Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

A relação do escritor Alexandre Staut com a França não tem início com a literatura. Nasce da memória afetiva de “O garoto selvagem”, longa dirigido por François Truffaut, que assistiu, pela primeira vez, numa madrugada dos anos 80, na célebre Sessão Coruja. Na história, um menino achado na floresta é preso e levado para um vilarejo, onde passa a viver sob os cuidados de um médico. Aparentemente surda-muda, a criança reage à presença alheia com grunhidos, logo sendo tratada, pelos locais, como um animal de entretenimento. A missão do médico é justamente estancar essa bestialidade e incutir no menino o comportamento civilizado, através do exercício repetitivo da comunicação. O que ele resiste, a princípio, em fugas de retorno à natureza, até que a força da razão o domestica para a sociedade.

Foi a lembrança do filme de 1970 a primeira imagem que ocorreu a Staut, ao descer na estação de L’Aber Wrach, um vilarejo francês a oeste do país. Ele se percebeu um selvagem ali, no sentido de desconhecer os costumes, o comportamento e, sobretudo, a língua nativa. Passava o ano de 2002, e o então jornalista tinha viajado à França a convite do amigo Yann Danjou, que estava prestes a abrir um restaurante. Staut e Danjou haviam se conhecido, alguns anos antes, em Londres, onde o brasileiro viveu um período, e passou de lavador de pratos a ajudante de cozinha em restaurantes refinados. Foi ali que aprendeu a cozinhar bem.

A proposta, então, era usar essa experiência no modesto restaurante na cidade litorânea de Brest. O desdobrar dos fatos é o que movimenta a trama de “Paris-Brest”, publicação recente de Staut. Misto de romance de formação e diário de viagem, o livro apresenta, de maneira muito original, o gênero da auto-ficção. O autor manipula, com perícia e envolvimento, as próprias memórias a favor de uma narrativa que reconstitui o passado no adesivo de expressões artísticas: a música, a literatura e, predominantemente, a gastronomia. Prova disso é que muitas iguarias são descritas em seus modos de preparo, revelando outra característica do livro: ser também um volume de receitas.

Acima dessa estrutura compósita, porém, flui um texto coeso, um relato íntimo marcado pela sensação de não pertencimento ao mesmo tempo que por uma gana de que as coisas deem certo, mesmo que tudo aponte para o fracasso. A cozinha do restaurante é seu pináculo particular, de onde enxerga o Brasil através de pratos típicos que encantam os franceses, a exemplo do frango a passarinho e da indefectível coxinha, mas também onde orbitam suas frustrações, seus anseios e suas saídas; é onde se dá conta de que, de omeletes a terrine de foie gras de ganso, a arte da culinária não consegue sobrepor, em si, a arte da escrita.

Em entrevista de opiniões diretas e reveladoras, Staut refaz os passos que o levaram até o romance, partindo da própria literatura para debater sobre o meio e o mercado literário. Criador e editor da conceituada São Paulo Review, seu olhar agudo descortina a realidade brasileira de livros e de autores que, inexplicavelmente, está mais clara para os franceses que para nós mesmos. Educação, literatura de gênero, festivais. Uma ficção que tem o tamanho da própria altura. “Sou um sujeito triste que escreve para tentar ser feliz”.

Alexandre Staut / Foto: Giuliana Nogueira

DA – O seu novo livro tem uma concepção, digamos, sui generis. Há momentos em que é um diário de viagem; noutros, um livro de receitas; e, de maneira geral, um romance de formação. Entre a memória e o processo de composição, qual foi o ponto de partida para escrevê-lo? E como fez para trabalhar com esses três gêneros bem distintos num único texto, sem que a narrativa perdesse a coesão?

ALEXANDRE STAUT – Inicialmente, cinco anos após voltar da França para o Brasil, tentei escrever um romance em que um personagem de um país distante e não identificado chega numa pequena comunidade francesa, longe dos grandes centros culturais do país. O mote tinha a ver com minha viagem, mas principalmente com o filme “O garoto selvagem”, de Truffaut, um filme que amo e que assisti a diversas vezes, desde os anos 80, na Sessão Coruja, da TV, em DVD e num cinema obscuro de Paris. Passei uns dois anos com essa história, mas o livro estava emperrado. Quando já estava quase desistindo, meu amigo Yann (que me levou para a experiência na França, e para quem “Paris-Brest” é dedicado), disse que eu devia escrever sobre minha experiência de vida em L’Aber Wrach, cidadela ao lado de Brest, o primeiro lugar onde morei na França. Porém ainda demorei uns anos para começar a escrita do livro. Morei lá entre 2002 e 2006. Parece que precisava esperar a história decantar de alguma maneira, para que eu conseguisse observar o colosso de coisas que vivi como imigrante no país de uma forma pouco sentimental, com olhar crítico, ora engraçado. Às vezes é engraçado e patético ser estrangeiro num lugar. Me lembro que, já há um bom tempo no lugar, numa mesa de refeição, uma senhora me pediu para passar a baguete. Disse que eu tinha “braços longos”. Como em francês, vezenquando, uma palavra se junta a outra, na hora da fala, não entendi o que queria dizer quando falou “bras longs” (pronúncia: “bralon”). Perguntei o que queria e percebi que meu francês não era tão bom quanto achava que era (risos). Mas voltando à criação do livro em si, houve um dia, dez anos após minha volta, em que acordei e percebi que tinha uma história pronta. Ainda não sabia que o livro ia ser uma mistura de romance de formação, livro de receitas e diário de viagem, algo talvez novo na literatura contemporânea brasileira. Quando estava perto dos dez mil caracteres escritos, percebi que tinha um romance para resolver, nas mãos.

DA – É incrível esse tempo de maturação e, sobretudo, como você bem transferiu uma estadia, que durou anos, de maneira condensada para o livro. O que me leva a pensar sobre a integridade dessas memórias. Durante esse período, você teve algum diário onde anotava sobre os dias, e que serviu de fonte para o romance? Ou foi mesmo um esforço de percorrer essas lembranças, revisitar os lugares, rever as pessoas, sentir os cheiros e os gostos dessa época? A mesma pergunta serve para as receitas. As tinha anotado num caderno ou as escreveu de cabeça? Precisou consultar ou falar com algumas das pessoas daquele tempo?

ALEXANDRE STAUT – Quando Anita Deak, editora do livro, preparava os originais, surgiu a questão sobre os possíveis diários. Ela queria lê-los, talvez publicar parte deles com minha caligrafia. Mas nunca os fiz. Adoro ler diários de escritores, mas nunca escrevi uma linha, a não ser diários terapêuticos, que nunca virão a público (risos). Gosto dos diários da Virginia Woolf, do Lúcio Cardoso, são tantos… Acontece que o período em que vivi na França sempre foi muito presente na minha vida. Quase todos os dias, antes da publicação deste livro, lembrava-me de flashes de memórias, histórias truncadas. Para escrever o livro, quando não conseguia seguir adiante, acionava o trabalho do escritor de ficção que sou, sem me importar muito com a fidelidade dos fatos. Há inclusive alguns nomes trocados no livro, para que assim não comprometesse moralmente pessoas que cruzaram meu caminho na França. “Paris-Brest” é um livro de auto-ficção. É um gênero que gosto. Acabo de ler um livro alucinante da Delphine de Vigan, que se chama “Baseado em fatos reais”. Indico! Sou leitor de auto-ficção, gosto dos livros do Ricardo Lísias e do Julián Fuks, que exploram essa literatura. Falando sobre cheiros, sabores, lembranças, algumas pessoas acham que sou um dândi… faço banquetes para os amigos, participo de festas literárias, criei um site de literatura importante no Brasil (São Paulo Review), escrevo ficção, faço críticas gastronômicas, atuo como ator em peças de teatro e no cinema. Talvez Proust seja a inspiração mais real para este livro… a tiazona dândi mais poderosa que já existiu. Falo dele algumas vezes no texto, cito as suas madeleines, dou a receita original do doce. Bem, queria fazer um livro que despertasse sensações. Por isso, exploro bastante as receitas, o cheiro das feiras livres. Sem contar que de uma receitinha todo mundo gosta. Quando resolvi inseri-las no livro, testei cada uma. Mas minhas receitas não têm medidas certas. Uso punhados, faço medidas na concha da mão. Uma coisa meio bruxo… que sou (risos).

DA – Sim. As referências literárias e as musicais são um tempero à parte no livro, se me permite o trocadilho (risos). Mas já falamos sobre isso. Queria voltar a um momento que é descrito meio en passant, logo no começo, que é sua temporada em Londres, a qual precede os anos na França. Como se encaixa esse tempo em território inglês com sua formação de jornalista, já que viajou para Brest depois de trabalhar um tempo em redações no Brasil, escrevendo sobre gastronomia? Foi em Londres que aprendeu a cozinhar, não? E lá também que conheceu o Yann, um personagem sem o qual o romance não existiria. Como se deu esse encontro?

ALEXANDRE STAUT – Cozinho desde criança. Minha tia Lia fazia bolos de festa. Eu ficava vendo aquele capricho todo. Aos 11 anos, quando queria comer bolo, não pedia para minha mãe. Ia para a cozinha e fazia. Meu pai, que morreu quando eu tinha sete anos, era um grande cozinheiro. Todos os domingos ia para a cozinha, eu acordava com a casa cheirando feijoada, dobradinha. Ele gostava de receber parentes e amigos. Era festeiro. Herdei isso dele. Falo sobre minha família paterna, que é mezzo italiano, mezza judia, e sua relação com a cozinha e a música, no meu primeiro romance, “Jazz band na sala da gente”, de 2010. A Inglaterra aconteceu na minha vida em 1998. Trabalhava num jornal de São Paulo e, ao ser demitido, uma amiga jornalista, Ana Paiva, sugeriu que eu fosse para lá me tratar de tanto álcool e balada. Lá, bebi mais ainda (risos). Mas comecei a trabalhar em cozinhas de hotéis bacanas. Conheci Yann Danjou num desses hotéis e foi identificação à primeira vista. Ou paixão. Uma semana depois, morávamos juntos. Yann foi (e é) meu amor, amigo, irmão, pai, namorado, confidente. Uma amizade que resistiu a três países (moramos juntos na Inglaterra, Brasil, França e depois Brasil, mais uma vez) e a muitas cidades. “Paris-Brest” foi escrito de presente para ele, não é só um livro dedicado ao Yann, é um livro escrito para ele, uma forma de agradecer tanta coisa que vivemos juntos. Hoje, ele mora na França e eu no Brasil, mas nos falamos quase todos os dias. Rimos e choramos muitas vezes juntos. Na mesma semana em que o conheci, em Londres, tive a notícia do suicídio do meu irmão, de vinte e poucos anos, no Brasil. Nunca me esqueço da tarde em que liguei para minha mãe, de uma cabine na Bayswater Road, e recebi a notícia. Sentei no chão da cabine e desmontei. Desliguei o telefone e liguei imediatamente para Yann, que foi me encontrar debaixo de uma árvore no Hyde Park. Chorei até anoitecer e o Yann ficou ao meu lado, calado. Nunca me esqueço dessa árvore. Passava ali depois e via que essa era a árvore da infelicidade. Até hoje essa é a árvore da infelicidade. Achava no suicídio algo chique, via atitude… Ana Cristina Cesar e companhia. Isso até acontecer dentro da minha casa. Enfim, nesse momento, grudei no Yann. Uns meses depois, pedi que me levasse para morar na França. Mas voltando ao livro, ele foi escrito como forma de agradecer ao Yann, pela sua presença nesse momento de dor. E também como forma de levantar seu astral quando o Le Patio Gourmand, restaurante que ganhou dos seus pais, faliu, na França. O livro foi uma coisa pensada como forma de agradecimento. Senti-me um pouco Virgina Woolf ao escrever “Orlando” para Vita Sackville-West. A obra-prima de La Woolf é uma carta de amor, num momento em que a nobre Vita faliu e se viu sem autoestima. Bem, muitos leitores devem conhecer a história da amizade das duas inglesas.

DA – Uma história bonita, afinal, que resiste aos duros golpes da vida. Um fato curioso, que você cita no começo do livro, são os três livros que levou para França. “Como cozinhar um lobo”, da americana M. F. K. Fisher; “O livro das frutas”, da britânica Jane Grigson; e “Jules e Jim”, romance do francês Henri-Pierre Roché. Diante de toda uma bibliografia universal, gostaria que comentasse sobre as escolhas específicas desses livros. E a ausência de uma obra de autor brasileiro deveu-se a uma razão intencional?

ALEXANDRE STAUT – Havia começado a ler livros de gastronomia, e me apaixonei pelo da M. F. K. Fisher. Aliás, este não é só um livro de gastronomia. T.S. Eliot chegou a dizer que Fisher era uma das melhores prosadoras de meado do século XX. E é mesmo. Seu livro mais famoso, “Como cozinhar um lobo”, é sobre guerra e paz, é um manual de sobrevivência em épocas de guerra, é filosofia da mais alta qualidade. O livro de Grigson caiu nas minhas mãos por acaso, dias antes da minha viagem. É de uma beleza sem fim para quem gosta de botânica. Já “Jules e Jim” é um clássico maravilhoso, embora a tradução portuguesa que eu tenha seja lamentável. Único livro de Roché. Adoro autores de obra econômica. E até desconfio daqueles que têm dezenas de livros publicados. Escrever romance é algo muito difícil. Às vezes, o cara escreve um único livro e aquilo é uma obra-prima. Não levei qualquer livro brasileiro para a França. Acho que propositalmente. Mas uns dias antes da viagem lera “Eles eram muitos cavalos”, do Luiz Ruffato, que me deixou transtornado. Ruffato tinha sido meu editor-chefe no Jornal da Tarde. Acompanhei um pouco a criação desse livro que reacendeu em mim a vontade de ser escritor. Ao chegar na França, arrumei um computador e comecei a escrever, a escrever… Tinha um esboço de um romance, nos primeiros tempos lá. Mas era algo muito ruim que joguei no lixo. O mundo está cheio de livros ruins, não queria parir mais um. Falando nisso, não gostaria de ter lançado meu segundo romance, “Um lugar para se perder”. O título é bom, mas, para mim, não é um bom livro. Dois leitores muito especiais gostam dele e o elogiam, Maria Valéria Resende e Leonardo Tonus. Mesmo assim, acho um romance estranho, mal resolvido. Uma vez me encontrei com Sônia Coutinho na Livraria Cultura. Ela tinha lido “Um lugar…” e me disse: “Seu livro é estranhíssimo. Você é escritor” (risos).

DA – Ser estranho também é uma qualidade. Como bem disse, o mundo está cheio de livros ruins que, caso fossem ao menos estranhos, talvez seriam melhores. Mas, à parte a memória e as referências literárias, o livro cede espaço para observações de natureza histórica, a exemplo dos capítulos que se dedicam a desvendar os costumes e os produtos da Idade Média. Como foi o trabalho de pesquisa e por que considerou válido incluir essas informações?

ALEXANDRE STAUT – Ah, sim. Sou apaixonado pela Idade Média, literatura, costumes, alimentação, comércio, comunidades urbanas. Estudo por conta própria o período há muito tempo. Li tudo e vi os filmes sobre Fausto, alquimista, astrólogo e mago, protagonista de uma lenda da Idade Média alemã, que teria feito pacto com o demônio, um arquétipo da alma humana e das nossas aflições. Mas gosto também de livros teóricos sobre o assunto. Na França, há muitos. E é possível sentir a Idade Média bastante presente em diversas cidades do interior. Os cemitérios no centro de alguns vilarejos, na frente da igreja principal do lugar, acho fascinantes.

DA – É marcante também a aparição de canções por todo o livro. Algumas delas, inclusive, apresentam o caráter latente de uma trilha sonora dessa época. Em dado momento, você menciona a participação de Gilberto Gil e Jorge Mautner, num festival em Brest; este último, aliás, de quem você é fã e tentou um encontro, que acabou não acontecendo. Por outro lado, a literatura faz parte de um processo muito mais íntimo que mundano. Há a citação de um encontro com o escritor Humberto Werneck, mas nenhuma outra tentativa de buscar no outro o espírito literário. Nos anos em que passou na França, você mantinha, de alguma forma, contato com a literatura brasileira ou mesmo com jovens autores franceses? Chegou a frequentar feiras literárias, eventos que fossem pautados pela literatura?

ALEXANDRE STAUT – Não tinha pensado nisso. O livro tem, sim, mais música que literatura. Foi um período muito musical da minha vida. Inclusive meu encontro com a música eletrônica. Ia dançar quase semanalmente. Meus encontros com escritores aconteciam por meio de programas de TV e de leituras. Incrível a quantidade de programas de TV na França, com a participação de escritores. Eu assistia a todos. Assim, conheci duas autoras que me acompanham até hoje. Anne F. Garreta, que participa do Oulipo, uma figura bem estranha; e Amelie Nothomb, belga que faz muito sucesso na França com seus romances de títulos esquisitos: “A higiene do assassino”, “Antichrista”, “Cosmética do inimigo”, “Biografia da fome”. Nos três anos e pouco em que estive por lá, basicamente eu li. Li em francês. Ler numa língua estrangeira é uma forma de entrar em contato com as sutilezas de tal língua. Isso requer dedicação. Foram anos em que me dediquei a aprender essa língua que para mim era um tanto desconhecida. Lia autores brasileiros recém-traduzidos lá também. Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu. Já conhecia a obra do Caio inteira. Foi bacana lê-lo em francês.

DA – Interessante você citar essa transposição da língua, pois, salvo eventos esporádicos, a exemplo do Ano do Brasil na França, a literatura brasileira parece algo ainda muito limitado a seu próprio território. Você citou Hilda e Caio F., porém, imagino, que deve ter topado com traduções de outros autores contemporâneos. Qual foi sua percepção do interesse da literatura brasileira entre os franceses? Ainda somos vistos pelo viés do exótico, do tropicalismo que exulta suas belezas naturais, seu calor endêmico?

ALEXANDRE STAUT – Estava lá nos tempos anteriores do Ano do Brasil na França, inclusive no momento da festa. O Brasil estava na moda. Traduziram muita coisa boa. Hilda e Caio estavam nessa leva. Era um orgulho chegar às livrarias e ver bancadas de autores brasileiros. Os programas de TV que discutem literatura (são vários, até em canal popular tem!) falavam sobre a gente. Discutiam Guimarães Rosa, liam trechos. Lembro que, em 2005, Lya Luft estava na onda, no Brasil, com os seus livros de autoajuda. Num programa, me lembro, alguém leu um trecho de um desses livros dela, e a apresentadora cortou o entrevistado: “Isso é uma bosta” (risos). Mas não podemos nos esquecer de que, antes da autoajuda, Lya foi uma grande escritora. Hoje em dia, graças ao professor da Sorbonne Leonardo Tonus, a literatura nacional ficou mais em evidência na França. Tudo trabalho do Leonardo! O que ele fez e faz para a literatura nacional por lá já entrou para a história! Há também o trabalho de formiguinha do livreiro e editor Michel Chandeigne, dono de La Librairie Portugaise et Brésilienne, e da Éditions Chandeigne, que já publicou Ferreira Gullar, Affonso Romano de Sant’Anna, Moacyr Scliar, Armando Freitas Filho, Francisco Alvim, Henriqueta Lisboa, Ana Cristina Cesar, Mário Chamie, entre tantos outros.

Alexandre Staut/ Foto: Juliana Carrascoza

DA – Realmente o professor Leonardo Tonus tem feito um trabalho irretocável em prol da literatura brasileira. Mas falaremos disso mais adiante. De volta ao livro, um dos momentos que considero mais tocantes é aquele em que você escala umas pedras à beira mar, onde fica sentado por horas, isolado, escrevendo num caderno. Para mim, essas passagens irradiam toda a narrativa com uma luz de melancolia. O que eram esses momentos para você, afinal? Havia ali mais literatura ou mais autorreflexão?

ALEXANDRE STAUT – Era uma mistura de tudo. Sempre gostei de ficar sozinho, de caminhar, tanto na cidade quando no meio da natureza selvagem. Resolvo cenas de livros em caminhadas, ou então sentado em posição de zazen, principalmente em locais silenciosos. No caso dos momentos de meditação, sentado na falésia do lado esquerdo da cidade de Arromanches-les-Bains, eu olhava os destroços do porto construído pelos ingleses na Segunda Guerra. Havia acabado de ler “Un pedigrée”, do Patrick Modiano (romance sobre os momentos em que seus pais viviam escondidos, por lugares obscuros de Paris, para não serem encontrados pelos nazistas – ainda não traduzido no Brasil). Assim, inspirei-me a escrever um livro sobre meu avô Eduardinho, judeu alemão cuja família migrou para o Brasil. Ele era músico de uma pequena orquestra no interior e dono da funerária da cidade, Pinhal. O livro se chama “Jazz band na sala da gente”. É sua biografia romanceada. Interessante você notar que “Paris-Brest” é um livro melancólico. Você percebeu um traço importante do livro, que também é meu traço. Sou um cara triste. Como Orhan Pamuk, sou um sujeito triste que escreve para tentar ser feliz.

DA – É também nesse instante em que se dá conta de que a escrita é mais forte, em você, que a gastronomia, que o desejo de se tornar um chef. Consegue traçar um paralelo entre o processo de criação e a elaboração de uma receita? Em que a arte culinária e a literatura se aproximam e em que se divergem?

ALEXANDRE STAUT – A escrita sempre foi mais forte em mim do que qualquer outra coisa. É uma necessidade física, real, acho até que só consigo tomar conta do vácuo que vivemos neste planeta por meio da escrita. Talvez ela me distraia da loucura que é estar girando há mais de 700 km por hora, num planeta, sabe-se lá para onde. Quanto a ser chef, nunca o quis. Trabalhei como cozinheiro por uma necessidade momentânea. De qualquer forma, amo cozinhar. Me distrai bastante. Quando estou de saco cheio do mundo literário, vou pra cozinha. Considero a gastronomia uma arte, assim como a literatura. São artes diversas. A gastronomia também é uma coisa mágica. Uma pena que no Brasil muitos intelectuais e até escritores consideram culinária coisa de fresco. Muita gente pensa assim. A gastronomia é um patrimônio da humanidade. É possível relatar a história do planeta Terra por meio dela. Adoro os países em que a gastronomia é tratada como patrimônio; França, Portugal, Espanha, México. Aqui ainda estamos longe disso.

DA – Em compensação, a gastronomia explodiu com um dos carros-chefes de muitos programas de TV. Há canais a cabo, inclusive, que preenchem toda a programação com chefs nacionais e internacionais (e famosos que se acham chefs de cozinha) esbanjando a arte culinária. Esse “fenômeno” acabou por migrar também para a literatura, fazendo com que todas essas celebridades televisivas entrassem na mira das editoras, que abastecem cada vez mais as prateleiras com livros de culinária, de receitas, de viagens relacionadas à gastronomia. Como encara essa fascinação por esse tipo de programa, por livros dessa natureza? E você acredita que, assim como na literatura, há uma banalização da arte culinária; a consolidação de um pensamento de que qualquer um pode cozinhar, assim como qualquer um pode escrever?

ALEXANDRE STAUT – Acho ótima esta explosão do mundo da gastronomia. Acabo de voltar do Piauí, onde fui fazer uma grande reportagem sobre a culinária local. Antes da gastronomia regional entrar na moda, não se bebia cajuína. Disseram-me que hoje tem em todos os bares, vendinhas, restaurantes, supermercados, aeroportos… É a valorização da cultura alimentar.  Por outro lado, as pessoas ainda conhecem mais Nutella do que, por exemplo, o tucupi (caldo da mandioca usado na região Norte, para se fazer vários pratos), ou então dão mais valor ao risoto do que ao baião de dois. Mas, com a popularização da arte gastronômica, espera-se que isso possa mudar um dia. Acho que qualquer um pode cozinhar, como pode escrever. São duas atividades democráticas. A escrita, por exemplo… para escrever basta um pedaço de papel e um lápis. Você pode escrever se nascer rei na Europa ou numa aldeia perdida no Brasil ou na África. Claro que aqui entra a questão do analfabetismo no Brasil, por exemplo. Mas esta já é outra história.

DA – Sinceramente me desagrada essa ideia generalizada de que qualquer um, com papel e caneta, possa escrever. É claro que escrever, sim, mas não fazer literatura. Penso o mesmo da arte culinária. Minha esposa gosta de programas de gastronomia. Certa vez, ela assistia um de competição que, para entrar, o candidato tinha de fritar um ovo; e a maioria não conseguiu. Eu adoro cozinhar, cozinho todos os dias, contudo sei que estou longe de ser um chef. Por outro lado, considero-me um escritor, pois estudo, leio, pratico, entendo as técnicas, os meandros da escrita, e busco, com isso, aperfeiçoar meu texto. Sendo também um crítico literário (escreve para o Valor Econômico), você não acredita que, a despeito de uma importância incontestável, a democracia na literatura tem seu limite na qualidade da narrativa?

ALEXANDRE STAUT – Ah, sim. Também acredito que com papel e caneta não se escreva literatura. É preciso estudar, ler, treinar. Um bailarino, para dar uma pirueta no ar, treina uma vida inteira. Existe uma faísca inicial, que é a inspiração. Depois, o que tem é o trabalho. É preciso trabalhar duro para escrever literatura. Mas ainda acredito que esta é uma arte democrática. O cara precisa de papel, lápis e tempo… além de ler livros, que ele pode comprar por R$ 5, na banca de jornal da esquina, ler de tudo um pouco.

DA – Alguns anos depois de retornar ao Brasil, você lança dois livros: “Jazz band na sala da gente”, de 2010, e “Um lugar para se perder”, de 2012. O primeiro foi uma edição do autor, e o segundo foi publicado por uma editora de pequeno porte. Na ocasião, chegou a procurar um grande selo editorial, mandou o original para a análise de alguns desses? Como avalia essa relação entre um autor inédito e as editoras, no Brasil?

ALEXANDRE STAUT – Não há relação! (risos). Os grandes editores não leem autores em começo de carreira, salvo algumas exceções. Mas até entendo. Editoras recebem 30, 40 originais por dia. Resolvi publicar “Jazz band…” em edição de autor, pois naquele momento tinha uma necessidade quase física de ter um livro lançado. Quando ficou pronto, percebi a importância de uma editora por trás do trabalho. Eu não sabia o que era “preparação de texto”. Para quem não sabe é uma espécie de “direção de arte”, como se faz no cinema. A preparação é essencial. O meu livro saiu com palavras repetidas na mesma página, sem necessidade. Errinhos que só um preparador iria pegar. Quando ficamos muito tempo com um texto, a leitura se torna oração. A gente lê sem se dar conta de cada palavra, da importância de cada palavra no contexto. De qualquer forma, este é um bom livro e merece uma segunda edição, agora caprichada. A dica que dou para quem quer publicar independente: não deixe de contratar dois profissionais antes de imprimir o seu livro, um preparador e um revisor. São trabalhos diferentes, e que só podem ser feitos por pessoas especializadas, que estudaram para isso.

DA – Excelentes dicas, de fato. Outra coisa que você fez, ao voltar ao Brasil, foi criar a São Paulo Review, um dos portais de literatura mais prestigiados nos dias correntes. Como e por que surgiu a ideia de montar a página? E, nesse tempo de existência, a SPR lhe trouxe mais amizades ou inimizades?

ALEXANDRE STAUT – Pois é, sempre li as “Reviews of Books” e percebi a lacuna. O Brasil não tinha nenhuma. Fui com a cara e a coragem e registrei o nome, em 2013. Chamei Viviane Ka, que é do mundo editorial, para ser minha sócia. Em pouco tempo, escritores e leitores perceberam que havia qualidade no trabalho e começaram a nos passar pautas, sugerir resenhas. Surgiu um time muito bom de colaboradores. Nos últimos tempos, a jornalista Ana Weiss se juntou a mim e à Viviane, para fazermos a revista juntos. Ana é uma das jornalistas culturais mais importantes do país. O time está formado e o projeto caminha muito bem. Estamos agora fazendo um plano de negócios para conseguirmos patrocínios, para que possamos ir mais longe ainda. Nunca se sabe, mas acho que consegui mais amigos. Sou contra detonar livros. Sou um jornalista/editor/crítico ecológico. Acho que não vale a pena gastar celulose e energia elétrica para falar mal de escritores e livros ruins. Melhor deixá-los no limbo.

Alexandre Staut / Foto: Macus Steinmeyer

DA – Há pouco você mencionou a questão do analfabetismo no Brasil como um dos principais adversários da literatura. Do tempo em que passou na França, o que trouxe de experiência da relação entre educação e literatura? O que representa a literatura, na vida comum de um francês? E o que poderíamos transferir para nossa realidade?

ALEXANDRE STAUT – Convivi bastante com crianças e adolescentes na França. Eles leem por toda parte, no metrô, andam pelas ruas com livro aberto, na frente da cara. As escolas incentivam a leitura desde muito cedo. Minha enteada, na época uma adolescente, andava com livros para cima e para baixo. Os seus professores passavam tanto obras clássicas quanto contemporâneas. Lembro-me dela comentar com prazer autores que conversam com nosso momento histórico, como Amelie Nothomb. A leitura por lá parece estar incorporada ao modo de vida francês. Talvez seja o país que mais valoriza a literatura. Aqui, falta o trabalho de base. Falta incentivo do governo. É uma questão um tanto complexa, né, não sei se um dia será resolvida. De qualquer forma, não acredito na frase que dizem por aí de que brasileiros não leem.

DA – Falando em professores, quero trazer à conversa o Leonardo Tonus, professor da Universidade Paris-Sorbonne, que tem feito um trabalho inestimável em prol da literatura brasileira na França, em especial no reconhecimento dos escritores contemporâneos. O grande evento que coordena, “Primavera Literária”, no qual autores brasileiros participam de debates na capital francesa, contou com sua participação numa das edições. Como foi voltar à França, desta vez com status formalizado de escritor?

ALEXANDRE STAUT – Participei da “Primavera Literária” em seu primeiro ano, em 2014, junto do Michel Laub, Julián Fuks, Marcelino Freire e Ana Martins Marques. Íamos à Sorbonne e falávamos com os alunos de estudos lusófonos do Leonardo Tonus sobre nossos livros, discutíamos literatura em língua portuguesa, de forma geral. O trabalho do Leonardo na Sorbonne é uma beleza. Ele valoriza cada um dos seus alunos, no que eles têm de mais genuíno. Conheci alguns que não gostavam de estudar e que depois do Leonardo viraram críticos literários, escritores. Mas antes disso, em 2013, ainda a convite do professor e de passagem pela França, dei uma palestra para sua turma, também nas dependências da Sorbonne. Senti um misto de medo, timidez, vaidade. Chegando à sala, todo mundo me deixou super à vontade. Para minha surpresa, estavam na minha palestra Humberto Werneck, Daniel Antônio, ótimo jornalista cultural brasileiro, entre diversos ex-alunos do Leonardo. Tive a sorte de ficar amigo do Tonus, que me chamou para criar o “Outono Literário” ao seu lado, e ao lado da Mirna Queiróz (Revista Pessoa) e Simone Paulino (editora Nós).

DA – Iria perguntar mesmo sobre o “Outono Literário”, realizado este ano em São Paulo, que surgiu como uma derivação da “Primavera Literária”, de Paris. Como foi pegar um evento de sucesso, com suas próprias características, e transportá-lo com mesma relevância para o Brasil? E quanto ao futuro: vocês têm a intenção de torná-lo regular? Buscar parcerias, replicá-lo em outras cidades, ampliar a programação de debates, inclusive com a presença de autores internacionais?

ALEXANDRE STAUT – O “Outono” nasceu no primeiro semestre deste ano, uma união de forças do Leonardo Tonus, da Mirna Queiróz, Simone Paulino e minha. Fizemos eventos na livraria Blooks, com lançamento de livros; numa escola da Zona Leste, onde acontece o Sarau dos Mesquiteiros; na Unibes Cultural; e no Bistrô Ó Chá. Reunimos mais de 20 escritores de todo o país, para falarmos sobre literatura no Brasil. Houve também um evento no Rio de Janeiro. O “Outono” nasceu como proposta de integrar discussões de norte a sul do País, e como evento a se realizar anualmente. Logo mais divulgamos a agenda para 2017.

DA – Desde o ano passado, têm ganhado relevância debates sobre a literatura de gênero, chamando atenção para uma participação mais ampla de mulheres, de negros e de homossexuais tantos nas editoras quanto em festivais literários. Na condição de curador e de autor, como se relaciona com essa discussão?

ALEXANDRE STAUT – No Brasil, o racismo é endêmico e cultural. Por isso, infelizmente, só nos resta uma solução: as cotas. No mais, basta ver os autores e os livros que fazem sucesso, tanto nos cadernos culturais quanto entre o público. A literatura brasileira é branca, heterossexual e “macha”. Com o perdão do trocadilho, acho um saco isso.

DA – Retornando ao livro, há dois momentos bem simbólicos de transição: a sua saída do Brasil para a então desconhecida cidade de Brest, e depois a sua primeira volta ao Brasil, quando se dá conta de que ainda sua estada na França não tinha chegado ao fim, daí você retorna. Mesmo que não tenha qualquer citação, esses momentos me trouxeram à memória o famoso poema de Manuel Bandeira, “Vou-me embora pra Pasárgada”. Consegue traçar um paralelo entre esses anos e os versos de Bandeira?

ALEXANDRE STAUT – Este poema me persegue. Gosto tanto, que incluí um trecho na minha peça de teatro “Marquesa”, encenada pela atriz Paula Cohen, no festival Satyrianas, semanas atrás. Há uma vontade de fugir para encontrar a felicidade, um desejo de percorrer o mundo, como um cigano, ver paisagens. Há também um sarcasmo e uma ternura que são próprios do Bandeira e de muitos autores nacionais. Quando escrevo, tento olhar para o Brasil com essa ternura… mesmo que esteja escrevendo sobre a França, ou qualquer outro lugar do planeta.

DA – Lá, no começo da nossa conversa, falamos sobre os três livros que você levou para França. Se soubesse que algum francês viria passar uma temporada no Brasil, qual dos três livros você recomendaria que ele trouxesse?

ALEXANDRE STAUT – Recomendaria que comprasse três livros aqui… para que entendesse um pouco mais a gente. Para conhecer a vida política brasileira, “Memórias de um sargento de milícias”. Para conhecer a sociedade brasileira, “A hora da estrela”. Para conhecer a alma do brasileiro, “Grande sertão: veredas”.

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

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1 comentário

  1. Excelente entrevista, que permite descobrir um escritor e ter vontade de ler suas obras.

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