Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

Por trás dum universo de cenários a compor as tramas da literatura, um criador maquina suas investidas. E o faz com o desejo da permanência, urdindo estratégias, escolhendo caminhos, atirando-se no labirinto da palavra. Quem escreve intenta ser alvejado pela percepção do leitor, este ser capaz de reorientar certos roteiros antes traçados. Quem escreve deixa sua marca no mundo na medida em que suas letras efetivamente saiam ao encontro do outro.

No jogo sugerido pela alteridade, o tácito pacto entre emissor e receptor aponta para além de uma suposta cumplicidade quando as coisas orbitam pelo complexo terreno da interpretação. Nesse ínterim, há revoluções internas, guerras contidas, alguns lampejos de êxtase e, sobremaneira, visões postas à prova. Então, seria o leitor uma espécie de destemido desbravador a quem é dado um status de total autonomia?

Acharemos estranho se alguém puder responder a isso com absoluta margem de certeza. Afinal, uma obra não é tão aberta assim na medida em que necessita pontuar rotas que fazem parte naturalmente do contexto estrutural da criação. E é bom poder ouvir escritores, saber deles o motor fundamental de seus ímpetos.

No caso do autor baiano Marcus Vinícius Rodrigues, que transita com preciosa fluidez entre as zonas da poesia e da prosa, as motivações criativas evidenciam uma tentativa de estabelecer um laço com o mundo. Também é, como o próprio escritor confessa, construir a ilusão do eterno.

Autor de obras como “Pequeno inventário das ausências” (poemas – 2001), “3 vestidos e meu corpo nu” (contos – 2009), “Eros Resoluto” (contos – 2010), Cada dia sobre a terra (contos – 2010), e tendo participado de várias antologias, Marcus Vinícius utiliza a memória como valiosa ferramenta de criação. É, na verdade, uma instigante manipulação das lembranças, espécie de distanciamento do real, através da qual o esquecimento protagoniza a elaboração da palavra. Um curioso fluxo de esquecer para escrever.

Na entrevista de agora, testemunhamos um Marcus Vinícius cada vez mais comprometido com o curso natural de seu caminhar literário, algo que se apoia marcantemente por um sentido especial de perenidade. O momento requer que falemos de seu mais novo livro de poemas, “Arquivos de um corpo em viagem” (2015), obra que enaltece a capacidade do autor em demarcar esse verdadeiro receptáculo de epifanias que é o corpo. Também na ótica da dinâmica do corpo, é de sua autoria uma série de poemas criados para o espetáculo de dança “Vous Doux”, cuja plaquete será lançada em Salvador, na Bahia, brevemente. O diálogo presente também visitou outras paisagens, a exemplo da ótica do desejo humano, das inquietudes contemporâneas e das estratégias criativas. Quem divide conosco um pouco de si é um alguém na plena percepção de que sua obra está sendo construída no processar das horas. Tudo isso sem a pretensão das certezas.

 

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Marcus Vinícius Rodrigues / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Tanto na prosa quanto na poesia, seus escritos têm um apelo muito ligado aos percursos do corpo. “Arquivos de um corpo em viagem”, seu mais recente livro de poemas, evidencia tais trajetos. O que dizer do nosso corpo enquanto receptáculo de memórias?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Essa história do corpo começa meio que por acaso mesmo. Olhando pra trás é que dá pra ver que tem essa unidade toda, mas não foi algo pensado. Quando eu comecei a montar o livro “Arquivos de um corpo em viagem”, foi que vi realmente a recorrência e aí organizei a obra toda em cima disso. Eliminei os poemas que não tinham a ver. Acho que o corpo é o lugar de todas as coisas. É onde nós estamos. Então, tudo acontece dentro do corpo, mesmo que seja a experiência mais metafísica. Até a experiência de sair do corpo é uma experiência em relação ao corpo, se você quiser ser místico. Eu continuo fazendo isso. Vou lançar agora um livro, inspirado no espetáculo de dança do meu irmão, “Vous Doux”, e, novamente, há a experiência do corpo, ou seja, os corpos se relacionando com os outros. É uma recorrência, mas não é pensada.

DA – É sedutor pensar que os idiomas do corpo são infinitos?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Não existe isso de infinito tanto em relação às experiências humanas quanto em relação à literatura. Talvez infinitas sejam as formas de fazer sempre as mesmas coisas. O tempo todo encontramos formas de fazer a mesma coisa, de irmos para o mesmo lugar, de conseguirmos as mesmas sensações. O infinito está nos caminhos, pois os lugares aonde chegamos são sempre os mesmos.  Não tenho certeza de nada.

DA – Você acredita que a memória é algo que pode nos trair?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Eu escrevo na esperança desta traição. Escrevo tentando lembrar e já participando dessa noção de que vai haver uma invenção. Isso é um aprendizado com a Lygia Fagundes Telles, com Maria da Conceição Paranhos. Acho muito importante viver, deixar passar o tempo, esquecer, e relembrar para poder inventar. Esse processo, tenho consciente na minha literatura. Eu vivo primeiro as coisas e vou escrever muito depois. Tenho coisas anotadas de 2008, 2009, de uma viagem que fiz, e ainda quero fazer o diário de viagem, mas aí quero esquecer para depois escrever. Não quero fazer um registro real do que aconteceu. Isso para mim é um método. Esqueço para reinventar. E não é nenhuma originalidade. Já aprendi com as duas mestras que mencionei. O que eu escrevo, principalmente na prosa, tem todo um processo de apagamento. Tem uma experiência real, biográfica, lá no fundo, numa das camadas. Na prosa há pelo menos duas camadas obrigatórias: o fundo biográfico e a intertextualidade. Por cima disso, faço todo um processo de apagamento, vou eliminando todas as pistas de biografia e de intertextualidade. Claro que quando a gente apaga uma coisa, outra aparece, muitas delas que a gente nem tem noção, pois entram inconscientemente. O divertido é isso. Apago as pistas do que de fato aconteceu, seja de leitura de outros textos, seja de aspectos biográficos meus.

DA – Diante de um mundo que nos oferta confrontos em abundância, os arremessos são necessários?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Não. Acho o contrário. Penso que temos de mirar um caminho e seguir exatamente ele. O confronto é muito perigoso porque quando você entra em qualquer conflito você se desvia. Tudo bem que as pessoas entrem em conflito com você. O perigoso é quando você quer entrar em conflito com as pessoas, pois terá de ir até onde elas estão e talvez elas não estejam no seu caminho. Caso elas estejam no seu caminho, aí, sim, é possível ter conflitos ideológicos, estéticos, é possível se confrontar. Mas quando as pessoas não estão no seu caminho, o importante é você construir o seu próprio e fazê-lo alargar e alargar. Quando você estiver com o caminho bastante estruturado, certamente surgirá algum conflito, mas é bom que seja o conflito do outro com você e não de você com o outro. As estéticas, políticas e os movimentos afirmativos têm que fazer mais isso: seguir em frente, e não buscar confrontar o outro diretamente. Naturalmente, o outro que se por acaso está nos atravancando o caminho é que se vai confrontar com a gente. Mas aí nós não nos desviamos, porque o perigo do conflito é a gente se perder nesse desvio e viver as ideologias dos outros, sermos reativos a eles. Ser reativo ao outro não é bom nem em arte, nem em estética. Não é mais tempo da gente reagir à forma do outro fazer. Eu faço as minhas coisas, exatamente o que sei, posso e gosto de fazer. E realmente não me interessa como os outros fazem, se fazem bem, se fazem mal. Mas não pretendo discordar, ir contra o outro, porque senão eu paro de fazer o que tenho de fazer, que é de fato o que sei fazer: as minhas coisas, minha escrita, minha vida.

DA – Não te assusta o patrulhamento ideológico ao qual estamos submetidos atualmente?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Estou em relação a isso absolutamente recolhido. Eu me espanto com as opiniões tanto de um lado quanto do outro. E não consigo me sentir parte de nenhum dos dois grupos. É possível conviver muito bem com quem é diferente de você. Tudo isso me assusta. Não me envolvo e não tomo partido porque acho que há coisas ruins dos dois lados, e é preciso refletir muito. Tenho muito medo de pessoas que têm certezas, talvez porque eu não tenha realmente certeza de nada. Já há muito tempo que não tenho certeza de muitas coisas e também não tenho certeza de que devíamos estar todos aqui no planeta, vivendo. Acho tudo muito estranho. Penso tentando encontrar uma solução, mas não há. E há muitas coisas que não sabemos. Aos poucos, fui me acostumando a não saber as coisas, a não ter curiosidade. Por exemplo, em religião, já procurei muitas coisas, quis saber muitas coisas, e hoje em dia me contento em não saber. Aceitei o mistério.

DA – Vez por outra, vem à tona um debate sobre a divisão da literatura em nichos de gênero. É como se as vozes ficassem reduzidas a guetos. O que pensa sobre isso?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – É uma questão que sempre retorna. A má literatura é que fica em guetos. A boa literatura ultrapassa tudo. Tem os guetos óbvios (gays, mulheres, negros), mas tem um gueto muito menos óbvio, que se impõe por causa de uma força política, mas não pela qualidade literária, que é o gueto masculino, macho, heterossexual e branco. Há um tipo de literatura que só interessa a esse tipo de gente e que não escapa disso. A gente não percebe porque esse macho, adulto, branco, como diria Caetano, está no comando. E quem está no comando é quem decide o que é o certo, o standard, o padrão. Mas, se você for reparar, há mesmo uma literatura que não interessa às outras pessoas, que é muito particular porque é má literatura. Quando escapa desse gueto, não interessa a ninguém. As pessoas discutem, veneram porque este gueto é o gueto que está no poder, mas não deixa de ser um gueto. A boa literatura pode discutir questões raciais e interessar a todo mundo. Pode discutir questões gays e interessar a todo mundo. Pode discutir questões femininas e interessar a todo mundo. Pode discutir questões do machão, hétero, branco e também interessar a todo mundo.  Tudo isso porque é boa literatura e se preocupa muito com a estética. A má literatura não interessa a ninguém. Só interessa àquele grupinho e serve para um gozo imediato daquelas pessoas, para uma função fisiológica rápida. Fisiológica não somente nos sentidos básicos, normais, mas também no sentido de servir como uma aceitação, um reforço do que determinada pessoa sente ou quer sentir. São literaturas que lidam com emoções básicas. Veja, por exemplo, a saga “Crepúsculo”, a qual não li, apenas vi os filmes. Ela tem um apelo muito grande com os adolescentes porque mostra a depressão que eles vivem naquela época. É muito chato para quem não está mais naquele período de depressão, de se pensar no que é, no existencialismo, de se viver uma vida sem grandes aventuras sexuais. É tudo tão casto ali porque é isso. Já “Harry Potter” é infantil, mas o tempo todo está lidando com outras questões e há várias camadas de leituras que se pode fazer além de um mero divertimento. Interessa a mais gente do que um “Crepúsculo”, que vai desaparecer em breve. Ninguém mais vai falar sobre isso. “Harry Potter” tem chance de sobreviver por muito tempo e interessar muito mais gente.

DA – No território da prosa, seus trânsitos criativos deixam um legado especial, sobretudo em se tratando de obras como “Eros resoluto” e “Três vestidos e meu corpo nu”. A ótica do desejo humano é uma trincheira de despertar para o mundo?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – O “3 vestidos e meu corpo nu” e o “Eros Resoluto” são livros tirados de um mesmo livro. Era um livro ainda incompleto, que até não tinha alguma unidade. No “3 vestidos”, eu coloquei três contos que têm uma visão feminina, são endereçados na questão feminina e em escritoras e têm uma intertextualidade expressa, flagrante e franca. E o “Eros resoluto” é mais específico de contos homoeróticos. Eles, a princípio, estavam todos num livro. Claro que os contos com a questão feminina não entrarão nesse livro futuro que um dia eu vou reunir, pelo menos com os contos homoeróticos. Talvez eu faça um livro só com os vestidos porque há mais uns três contos esparsos com visões femininas também. Essa vontade de organizar eu tenho muito. E tem, sim, sempre o desejo. Eu sempre estou prestando atenção no desejo que está por se realizar, porque é o momento que realmente importa. Uma vez que se realize, acabou, morreu. Até na minha pesquisa de mestrado o meu interesse era com o surgimento do desejo. Acho que o momento em que surge é o momento em que a gente tem mais plenitude de vida. Depois é ladeira abaixo, degradação, as coisas vão se acabando. É a pulsão de vida. O erotismo mesmo como pulsão de vida. É isso que me interessa tratar. Então, esses dois livros que vão se separar, e vão se chamar “Café Molotov”, trarão contos homoeróticos que tiverem unidade. E o “Três vestidos” também vai se formando aos poucos. Estou o tempo todo escrevendo uns três ou quatro livros temáticos e vou espalhando pelos livrinhos que tenho conseguido publicar. Às vezes, me pedem histórias específicas e vou tentado adequar aqui, ali, vendo onde se encaixa no projeto. Tenho uma planilha com as coisas que pretendo fazer. E vou recebendo os estímulos, produzindo e tentando encaixar. Eventualmente, alguma coisa é descartada ou outra acaba abrindo o caminho para novas possibilidades de livro que vou organizar no futuro. Mas a questão do desejo certamente perpassará todos os livros. Sempre é algo que aparece. Quando vou produzir um conto, eu trabalho sempre com várias unidades para que ele possa se encaixar num livro, em outro, e esses livros ideais estão sendo montados aos poucos. Quanto tiver a oportunidade de lançar um livro inteiro com isso, eu lançarei. Não tenho pressa porque é aos poucos que a gente vai fazendo. Assim que eu tiver oportunidade, sai essa antologia de contos chamada “Café Molotov”. Tenho o blog justamente com esse nome para assegurar o título como meu. Há um conto já escrito que trata disso, o qual permanece inédito para nomear o livro. Então, o meu desejo é de ordem, mais do que qualquer outra coisa. Meu desejo é apolíneo, e não o dionisíaco, que todo mundo busca. Eu quero ser apolíneo porque no caos eu já estou. Quero caminhar até a ordem.

DA – O caos também pode ser uma rota para a libertação assim como o desejo?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Para mim, não. A libertação está na ordem. Eu acho que já estamos no caos, e penso que a tendência da natureza é a ordem. Qualquer desarrumação que você faça na natureza em qualquer nível, seja nos moleculares ou sociais, a tendência depois é as coisas se organizarem, encontrarem um lugar, uma ordem. A pacificação está, para mim, na ordem e não no caos. O caos pode vir para explodir alguma estrutura e depois se buscar uma nova ordem, mas o caminho é a ordem. O fim é a ordem. O caos é uma desorganização momentânea. E ele é efêmero. As pessoas que falam do dionisíaco estão querendo trabalhar no registro do efêmero. Mas isso pode até servir para outras artes, teatro, performance, mas a literatura, stricto sensu, busca a perenidade. Então, você vai produzir alguma coisa que fique. Essa deve ser a intenção, pois o que não fica não é literatura. Literatura é o que vai acontecer depois, na leitura lá no futuro. Se você depende da presença das pessoas para o contato imediato, já não é mais a literatura stricto sensu, é arte cênica, música, performance, qualquer outra coisa. Depois surgiu a palavra escrita que vai comunicar para o futuro, para o distante. E aí você precisa de mais ordem. Hoje, as pessoas com todas as possibilidades de comunicação audiovisual estão dando muita ênfase ao momento da performance, ao contato próximo, ao texto que é dito em voz alta. Mas tudo isso é efêmero. É literatura dramática? É drama? É performance? Ok, mas não é aquela literatura que vai comunicar com o futuro, o distante, aquilo que nós não sabemos o que é ainda. Para essa literatura, precisamos de alguma ordem, de algum parâmetro para que a comunicação possa se estabelecer no futuro. Estou interessado no fato de que uma pessoa que não saiba quem eu sou, pegue um texto meu, até com a autoria apagada, e até se comunique de alguma forma com o que eu disse, sem depender de mim pessoalmente para que isso aconteça. E isso só se faz com ordem. Você não vai conseguir fazer isso com o caos. O caos é um caminho, um processo, uma etapa, mas não é o fim em si das coisas.

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Espetáculo “Vous Doux” / Foto: Aldren Lincoln

DA – Ao longo do tempo, suas estratégias de criação mudaram muito?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Na poesia, eu acho que mudou alguma coisa. Tem um momento em que eu ganho mais consciência da forma. Depois também quero esquecer essas consciências, voltar a ser intuitivo. Na verdade, poesia eu comecei imitando. Em algum momento vou fazendo intuitivamente, aí publico o primeiro livro. Depois não consigo fazer mais nada que acho que seja interessante, paro um tempo e vou para a prosa. Mais adiante, volto a fazer poesia e aí ganho mais consciência. Até estudo métrica, forma, e depois esqueço. O que achei realmente após lançar o primeiro livro foi que, embora não tivesse uma preocupação formal, eu tinha estruturas que se repetiam. Depois, cansei, parei, e comecei a pensar nisso melhor. Acho que hoje em dia eu tenho mais consciência da forma, de como lidar com algumas estruturas. Umas se repetem, mas vejo que ninguém repara e então vou deixando. Tem alguns truques que se repetem, mas ainda está funcionando. Poesia é preciso descansar para depois fazer de novo. Recuperar, esquecer e depois aprender de novo.

Eu demorei muito a escrever prosa. Já tinha um primeiro livro publicado e nunca tinha escrito um conto e queria escrever. Os primeiros são muito intuitivos, muito poéticos e com pouca ação e história. Depois é que acho que fui aprendendo a fazer contos. O romance ainda estou aprendendo a fazer. Qualquer dia sai um, não sei. Mas o conto eu fui aprendendo e o meu modelo de escrever é com muita estrutura por debaixo. Tem sempre muita coisa por debaixo de um conto. Um monte de histórias que não são contadas, de truques. Há estratégias, às vezes até bobas, tipo “eu vou escrever e só vai acontecer a história em determinado lugar ou hora do dia”. Vou criando alguns obstáculos que depois acabam não aparecendo.  Por exemplo, o conto “A omoplata” era um mero exercício, pois o objetivo era fazer um texto apenas com diálogos porque tenho uma repulsa em fazer diálogos. Sempre escolho não fazer. Então, me obriguei a fazer um conto só com diálogos. Agora já faço contos só com diálogos, alterno melhor. Posso eventualmente não escolher fazer diálogo algum ou não deixar as pessoas conversarem. Todas essas estratégias, algumas muito bobas, circunstanciais, tipo escrever sob encomenda, dentro de um determinado tema, são interessantes porque criam camadas de histórias, narrativas e temáticas. Acho que isso melhora um pouco a minha prosa. Isso eu fui aprendendo depois e cada vez faço mais. Vou construindo subtextos, subtramas, coisas escondidas para construir um conto curtinho às vezes. E sempre fazendo com que de alguma forma se relacione com outro conto que eu escrevi para montar uma malha, uma rede em que haja um diálogo entre eles. Toda vez que escrevo um conto, ou penso que ele vai se relacionar com algo que já escrevi ou ele abre um caminho para uma outra vertente, alguma coisa que devo fazer depois. Aí eu prevejo e deixo lá. Vai se montando uma teia. Quero que tudo se relacione de alguma forma. Isso acaba sendo uma estratégia, coisa que eu não fazia antes. Foi acontecendo aos poucos.

DA – O trabalho de resistência das editoras independentes inaugura uma nova era para as publicações?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Acho que todo mundo quer entrar nas garras do mercado tradicional. Ser um produto tão bom que possa ser consumido, circular bem, todo mundo quer isso. Mas isso não vai acontecer mais com todos. Não existe mais esse mercado para a literatura, a não ser aquela de entretenimento. A grande literatura não vai ter esse mercado todo e vai ser mesmo uma coisa pequena. Não vai ter mercado, vai ser arte simplesmente. Uma arte de alcance no momento reduzido, que depois vai esperar um alcance maior no tempo. No momento em que você publica, acho que cada vez menos vai haver circulação, pois mesmo quando circula, a boa literatura, essa literatura preocupada mais com a estética, circula num subterrâneo, num gueto. Não é uma coisa acessível a todo mundo. Por quê? Porque, claro, as pessoas não precisam mais da literatura para se divertirem, a não ser da literatura de entretenimento simplesmente.  As pessoas vão assistir cinema, televisão, internet e não precisam ler. Não precisam gastar quinze, vinte anos aprendendo a ler bem, a interpretar um texto. Então, esse vai sendo um interesse de um número cada vez menor de pessoas. Mesmo que circule, sempre será uma circulação subterrânea, clandestina, que não chega ao grande público. As editoras pequenas, como as da Bahia agora, dão um fôlego. Isso é bom porque essa tribo das pessoas que leem, gostam de literatura e, na maioria, também escrevem acaba consumindo. Vai ser uma coisa pouca. Acho que não tem mais porque ter ansiedade. Todo mundo sonha, algumas pessoas até produzem obras com essa finalidade do grande público, mas você tem que fazer algo específico para esse grande público. E talvez não seja o caso nem de escrever um romance, mas sim um roteiro para cinema, televisão, que também é uma coisa muito interessante. Mas não é pra todo mundo e alguns escritos são para poucos mesmo, pois não há hoje em dia mais tantas pessoas com capacidade para ler e interpretar um texto literário. É um público muito reduzido. Com pouco dinheiro, você publica um livro. A questão das pequenas tiragens é uma saída, um respiro, um tipo de sobrevivência. Mas é só isso, mera sobrevivência. Não vai além.

DA – O que você não endossa nesse estado de coisas chamado pós-modernidade?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Pós-modernidade pode ser tudo. Se pode ser tudo, o que faço também é pós-moderno. O que eu não admito é que queiram que pós-moderno seja alguma coisa que ainda continue o Modernismo, as vanguardas lá do começo do século vinte. Isso não me interessa, essa agonia com o novo, essa vontade da novidade. Eventualmente, há coisas muito boas, mas há muitas que já nascem datadas, velhas, e que não se sustentam. Como o que eu acredito, penso e quero é algo que dure, o experimentalismo não me interessa. Claro que faço exercícios, mas não publico querendo que seja algo que vai ficar. Sei que é um exercício, é efêmero e não vai se sustentar. Mas alguma coisa da vontade de novidade fica. Não será tudo. Não tenho ansiedade do novo. Não me preocupo com isso. Quem quer fazer, que faça. A característica da pós-modernidade é a diversidade, a fragmentação. Então, cada um pode fazer o que quer. Eu faço o que eu quero, simplesmente, e pronto. E quem quiser fazer o que se diz como pós-moderno em oposição ao que faço, tranquilo. Não tenho ansiedade pela novidade pura e simplesmente. Tenho ansiedade pelo texto que fique tão bem acabado que não se possa dizer aquilo de outro jeito, a não ser daquele que foi dito. Não estou interessado no efêmero e no que vai se acabar a qualquer tempo. Claro que eu sei que tudo pode se acabar daqui a pouco, mas não trabalho com isso. Sei que tudo é assim, que tudo se acabará, mas o meu movimento de produzir é no sentido da perenidade. É um método. É o meu método.

DA – Por que escrever?

MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES – Pelo mesmo motivo que as pessoas bebem, fazem sexo, amam. Não tem motivo, pois ou é isso ou nada. E o que vem depois do nada a gente não sabe. É gostar de se expressar, de criar histórias, de construir um mundo particular, de construir a ilusão do eterno. É pra isso. Se a gente começa a pensar o porquê das coisas, todas elas não têm muita razão de ser, não têm muita necessidade. Nem viver, não é? Mas a gente vive porque não sabe o que vem depois, vamos aproveitando o que se tem. Eu comecei a escrever porque gostava de ler o clássico, o clichê do clichê, e gostava de estar nesse lugar. E tem uma hora que você tem que criar esse próprio lugar. Tem gente que bebe e vive para isso. Tem gente que gosta de futebol. Há pessoas que fazem outras coisas e apenas preenchem o tempo. Acho que pelo menos a literatura ou a arte de um modo geral têm essa sensação de que está se construindo alguma coisa. Esse é o grande lance. É isso que aproxima talvez as artes da religião. A religião também é isso. Ela é a aposta num depois, aposta no que a gente não vê, no sobrenatural. A arte também é uma aposta no sobrenatural. A aposta na comunicação com uma pessoa que você não sabe quem seja é uma esperança. Escrevemos por esperança, simplesmente. Em quê é que é o problema. O bom da esperança é que ela não é em nada. Esperar nesse sentido é intransitivo. Simplesmente, esperamos uma coisa, uma transcendência, um além. Claro que você pode escrever poesia, prosa para objetivos mais específicos, mais circunstanciais, mas quando a gente começa a se perguntar o porquê das coisas, vai dar em nada, que ao findar vai dar em nada, nada, nada do que eu pensava encontrar, como se diz na música do Gil. Mas é isso. Se você começa a pensar, a gente vai acabar no nada. Então, eu escrevo porque me preenche de alguma forma. Se não escrevesse, talvez eu bebesse.

 

Fabrício Brandão é um dos editores da Revista Diversos Afins. Cultua livros, discos e filmes com amor táctil e espiritual.  

 

 

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