer do sexo e da descoberta; e no risco, de iniciar um texto por apenas uma frase e segurar uma história e uma voz a partir dali. Criar é a palavra de ordem de Gaia e é também a grande busca do humano, por ser filho e ainda viver no útero dela. É tudo instinto, animal mesmo. Nomeá-la angústia é reduzir muito a complexidade desta bomba de prazer e frustrações.

DA – Onde a famigerada inspiração?

THIAGO MOURÃO – Você chegou na pergunta que inicia alguns textos de Java. Onde encontrá-la? Ao mesmo tempo, há um ofício a ser cumprido. Então, aos poucos, a gente percebe que inspiração não baixa nem vem à toa, muito raramente, é preciso buscá-la. Hoje, acredito mais que a inspiração encontra-se na disciplina, nos objetivos, na barriga querendo comer e no fígado precisando de álcool. É claro que a gente se alimenta, observando o dia-a-dia. Eu gosto muito de observar a natureza (me formei em biologia) e sempre me intriga a relação do homem com o espaço de Gaia. A inspiração está nisso, nas perguntas, nas investigações que buscamos fazer. Claro que há dias mais fáceis que outros. Há dias que se escreve vinte páginas e dias que se escreve duas, dolorosamente. Mas qualquer coisa pode despertar a vontade de escrever um texto. Inclusive, outros bons textos.

DA – O modo como se percebe o mundo é certamente algo fundamental para um autor. Outros criadores também são responsáveis por mostrarem dimensões múltiplas de apreensão das coisas. É mais interessante pensar que o que chamamos de novo é fruto de uma transformação daquilo que sempre esteve entre nós?

THIAGO MOURÃO – Muito mais. Arte pode vir de artifício, e o artifício é a técnica. Se você abre o jornal, há um artigo sobre violência, na literatura autores falam da mesma coisa de outra forma, há os textos acadêmicos sobre violência que têm seu estilo próprio e suas ideias. Os temas rondam e cabe a nós abordá-los da nossa forma. E a nossa forma é baseada em tudo que absorvemos. E pensar que tudo se transforma e é aproveitado é um pensamento inteligente ao meu ver.

DA – Em “Java Jota”, os labirintos da mente conduzem o personagem a um ambiente hedonista. Aqui, a figura da musa é algo fugaz, desejo de calmaria numa procela incessante. Seria a memória um componente que nos ajuda a atravessar o caos?

THIAGO MOURÃO – A memória nos leva ao caos. Você faz uma observação que gostei muito na resenha de Java Jota: “molda a difusa colcha de retalhos que pode representar a mente de um criador.” É isso, uma colcha de retalhos. Quando acaba a memória e começa a criação nos nossos pensamentos? Ninguém sabe, nem os médicos e biólogos, mas sabe-se que todos, artistas e não artistas, inventam quando revivem suas memórias. E, normalmente, são caóticas. O que nos tira do caos é a junção disso tudo numa linha intelectual. Extravasamos isso nas profissões, nas conversas, exposições das opiniões e dos fatos. A memória nos faz saber dela o tempo inteiro, é a grande sacada que Joyce tem em Ulysses: a reprodução do fluxo ilógico do pensamento consciente. Um cheiro, um olhar ou uma imagem qualquer pode desencadear pensamentos muito vivos, que desencadeiam sentimentos e sensações e quanto mais sentimentos e as sensações, mais vivos estamos. Nada na natureza para e nós, queiramos ou não, somos parte da natureza. Nossos atos instintivos não podem provar isso? Quem tem total controle do que virá na mente? Me parece que a memória é a base primeira da criação. E é preciso treiná-la.

DA – Há algum sentido de libertação na escrita?

THIAGO MOURÃO – Há, sim. Evidencio isso em Java Jota neste trecho: “Porque eram artifícios naturais, puros e verdadeiros. Porque ali havia Rosa. E porque havia literatura. E Rosa e literatura faziam uma equação diferente, única e peculiar, que resultava em amor. Em calma, em conforto. Resultava em um lugar só dele. E dela. Um lugar fechado, mas livre e libertador do pior da sua alma.” Há sempre libertação na criação, como há o aumento da necessidade de criar mais. Acredito que a boa literatura não deva ter pudor. É a liberdade da hipocrisia social. Também pode ser de outras liberdades mais pessoais, e serão, pois só escrevemos sobre o que nos incomoda, ou intriga, enfim… Aspectos que nos chamem a atenção. Mas se vivemos em sociedade e estamos sempre transitando por ela, nossos anseios, desejos e intrigas estão completamente ligados a estas relações cotidianas. Logo, isso faz com que a libertação da alma e das questões sociais possam e devam andar juntas. Sem pudor.

DA – Em matéria de literatura, você se considera um transgressor?

THIAGO MOURÃO – Literatura deve ser transgressora no sentido das convenções e conveniências sociais, deve expor, pôr o dedo na ferida. Eu tento ser o mais honesto possível quando escrevo. Isso é transgressão? Esteticamente, gosto de experimentar, isso seria a transgressão a que você se refere? Procuro não me censurar e sou muito chato quanto ao tom e a forma de escrever. Se soa estranho, travo ou recomeço, se não tem uma voz própria, acho inválido.

Thiago Mourão

Thiago Mourão / Foto: divulgação

DA – Falemos da transgressão num sentido de rompimento de convenções e lugares comuns, levando em consideração um tempo de patrulhamento ideológico e do politicamente correto. A literatura sobrevive numa sociedade repleta de congratulações e bom mocismo?

THIAGO MOURÃO – Ah! O bom mocismo tem me irritado, confesso. Mas, por enquanto, tenho mais visto isso nas ideias e discussões que nos textos literários contemporâneos que tenho lido. O que há – e é também irritante – é uma necessidade da crítica pela crítica, esquecendo que estão fazendo arte, que é algo que privilegia a estética/linguagem. Quando quero criticar abertamente algo, faço nos meios que são para isso: O Globo, Brasil Post e Gazeta dos Búzios. Minha arte é crítica por trazer um espelho social e um tema, mas não escrevo para que os outros digam: “olha como ele é engajado”, ou para dar lições socialistas, não. Escrevo sobre o que quero falar e me incomoda e quando crio também, mas estou em busca de uma história, uma estética, e que se for para tomar posição, que ela esteja diluída na arte – que está acima de tudo. Outro dia li num edital de concurso de contos: “contos que valorizem o bem-estar social” e até hoje me pergunto o que queriam dizer com isso. Mais de um edital traz isso, seria uma doutrinação do bom mocismo? E fico apavorado por saber que a resposta passa por esse bom mocismo ou por achar que é a literatura somente quem vai nos tirar da mediocridade ululante em nossa terra. Tenho visto alguns escreverem cheios de efeitos e ironias e sem conteúdo ou de conteúdo repetido, isso tem rolado bastante. Mas vejo bons autores da minha geração com crítica, voz própria e escrevendo sem pudor e sem ser panfletário. Mas, sim, devemos estar atentos. Esteticamente, acho que as novas mídias vão nos ajudar a dar um salto na diversidade. Voltando a Ulysses, Joyce brinca com essa diversidade midiática que aparecia (o jornal, a publicidade invadindo outros espaços como a própria rua…). Ulysses é um claro retrato de como a diversidade linguística pode intervir na literatura. Foi escrito em início de século, mais ou menos no período em que estamos. Acho que quando começa um século, muda nossa forma de comunicar, mudam as indústrias e as estruturas sociais. Acho que grande parte das pessoas ainda não entendeu a importância de viver o início de um novo século. E isso contribui muito para a mediocridade e esse bom mocismo.

DA – O que você não endossa nesse estado de coisas chamado pós-modernidade?

THIAGO MOURÃO – Esse estado de coisas nos traz muitas informações e possibilidades, ao mesmo tempo, uma superficialidade doida. Parece que há uma busca, principalmente na minha geração, pela extrema bondade. Todo mundo é bonzinho e qualquer coisa que se discorde você é um direitista (uma coisa cruel – e esquecem as contribuições de pensamento econômico e social que os pensadores liberais trouxeram) terrível. Parece novela antigamente, tem os bons e os maus. Há muito pouca análise de contexto mais aprofundada, a internet, principalmente o Facebook que poderia ser uma ótima ferramenta para análises, se tornou, em grande parte, um local vazio de ideias, apenas com pessoas querendo se mostrar o quão boazinhas são. Ao mesmo tempo, é uma geração – coisa de cultura brasileira – que faz muito pouco pelo social, no sentido de, por exemplo, trabalho voluntário e humanitário. Essa tentativa de canonização, através do discurso, eu não endosso. Não sou bonzinho, sou humano, tenho pensamentos terríveis, egoísmos controláveis, mas incuráveis. Sinto raiva, inveja, desprezo, tudo isso… É inerente à minha condição humana e não faço questão de ser madre Teresa de Calcutá. Antonio Risério me trouxe uma expressão muito boa: são stalinistas chapa-branca. “Muito amor envolvido”, “de boas” e etc são expressões/frases que para mim ilustram muito bem o que digo, irritantes, diga-se de passagem. E aí você escuta coisas esdrúxulas do tipo: Dilma é uma grande presidente porque foi torturada na ditadura, me explique o que o cu tem a ver com as calças! Mas quando faço uma crítica dessas, automaticamente me jogam no colo dos militares, me chamam de insensível. Ou então devo achar lindo que o ex-presidente, aquele mesmo que se orgulha de ter chegado à Presidência da República sem nunca ter lido um livro, esteja colocando estudantes brasileiros na mão de bancos e empresários, numa dívida imensa (um problemão americano que estamos entrando enquanto eles buscam saída) porque agora filho de pobre estuda medicina ou biologia. Educação deve ser universal e pública e quando eu critico os métodos, automaticamente os que almejam a canonização me atacam me chamando de preconceituoso. Precisa falar o estado das universidades públicas brasileiras? É uma curva descendente em contraste à curva ascendente de lucros dos empresários do setor. Mas criticar isso é perigoso. Ou então é comum assim: “ele é ótimo porque pelo menos…” pelo menos… E de pelo menos em pelo menos a quinta maior economia do mundo distribui migalhas ao seu povo e todos ficam extremamente agradecidos, aí político vira pai e mãe, em vez de servidor público. Parece que a pós- modernidade trouxe ótimas ferramentas e nos manteve a cabeça do século XX. O Brasil aposta em petróleo e se você critica a loucura que é o pré-sal ou o risco econômico que o investimento em petróleo é no novo século, vão dizer que você está de conchavo com americanos para vender o petróleo. Ora, os países de primeiro mundo estão abolindo a indústria do carbono. Alunos de Harvard recentemente entraram num processo judicial para que a universidade pare investimentos em pesquisas e empresas de carbono. Stanford cortou esses investimentos faz dois anos. Parece que há muita informação pronta e pouco tempo para contextualizá-las e todos estão ávidos em ser bonzinhos, tão desesperados, que o Brasil foi entregue ao populismo em pleno início de século XXI, como se não houvesse tempo mais para estruturas e investimentos de médio e longo prazo, tudo tem que ser feito imediatamente… É isso, esse pensamento retilíneo eu não endosso. E tem sido difícil não endossá-lo, até porque eu não estou dissociado de ninguém.

DA – Definitivamente, somos seres incorrigíveis?

THIAGO MOURÃO – Somos seres complexos com questões incorrigíveis e instintivas. Sim, somos animais, e com muitas questões adaptáveis. Apesar de seres novatos neste planeta, nossa adaptabilidade ampla nos permite viver do norte ao sul da Terra, criando diferentes estruturas sociais e econômicas. Mas a nossa obsessão com esta alta capacidade de mudar o ambiente a nosso favor – chamada progresso – me parece incorrigível e já nos mostrou que tem afetado não só as outras espécies como a nossa. E mesmo isto estando claro, com fatos e números, insistimos nos erros. A dissociação homem-natureza nos cobra um preço alto. A nós e aos que nos cercam e pelo andar da carruagem parecemos incorrigíveis. Me referi ao humano como espécie, como indivíduo acredito que temos pequenas soluções – o que me faz ser completamente crítico ao nosso sistema carcerário e bastante crente do embelezamento e transformação da alma humana através da boa educação (não esta que nos apresentam, de maneira geral aqui no Brasil) e da arte/cultura.

DA – Sob o manto da criação, está cada vez mais difícil distinguir realidade de ficção? 

THIAGO MOURÃO – Bom, tenho tido a impressão de viver em uma peça de Ionesco o tempo inteiro. Isso falando da realidade, principalmente política, que o Brasil vive. Mas ando bastante caçando ficção e acho que o escritor deve sempre olhar para a realidade com essa visão criativa. Diálogos reais se transpõem facilmente para a ficção e vice versa. Quanto mais se cria, mais isso acontece. É bom e, às vezes, meio louco.

DA – Acossado pelo abismo, o que enxerga Thiago Mourão?

THIAGO MOURÃO – Uma bipolaridade incrível. Tem horas que parece que eu vou abraçar o mundo e tem horas que tenho certeza de estar sendo engolido pelo mundo. É estranho e desafiador, mas a linearidade em excesso é entediante. A beira do abismo e o balanço dele dão a impressão de vida. Sem isso, é só respirar.

Fabrício Brandão é um dos editores da Revista Diversos Afins. Cultua livros, discos e filmes com amor táctil e espiritual.

 

 

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