Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

A voz que não cala diante dos impropérios do mundo também pode ser a mesma que silencia para efeito de necessárias contemplações. Ao poeta, cabe a delicada tarefa de equilibrar imperativos da razão com os apelos do sentimento. Está em jogo a necessidade de que ele se posicione diante do meio que o circunda, fomentando a ideia de que é um ser não dissociado dos fatores notadamente históricos, sociais e políticos.

Quando vemos desfilar ante nossos olhos a trajetória de um autor como Alex Simões, percebemos que estar no mundo não é um ato acidental. Há que se vislumbrar a consciência de dois polos de pretensão: o observar e o agir. Para Alex, observar é olhar detidamente para um tudo que nos abraça mesmo involuntariamente. Num outro eixo, agir é estar consciente de que a arte é ferramenta de mobilização ativa no que tange à construção de uma sociedade sob as suas mais variadas vertentes.

Artífice da palavra, Alex privilegia a forma como mola propulsora da criação para depois demarcar os territórios do conteúdo. O que resulta dessa conjugação é uma obra cujos domínios posicionam seu criador como um dos mais vigorosos representantes da moderna poesia brasileira.

De fato, o poeta a quem entrevistamos agora sabe o que dizer. Seus versos configuram uma representação de que estar no mundo é também uma questão fundamental de defender pontos de vista. E não esperemos dele o esteta que se deslumbra com os elementos plásticos e superficiais de seu ofício, aquele bem distanciado do público em geral, como se habitasse um olimpo da criação. Pelo contrário, a afirmação de uma identidade enquanto sujeito pensante, crítico e lúcido torna suas vias literárias notadamente mundanas, sobretudo porque tem a consciência de sua voz, seu corpo e seu tempo.

Nascido em Salvador, Bahia, Alex Simões é pungentemente poeta e performer. Especialmente, a fusão entre essas duas frentes de atuação desemboca nas assim chamadas poerformances. Nelas, o poeta expõe, pelos trajetos da mente e do corpo, o seu valioso desejo de aproximação com seus semelhantes, quebrando paradigmas, dessacralizando a poesia e tornando-a um instrumento de partilha social. São de sua autoria os livros “Quarenta e Uns Sonetos Catados” (2013) e “(hai)céufies” (2014). É também professor e tradutor e, desde os anos 90, integrou várias revistas e antologias literárias dentro e fora do Brasil.

Ainda sob o efeito do seu mais recente livro, “Contrassonetos: catados & via vândala” (Ed. Mondrongo – 2015), Alex dialoga conosco sobre uma vasta gama de temas. Uma conversa que perpassa também a sua construção social e política enquanto sujeito que recusa um ideal de poesia que não seja reflexo do mundo no qual vive. Nesse ínterim, há o testemunho do autor diante dos aspectos que atravessam marcantemente sua obra, mas irrompe sobremaneira o olhar de um alguém devotado às questões que o tornam demasiadamente humano.

 

Alex por Ricardo Prado

Alex Simões / Foto: Ricardo Prado

 

DA – Na leitura do seu mais recente livro de poemas, chama atenção a harmonia marcante entre aspectos formais e de conteúdo, uma característica sua. E não há facilidades nesse seu caminho em direção ao leitor, tampouco conduções herméticas. O que dizer desse rumo?

ALEX SIMÕES – De fato, é uma característica. Eu parto fundamentalmente da forma, e é meio complicado dizer isso, mas parto dela. Esteticamente, penso em termos de poesia. Em projetos estéticos em geral, penso a partir de formas. Escrevo coisas muito diferentes de sonetos. Versos livres, haicais, baladas, enfim. Mas eu geralmente penso na forma que vou usar. Essa adequação entre forma e conteúdo é mais do que uma adequação. Existe uma organicidade que foi conquistada. E fico muito lisonjeado quando isso é reconhecido porque, às vezes, quando falam de mim, ressaltam muito essa condição de ser expertise, de ser um bom formalista, mas na verdade não é o que me interessa. É importante, sim, o domínio da linguagem, mas me interessa mesmo é dizer coisas. Eu procuro pensar de modo muito simultâneo, ou seja, que há formas adequadas de dizer certas coisas. Esse livro mais recente é um livro que tem 23 anos de história e você vai encontrar sonetos que dizem coisas lindas, mas que são mais formais, e que havia uma maior facilidade em direção ao leitor, além de trabalhos mais recentes, nos quais eu trago tanto um rigor no sentido de pesquisar e trazer a minha língua cotidiana para essa forma fixa, tradicional, ao mesmo tempo em que há esse respeito ao leitor. Quando você cria, surge um público e você gera uma relação de intimidade com a forma e a linguagem. Essa harmonia que você definiu é reflexo disso, duma relação que é muito antiga com a poesia e que se reflete em diversas formas e relações. A mais antiga e consistente é o soneto, mas também tenho esse outro lado de experimentar e, quando estou muito confortável, buscar outras maneiras de quebrar essa minha intimidade, de criar disrupturas. Não me constituir um poeta de linguagem hermética, ao mesmo tempo em que não facilito, é um equilíbrio que está muito na preocupação em trazer a língua do cotidiano, a mais próxima possível dele. Eu observava que no começo tinha um acento muito lusitano, notando que escrevia de uma forma distinta da minha fala. Passou a ser também uma preocupação, ao mesmo tempo em que venho trazendo temas e questões as quais criam uma tensão nessa busca por uma linguagem mais simples. E, às vezes, certas questões não podem ser ditas com total simplicidade. Acho que essa tensão também é produtiva por isso.

DA – Essa questão toda faz pensar sobre uma certa obsessão que alguns têm em dizer que a elaboração do poema é uma mera construção matemática, uma disposição de arranjos. Ao poeta, há que se deixar transbordar o sentimento?

ALEX SIMÕES – Essa discussão é antiga e, digamos, eu tendo mais para o lado cabralino, nessa coisa entre poeta possesso e poeta cerebral (nunca lembro ao certo quais categorias são mencionadas por João Cabral de Melo Neto). Eu já escrevi do jeito “vou fazer uma coisa movido”, mas no meu caso chegou um momento em que isso parou de funcionar. Geralmente, penso, fico maturando muito o que vou fazer. E tenho, sim, esse lado matemático, e não sei se serve pra mim, pois sou péssimo em matemática (risos). Há uma certa obsessão em ter algum controle sobre o processo e ficar maturando. Por exemplo, eu tenho uma encomenda, que é entregar uns poemas para uma revista, e não quero pegar coisas já prontas. E fico pensando muito em como vai ser. O sentimento está aí. Eu sou uma pessoa controlada por ele. Isso me governa. O sentimento tanto vai atravessar isso, porque ele antecede o planejamento, ele me constitui como pessoa, e também porque é uma construção. Essa capacidade de construir sentimentos através da linguagem é um processo de exercício. Exercitamos a capacidade de dizer coisas. Vou dar um exemplo concreto e relativamente recente. Participei de um processo de seleção, no qual mandei um projeto de poemas, e tirei uma nota muito baixa na minha avaliação pessoal. Foi algo abaixo da média. Foi um poema que escrevi muito puto, chamado “Balada de um poeta ruim para si mesmo”, e ali tem muito de uma frustração, uma chateação, irritação, mas é usando terça rima, fazendo referências a Dante, pensando num mote em que eu desenvolvo, e vou falando nisso ao longo do poema, e que está em “O Demônio da Teoria”, de Antoine Compagnon. Meu sentimento transborda também aí. Também tenho uma formação acadêmica e erudita, algum conhecimento legitimado que me atravessa, e meu sentimento vai através desse repertório. Não concordo com a ideia de que há que se controlar o poeta. A poesia é permeada por sentimentos, sim, mas em matéria de estética e ciência a gente não pode nunca dizer “tem de ser assim”. Tem de se ter liberdade de fazer qualquer coisa, inclusive abrir mão desse negócio de sentimento. No meu caso, não preciso ter controle de tudo. Já sou essa pessoa transbordada na minha vida pessoal. Então, nas minhas produções, eu tenho minimamente que pensar e planejar, senão é muito caos.

DA – Você acolhe o termo contrassonetos também como uma consciência da sua capacidade de transgressão enquanto criador?

ALEX SIMÕES – Totalmente. Eu conto essa história no livro. Esse termo já existia antes do escritor Ronald Augusto usar. Ele falando do meu livro “Quarenta e Uns Sonetos Catados”, que originou o “Contrassonetos: catados & via vândala”, no qual diz que não gosta de sonetos, mas o que aprecia no meu livro está no fato de serem contrassonetos, por eu não encarnar a persona de sonetista. E tem muitos sentidos aí. Eu me assumo como transgressor em termos políticos, identitários. Faz parte da minha vida. Sou contra- hegemônico, negro, homossexual, e essas questões aparecem inevitavelmente no que eu falo, nas minhas posições, na minha poesia e formalmente. Ao contrário do que pode parecer, esse exercício de dominar a língua do colonizador, usando as formas tradicionais, hegemônicas, não é um fim em si, mas um meio de dizer coisas, e dizer para públicos outros, que não são os meus pares apenas. Também para minar essa língua por dentro, essa forma por dentro. O que me interessa é dizer “eu sei fazer um soneto bonitinho, mas isso não é o mais importante”. Eu sou poeta. Assim como digo que sou negro e gay, sou poeta. Poeta que pode fazer um soneto, um haicai. Contrassoneto é nesse sentido de transgressão no qual está tudo misturado: ética, estética, política. Eu uso uma forma tradicional, mas não para conservá-la ou dizer assim “gente, com licença, sei fazer”. Foi em um certo momento, não é mais.

DA – As questões de identidade povoam cada vez mais a literatura. Na medida em que se apoiam em atitudes de afirmação política, ideológica, dentre outras, esses posicionamentos são algo fundamentais?

ALEX SIMÕES – São fundamentais e sempre existiram. Quando se há um silenciamento, e isso é comprovado inclusive através de estudos quantitativos nos quais se fazem levantamentos da etnia, da orientação sexual, do que são personagens literários e as referências da literatura brasileira, quando não se menciona certos lugares, a gente está falando de um lugar branco, heterossexual, masculino, de classe média pra cima. Então, nesse sentido não há uma novidade. O que existe em termos de novidade é que à medida que essas discussões, não só no Brasil, mas internacionalmente, dos anos 60 pra cá vêm ganhando corpo, naturalmente isso vem aparecendo mais e são fundamentais desde que não sejam exclusivas, que não virem uma camisa de força. Quando eu digo e repito que sou negro e poeta, não esperem de mim nenhuma performance ou atitude dentro, encarcerada nessas identidades. Temos identidades e identificações. Qualquer estereótipo, qualquer prisão eu recuso e, nesse sentido, cabe meu aspecto transgressor de quebrar expectativas.  Há situações nas quais é fundamental a gente se posicionar politicamente pra que não nos tomem como homem branco, heterossexual. É importante mapearmos isso porque falar por falar sem ter um domínio de um repertório, sem ter interlocutores dentro de uma linguagem, sem ler outros poetas e não só os poetas que me interessam, sem possuir o mínimo de conhecimento da linguagem em que estou me metendo, vai virar panfleto puro, e isso não tem valor. Se é para dizer às pessoas apenas que sou negro e gay, é melhor eu escrever um panfleto, e não um poema. Mas poder ter alguma relevância dentro de uma cena, um discurso, e poder falar de um lugar de opressão, denunciar que há um genocídio contra a população negra, homossexual, transexual, LGBT, isso é importante. Na medida em que eu puder dizer que existe um investimento violento contra segmentos minoritários, vou dizer. Eu sou uma exceção à regra. Duas vezes. Mas sempre nessa medida de que, enquanto poeta, eu tenho a liberdade de fazer qualquer coisa, inclusive de não querer falar sobre isso. Não considero que seja covarde o poeta ser negro e não querer falar sobre isso. Ele tem que ter liberdade. A poeta ou a escritora que seja mulher e não queira discutir isso em sua literatura. Não se pode abrir mão dessa liberdade. Não se pode usar camisa de força nem ser considerada literatura menor aquela que é produzida por um poeta que discute isso, inclusive na sua poesia e nos eventos em que participa.

Alex por Laura Castro

Alex Simões / Foto: Laura Castro

DA – Na transição entre o mundo fragmentado em que vivemos e o papel, de algum modo sua apreensão das coisas é marcada pelo caos?

ALEX SIMÕES – De todos os modos, o que eu produzo é marcado pelo caos, inclusive nessa necessidade de tentar controlar minimamente esse caos que me constitui. Eu sou nietzschiano. Entendo que o caos, a disrupção e a violência são constitutivos da humanidade, da história. São aspectos que nos constituem, e há um esforço histórico em apagar essas questões que são nossas e que não são necessariamente ruins. Tem duas coisas na sua pergunta que me chamam atenção e que talvez precise demarcar em algum momento. É quando você fala em trazer para o papel. Sou um poeta que também vai para o papel, mas que também, cada vez mais, está buscando formas e suportes que são, a princípio, não tradicionais para a poesia. Esse caos é minimamente controlado na unidade livro. Quando a gente pensa em livro, sumariza, topicaliza, dá uma sequência, reflete em termos de gênero. Eu escrevo poesia e isso tem uma repercussão até na forma como a mancha escrita se impõe no texto. É diferente da prosa. Tem um caos que é constituinte, mas que é minimamente organizável quando se escreve dentro dele. A outra questão com o caos é a que passa por outras linguagens, como eu disse antes, e que passa também por um evento chamado Dominicaos, idealizado por Orlando Pinho e Heitor Dantas, e que eu ajudo a desorganizar. Orlando, que é poeta, diz que o caos opera. Eu assumo esse caos e acho que ele é importante, pois é o caos criativo que possibilita as coisas acontecerem com um mínimo de controle para que justifique o fato de eu assinar as coisas que publico, performo e realizo esteticamente. É essa minha capacidade de lidar organicamente e disciplinadamente (risos) com esse caos que justifica minha assinatura. A gente vai aprendendo a conviver com esse caos. Estou falando como artista, mas isso é a vida, pois ela é caótica. Tenho, como qualquer pessoa com 43 anos de idade, tido experiências com o acaso. Vivemos um momento político caótico, tive mortes de familiares. E assim vem o caos e tomamos a consciência de que nós somos desgovernados por excelência. Somos ocidentalmente condicionados à ideia de que a vida tem uma sequência, que as coisas estão minimamente organizadas. É só uma intenção.

DA – Uma outra linha de expressão sua está nas performances poéticas. Que papel elas assumem, sobretudo na sua relação com o externo?  

ALEX SIMÕES – Digamos que de quatro anos pra cá isso tem aparecido cada vez mais. O que eu chamo disso é o cruzamento com outras linguagens, inclusive a performance, não só ela. Costumo chamar de poerformance por covardia, por não me assumir como performer, pois está num entrelugar entre performance e poesia, além do que convivo o tempo inteiro com performers, com o pessoal da dança, do teatro, das artes visuais. Meu cotidiano está muito permeado pela convivência com pessoas de linguagens diversas. Sempre tive um pouco de vergonha de me assumir como performer. Tem uma relação, claro, com o externo, mas tem um movimento que é muito relacionado com alguns eventos que eu frequento. Falei do Dominicaos, que não só frequento como também integro o núcleo de produção. Tem também o Sarau Bem Black, Pós-Lida, enfim, uma série de eventos aqui em Salvador que frequento e comecei a falar poesia. Esses três que cito são lugares em que eu via uma vibração com relação à poesia, com a performance, com o modo de falar, que tem muito a ver com o cruzamento de linguagens, caso do Pós-Lida e do Dominicaos, algo que apresenta um olhar mais arejado e contemporâneo da poesia. No caso do Sarau Bem Black, também contemporâneo e ligado a essas questões identitárias que falamos, é um movimento mais internacional, que é do Slam Poetry.  Sempre me incomodou muito um certo desinteresse, aquele modo poesia declamatória, como o Wally Salomão gosta de falar ironicamente. A poesia declamatória não desperta, não consigo mais ver uma poesia mais ou menos gritada.  É parte de minha pesquisa ver o trabalho dos performers e me sentir afetado, e ter a necessidade de trazer isso para o corpo. Existiam questões que eu via que não eram resolvidas apenas na poesia e, durante muito tempo, eu sofri muito com isso porque demorei muito a me assumir como poeta e artista. Também não entendia direito como era isso de querer fazer coisas diferentes ao mesmo tempo, pois a gente ainda tem uma formação disciplinar de ver isso como um problema. Com o tempo e convivendo com certos artistas, linguagens e olhares, fui percebendo que isso não é um problema necessariamente. A performance é um modo de se relacionar com o externo. No meu caso, estou muito interessado no cruzamento entre poesia e música. Isso não é invenção minha nem desse tempo, é uma relação milenar, mas que tem ganhado força. Faço performances em que cruzo música popular massiva com poesia canônica, cruzo artes visuais com poesia. Tudo isso tem muito a ver como minhas referências. Tem uma série de pessoas, algumas vivas, outras não, que foram impactantes na minha formação. Para falar de um autor vivo e que está muito nessa pegada e próximo de mim é Ricardo Aleixo. Também Joan Brossa, poeta catalão que morreu na virada dos anos 2000, e alguns artistas visuais. Zé Mário, um performer daqui e que hoje está em Brasília, foi extremamente importante nessa minha formação. No Pós-Lida, tem o James Martins, que possui um modo de dizer poesia que me interessa. Karina Rabinowitz, que tem essa coisa do cruzamento de linguagens. Daqui da Bahia ainda tem Laura Castro. Para completar as referências, tem Daniela Galdino, que é de Itabuna, Morgana Poiesis, de Vitória da Conquista, que são pessoas da performance. Ainda nessa relação com o externo, nesses eventos que tenho participado, dando oficina, sobretudo, tenho tido oportunidade de ver que é um privilégio lidar com o público, que não são públicos típicos de literatura, pois não são de eventos estritamente literários, não são da minha faixa etária. Vejo com muita alegria quando esse esforço de fazer o cruzamento de linguagens e de trazer a poesia para o corpo da gente chega de forma impactante, viva, principalmente em relação a um público que não é típico de literatura. E cada vez mais me interessa estar com esse público porque aí também tem uma questão política de formação. A gente lida com um público muito restrito e tendemos (nós da literatura) a correr o risco de acreditar que não precisamos fazer esse esforço de formação, de chegar junto, de criar estratégias para difundir o que fazemos. Eu estou cada vez mais em outra proposta. O que faço não é só poesia, mas acredito que minha poesia ganhou muito. É uma relação de troca porque é poesia viva. Internacionalmente, é o que o Slam Poetry tem feito e que reverbera nos saraus de periferia. O que tenho feito é muito afetado por essa vibração. Sempre ficava me questionando o que é que o músico popular tem que faz a gente vibrar. A maioria dos poetas não tem. E eu não estou dizendo que eu tenha. O Slam Poetry consegue, os saraus de periferia também. Para ficar nos daqui de Salvador, você vê o Sarau da Onça, no qual percebe as pessoas vidradas no que os artistas dizem. Sempre fiquei numa bronca porque sou super fã de shows de transformistas e pensava como é que a gente faz para em poesia fazer as pessoas ficarem vidradas também. Hilda Hilst deixa as pessoas pulsando, Drummond também. A performance tem sido um lugar onde isso tem se tornado possível.

Alex Simões na performance A Capella de Waly - Foto - Daniel Guerra M

Alex Simões na performance “A Capella de Waly” / Foto: Daniel Guerra

DA – Aproveitando um dos seus arremates, é preciso dessacralizar tanto o poeta quanto a poesia?

ALEX SIMÕES – É fundamental. Temos algumas heranças lindas. Sou um devoto da tradição. Um transgressor disciplinado. Não jogo tudo que está na tradição fora. Mas a gente tem umas heranças complicadas do Arcadismo, do Romantismo, do Neoclassicismo e da poesia moderna também. Uma delas é essa ideia do poeta da Torre de Marfim e do poeta hermético. Isso tem feito muito mal para a poesia porque a gente ficou num lugar solitário, de pouca penetração. Isso se reflete em muitas situações. Eu estava num evento importantíssimo discutindo esse momento político horroroso que estamos vivendo, debatendo a destruição do MinC, essa falsa reintegração desse ministério. E durante duas horas e meia que eu estava lá, praticamente não vi referências de literatura e poesia. Isso não é culpa das pessoas que estão lá. Também não é apenas culpa dos profissionais da palavra do Brasil de hoje. Tem muito a ver com essa perda de penetração que o poeta tem nas massas. O último grande poeta das massas que a gente teve foi Maiakovski, durante a Revolução Russa. No século vinte, a gente perdeu esse lugar. A poesia moderna criou um lugar de hermetismo. Acho que esse lugar foi ocupado. Os músicos populares, e alguns deles são poetas de fato, exercem essa função, mas é preciso dessacralizar, e tem gente fazendo isso. Vou dar um exemplo de dessacralização: os poetas em geral da geração Mimeógrafo têm feito isso. Tem um vivo que continua fazendo isso, o Ricardo Chacal. Dessacralizar, inclusive, em termos de linguagem, de uma preocupação em falar para os que não são seus pares, para os que não apenas estão interessados no exercício de ler poesia, mas também na demonstração daqueles que querem que isso chegue junto deles. Ricardo Chacal tem um livro, “Murundum”, que ele diz que escreveu para estudantes de ensino médio de escola pública. Ali ele se dessacraliza. É importante porque a gente precisa falar de um lugar mais terreno. Poetas e pessoas de literatura. E eu faço essa distinção a la Ezra Pound. É fundamental a gente que faz literatura e poesia no Brasil entender que esse lugar sagrado que alguns de nós falamos é um tiro no pé. Estamos falando para ninguém. Precisamos dessacralizar até pra poder chegarmos nas pessoas. É importante para a sociedade que o que esteja sendo produzido de poesia contemporânea chegue junto das pessoas. Vou dar mais um exemplo que tem a ver com performance. Mais recentemente, eu estava na ocupação do Minc, fiz uma performance, que é  “A Capella de Waly”, e ouvi um depoimento de uma jovem que disse que teve uma oportunidade rara de olhar no olho de um poeta. É uma performance que não digo nada meu, falo coisas de Waly Salomão durante trinta minutos, digo poemas e canto canções com letras dele. Acho que isso diz muito, esse depoimento dela. Ela pôde olhar no olho de um poeta. É um lugar que também me coloco, de olhar no olho das pessoas, de não falar do alto para baixo. Estou trocando coisas e esse é um exercício de dessacralizar esse lugar. Há uma tendência, muito marcada por essas tradições, em falar poesia ainda muito de cima para baixo. Tem gente muito legal fazendo. Por exemplo, Angélica Freitas quando faz um útero do tamanho de um punho, e que pega poemas que são googlados, desmascara o machismo que está presente no inconsciente coletivo e que se reproduz nas nossas formas discursivas contemporâneas, está dessacralizando esse lugar do poeta. Baudelaire falou, há cem anos, sobre a perda da aura do poeta. Infelizmente, parece que alguns e algumas colegas ainda não entenderam que acabou. Nossa aura caiu num lodaçal. Tá na lama e a gente precisa assumir. Nossa única possibilidade de existência, penetração e relevância é assumir a sujeira do cotidiano, do contemporâneo.

DA – Com que olhos o Alex educador vislumbra a formação de leitores?

ALEX SIMÕES – Com olhos de lince (risos). Eu, além de dar aula em instituição formal, faculdade, sempre estou preocupado com essa questão de formação. Acho que isso é muito importante porque dá uma consciência de realidade, uma noção mais pé no chão de como temos poucos leitores porque estou nesse outro front, o da sala de aula. Tenho cada vez mais dado oficina de poesia, que pra mim tem sido uma alegria. Gostaria muito de dar mais e estar menos em sala de aula formal, pois eu me sinto, inclusive, mais efetivo. Essa minha preocupação com a formação de leitores está cada vez mais voltada em criar pontes. Falando de performance, é entender que esse leitor contemporâneo, foi formado e tem menos de 30 anos, com raríssimas exceções, vai se sentir mais conclamado a conhecer a poesia através de outras linguagens. Tenho 43 anos e tive o privilégio de chegar à poesia, sobretudo pela música. Sou de uma geração que via na rede Globo Vinícius de Moraes sendo interpretado em programas especiais para crianças. Ainda tem gente muito massa fazendo isso. Adriana Calcanhoto, por exemplo. Essa ponte é fundamental para formar, e não apenas crianças, claro. Esse meu olhar de educador está muito interessado em buscar pontes não só entre linguagens, mas pontes que vislumbrem pertinências entre as origens das pessoas, pois empurrar qualquer tipo de poesia para qualquer público é estéril. Você tem que entender que há lugares. Daí, a gente volta para aquela questão das expressões identitárias, ou seja, você falar para um público que é majoritariamente negro, adolescente, sem trazer essas questões, e empurrar Baudelaire ou um cânone europeu ou estaduninense goela abaixo, é um olhar não formativo. Falo também de quem fez graduação em Letras e teve muita dificuldade porque passou por alguns professores que não tiveram esse cuidado. Felizmente, tive essa boa experiência de formação de leitura, mas vi muita gente se perder no caminho por conta de educadores que não tiveram esse olhar de entender que a formação de leitor passa pela história da pessoa, seu contexto social. Você tem que criar iscas. Existe um caminho longo a se percorrer. Se não me engano, 8% da população brasileira é proficiente em leitura. Isso é grave. Quando junto música com poesia, estou muito interessado em fisgar o público, fazê-lo se interessar pela leitura.

Alex por Eric Jenkins-Sahlin

Alex Simões / Foto: Eric Jenkins-Sahlin

DA – O que é o seu país hoje?

ALEX SIMÕES – É a pergunta mais difícil e a que menos vou ter certeza. Primeiro, porque preciso dizer que qualquer noção de país e nação é uma noção precária, problemática, pois implica muitos silenciamentos, muitos apagamentos para que exista um país, uma nação, uma bandeira. Mas o Brasil em que a gente vive é um país que passa por um momento muito delicado. Estamos sofrendo um golpe numa democracia que nunca foi muito amadurecida, num contexto político em que a gente ainda não tem maturidade política para discutir, para se colocar e se posicionar, mas que está sofrendo um golpe. A despeito dessa polarização que é construída, que não é inocente nem ingênua, é muito triste ver o silêncio de algumas pessoas. Eu até acredito que, durante certo tempo, algumas delas foram movidas por boa intenção e contra a corrupção, que é constitutiva de qualquer governo (e não estou justificando nenhuma corrupção). Temos provas muito contundentes de que estamos num momento delicado e que se trata, indiscutivelmente, de um golpe. Uma perseguição a uma pessoa, uma estadista, que é travestida de machismo e misoginia. Temos muitos avanços importantes que foram conquistados e que estão sendo ameaçados. Isso me afeta diretamente. Meu corpo, minha história estão sendo ameaçados. Estou num lugar de contestação a isso tudo. Ao mesmo tempo, é um momento de reflexão, de possibilidade, de reversão dessa falta de articulação nossa. Quando falo nossa, trato desses segmentos minoritários, da esquerda (sou uma pessoa de esquerda). Mas não tenho certezas. Acho que é muito importante dizer que não dá pra ter certezas. Sou uma pessoa extremamente politizada, durante toda a minha vida, venho de movimento estudantil e nunca deixei de fazer política. Não tenho certezas. São contingências, circunstâncias nas quais a gente precisa se posicionar. Eu consigo dormir porque estou me posicionando contra um golpe que está acontecendo. O país que vivo é um país que está sendo golpeado por uma corja. E temos um não governo com sete ministros investigados por uma operação que é a mesma que falsamente teria sido motivo para tirarmos uma presidenta. Por outro lado, temos que reconhecer, há erros no governo que foi deposto. Na minha avaliação, erros por não ter se assumido como um governo de esquerda, que radicalmente deveria extirpar ou diminuir ao máximo possível as diferenças, a desigualdade social. Eu vivo num país em que vejo todos os dias na minha rua, em todos os cantos, as pessoas comendo lixo. Morro de vergonha disso. Isso é lamentável. É um país que mata um jovem entre 15 e 25 anos, negro, a cada dois dias. É um país que espanca e comete violência contra a mulher a cada 15 minutos provavelmente. País que estupra, que mata mais de mil mulheres por aborto porque é criminalizado hipocritamente. É o país que mais mata homossexuais e transexuais no mundo. E é o país que eu vivo e amo com todas essas contradições. Mas é um país do qual não tenho muitas certezas. Realmente, é a pergunta mais difícil.

DA – Diante de tantas coisas que nos oprimem, você acha que a arte é um instrumento de libertação?

ALEX SIMÕES – Sim. A arte é um instrumento de libertação, de esclarecimento. Desconfio que se não fosse um artista, não fosse poeta, provavelmente seria um terrorista (risos). A arte pelo menos tem essa função no mundo. Ela evitou um terrorista. Faço guerrilha com a arte. Defendo pacificamente a revolução através da linguagem. Acredito que a arte possibilita nossa transformação. Ela mudou minha vida. Tenho afeto pelo mundo, acredito na possibilidade de transformá-lo. A revolução passa pela estética, por um olhar estético sobre o mundo. A arte liberta porque educa, transforma, cria possibilidades de novos mundos. Ela, com certeza, me livrou de ser um terrorista. Eu poderia estar fazendo coisas terríveis se não fosse a possibilidade de dizer coisas com meu corpo, com meu texto, através da poesia.  Ela me faz ficar nesse mundo e criando essas possibilidades de dizer coisas que não são utópicas porque se concretizam através de palavras e formas.

DA – É possível escrever sem morrer um pouco a cada dia?

ALEX SIMÕES – É impossível viver sem morrer um pouco a cada dia (risos). Sartre ou Kierkegaard, acho, falava que o sentido da vida é a morte, que morremos a cada dia, enfim. Viver antecede, é uma questão maior do que escrever. A gente escreve porque vive, mas talvez quando a gente escreve todo dia, e felizmente é meu caso, criamos a ilusão de dar sentido para essa vida, pois ela não tem sentido. Escrever todo dia é fazer a vida mais possível, mais pulsante. É um modo de enfrentar, pois a morte é inevitável, vai circundando a gente. A escrita, para mim, tem sido cada vez um modo de enfrentar a morte. Não só a minha, mas a morte que está cada vez mais ao meu redor. Tenho cada vez mais pensado nisso. Já vou fazer 43 anos e fico pensando não só na minha, mas no fato de que cada vez mais as pessoas ao meu redor estão ficando mais velhas, adoecendo e morrendo por motivos diversos. Então, escrever é também um modo de enfrentar isso, me deixa mais forte.

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.  

 

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