Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

 

Em entrevista concedida à Diversos Afins, em 2013, Eduardo Lacerda apontou dois desafios especiais para o crescimento da editora Patuá, que havia montado fazia apenas dois anos: publicar livros diferentes e únicos, que inovassem o caráter editorial de alguma forma; e conseguir gerar lucro com isso.

Passados três anos, a realidade financeira do selo não se distingue da de qualquer editora pequena e independente no Brasil, cujo editor, além de se preocupar com a qualidade artística da obra, “tem de embalar cada livro, levá-los aos correios, pagar contas em vários bancos diferentes, implorar para que alguém os compre e os leia, enviar para jornalistas, formalizar contratos, fazer páginas no site, tirar ISBN, emitir nota fiscal, fazer postagens no Facebook para divulgação dos livros”.

Quanto ao primeiro desafio, no entanto, pode-se dizer que foi superado com louvor. Com mais de 500 títulos lançados, a Patuá é hoje referência no mercado editorial para os autores que procuram uma maneira de debutar na literatura. Mas o reconhecimento não depende apenas dos estreantes. A notoriedade trazida por prêmios e pela presença constante na lista de indicados atrai, cada vez mais, escritores renomados que encontram, na editora, um novo porto de lançamento para seus trabalhos.

Na entrevista a seguir, Eduardo Lacerda faz um balanço dos últimos seis anos à frente da Patuá, tocando em temas que constituem um cenário realista do mercado editorial brasileiro, refletido a partir da experiência de se comandar uma editora que segue com a postura de independente. Com lucidez e otimismo, o poeta que se tornou editor fala ainda sobre vitórias e frustrações, mercado literário, premiações, formato digital, leitor no Brasil e da razão de seguir acreditando no que faz.

“Nossa expressividade ocorre, acredito, ao fazer algo relevante não só para a literatura como um todo, mas algo relevante para nossas vidas, para as vidas dos escritores e leitores que compartilham de uma mesma época. Um leitor pode ser tão importante quanto milhares de leitores”. Uma leitura recomendada para quem já está e para aqueles que pretendem ingressar nos caminhos sinuosos – e nem sempre recompensadores – do universo do livro.

 

Eduardo Lacerda / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Passados quatro anos do lançamento da antologia poética “Outro dia de folia”, sua carreira de escritor segue em pausa. É mais fácil ser editor que poeta?

EDUARDO LACERDA – Eu não tenho uma carreira como poeta, tenho um livro publicado, composto por poemas escritos em um momento da minha vida no qual escrever era importante. Hoje escrever não é mais importante, acho muito importante ler e, como minha profissão, acho importante o trabalho de editor, o qual eu exerço com paixão, a paixão que eu não tenho mais como poeta. Mas também não é fácil ser editor, hoje leio muito menos do que lia há dez anos. Cuidar de uma editora pequena e independente me exige a leitura, mas também embalar cada livro, levá-los aos correios, pagar contas em vários bancos diferentes, implorar para que alguém os compre e os leia, enviar para jornalistas, formalizar contratos, fazer páginas no site, tirar ISBN, emitir nota fiscal, fazer postagens no Facebook para divulgação dos livros. A edição, como trabalho, vai além e fica aquém da leitura, para o bem ou para o mal. Mas acho que o mais difícil é ser leitor do que ser poeta, considerando que ser leitor exige isolamento, reflexão, convívio com os textos e muita recusa. Já muitos poetas (e mesmo eu, quando fui poeta e agora, como editor) buscam o que é público, o reconhecimento, a leitura do outro, a crítica do outro, a venda do livro, a participação no evento. Quando somos apenas leitores, nos bastamos a nós mesmos, mas um poeta e também um editor não se basta sozinho, precisa do outro, o outro é imprescindível na busca de si mesmo. Se eu pudesse, seria apenas leitor.

 

DA – Fundada em 2011, a Patuá carregou, durante um tempo, o rótulo de ser uma editora voltada para a poesia. Hoje, o catálogo é bem variado, inclusive com proporções igualitárias entre romances, antologias de contos e antologias poéticas. Essa realidade já fazia parte da ideia original, quando planejou o foco da editora, ou foi algo inevitável, que ganhou forma de acordo com os pedidos de leitura de originais que chegavam?

EDUARDO LACERDA – Um editor precisa ser apaixonado pelo que lê e precisa ser um bom leitor daquilo que pretende editar. Eu não sou um bom leitor de literatura infantil ou de literatura infantojuvenil, por isso não me arrisco muito a editá-la. Eu reconheço sua importância, mas acho que outros e outras profissionais farão uma edição muitíssimo melhor do que a minha. Sou um bom leitor apaixonado de poesia e, talvez, um leitor mediano, mas apaixonado, de prosa. É natural que a poesia tenha um espaço maior dentro da editora, minha formação anterior, como editor, foi editando fanzines, jornais e revistas literárias. Eu convivi, na última década, com centenas de poetas antes de efetivamente editar seus livros, de muitos já tinha editado poemas nesses jornais, revistas, zines, articulado eventos, saraus. É uma relação anterior que tenho com os poetas e com a poesia. Mas gosto muito de prosa, de contos e de romances, e é natural querer publicá-los também. Contudo, o número de poetas publicados ainda é muito maior.

 

DA – Outra característica da Patuá era de ser um porto para autores estreantes. Com o amadurecimento da editora, porém, escritores de renome, com títulos lançados pelos chamados grandes selos, começaram a ser publicados pela Patuá. Você percebeu isso como uma consequência da incapacidade das grandes editoras de manter esses autores ou como a procura destes por um selo pequeno, que oferece uma participação ativa nas etapas do processo de feitura do livro? Chegou a se preocupar quando esses contatos começaram a acontecer? O que procura um escritor consagrado ao entrar em contato contigo?

EDUARDO LACERDA – Ainda somos uma editora focada nos autores estreantes. Nesse primeiro semestre, publicamos dezenas de autores e autoras estreantes e, dos ditos consagrados, ou mais experientes, apenas o novo livro de poemas do Ronaldo Cagiano e o novo romance da Micheliny Verunschk, que apesar de muito reconhecida como poeta, teve seu primeiro – e muito premiado – romance publicado com a Patuá. Ano passado publiquei as antologias poéticas de dois autores que me formaram, mas não posso dizer que são consagrados, apesar de algum reconhecimento, que são o Sergio Cohn e o Fabio Weintraub, mas eles sempre foram publicados por editoras pequenas ou médias. Claro, temos muitos autores que publicaram seus primeiros livros com outras editoras pequenas ou de forma independente, muitos que já não são estreantes, mas que publicaram seu livro de estreia com a Patuá. Acho que um catálogo de 500 títulos, como o nosso, permite uma pluralidade de autores e autoras. Dependendo do recorte feito, a impressão pode ser uma ou outra.

 

DA – Nesses seis anos de existência, a Patuá acumula premiações expressivas, tais quais o Jabuti e o São Paulo de Literatura, além de ter autores da casa regularmente entre os finalistas. Qual é o efeito real de um prêmio para uma editora de pequeno porte/independente?

EDUARDO LACERDA – Em um primeiro momento, ganhar um prêmio aumenta o “prestígio” da editora, o que acaba atraindo muitos escritores querendo publicar conosco. Após o resultado positivo em algum prêmio, recebemos um número três vezes maior de originais. Também vendemos um número maior, mas não expressivo, de exemplares do livro premiado. Acho que prêmios são importantes, precisam existir, assim como os eventos literários, mas eles não definem a literatura. No caso da Patuá, minha felicidade em ganhar um prêmio é saber que rompemos uma lógica de que somente as grandes editoras ganham esses prêmios. Já ganhamos duas vezes o Prêmio São Paulo, duas vezes o terceiro lugar do Jabuti, de poesia e de contos, dois Prêmio Guavira (um prêmio menos conhecido, do Mato Grosso do Sul), tivemos muitos autores semifinalistas e um finalista do Oceanos/Portugal Telecom, tivemos já cinco autores finalistas do Jabuti e, em 2017, a Patuá tem dois livros finalistas do Prêmio Rio de Literatura.

 

DA – Hoje você já consegue selecionar o original que irá publicar? O que leva em conta nessa escolha? E de que forma lhe chateia a maneira de um autor se portar diante da editora, pelo fato de ser independente? Talvez algo que certamente este nunca fizesse, caso fosse recusado ou tivesse de negociar com um grande selo.

EDUARDO LACERDA – Eu sempre selecionei o original que publicamos. Não cobramos a edição, não ganho nada publicando algum livro sem acreditar nele, nem lucro monetário, nem um bom catálogo, posso até errar, mas erro por vontade própria, não porque o autor está pagando pela edição. Leio tudo o que publico, mas não posso dizer que consigo ler tudo o que recebemos para publicar, mesmo se me dedicasse apenas à leitura de originais, ainda assim o tempo necessário seria maior do que possível. Por isso (e por muitos outros motivos) acho bom que existam outras editoras trabalhando bons livros, não entendo uma outra editora como concorrente. Já sobre como os autores se portam, os autores e autoras são o que há de melhor e de pior no meu trabalho. Não teria conquistado nada sem a confiança de algumas pessoas, de alguns escritores e escritoras incríveis que me ajudam, apoiam, leem e compram nossos livros, que são muito generosos. Ao mesmo tempo é desgastante ter que responder algumas mensagens absurdas de madrugada, de pessoas que não confiam em nosso trabalho, que se estivessem em uma editora maior tratariam o editor de outra forma, mas eu, hoje em dia, ligo pouco para isso, para esses problemas. Em seis anos de trabalhos e mais de 500 títulos publicados, apenas três autores saíram com problemas da editora, brigados, alguns poucos outros tiveram problemas, mas que foram solucionados. Acho que a maior parte dos autores entende o que é e como funciona o trabalho de uma editora pequena e independente.

 

Eduardo Lacerda / Foto: arquivo pessoal

 

DA – A Patuá também oferece serviços editoriais para autores que optam por pagar por seus livros. Muito se discute sobre o papel do editor nesse tipo de situação; se o fato de o autor custear a tiragem não faria com que houvesse um olhar mais benevolente sobre os defeitos da obra. O que pensa sobre isso?

EDUARDO LACERDA – Do nosso catálogo de 500 títulos, posso afirmar que não chega a 10 o número de livros pagos pelos autores, talvez um pouco mais, mas provavelmente até menos. Todos os outros livros foram pagos por mim, por meio da venda de livros a leitores. E desses 10, apenas de um me arrependo, que posso admitir que publiquei por necessidade financeira e não por escolha minha e isso com consciência do autor. Um livro pago pela autora e do qual me orgulho é o nossa “Teresa – vida e morte de uma santa suicida”, da Micheliny Verunschk. O livro teve patrocínio da Petrobras, precisava de uma tiragem de 1500 exemplares e a autora tinha os recursos do prêmio para isso. O livro é excelente, de uma autora já reconhecida e que me enviou o original para leitura, original do qual gostei, era um livro que teria publicado gratuitamente (claro que com uma tiragem menor). Outros livros pagos pelos autores eu teria publicado gratuitamente, aliás, é o que faço quando pedem orçamento, leio e avalio, se aceito a publicação paga é somente se for por opção do autor. Dinheiro assim não me seduz, embora precise de dinheiro para manter o meu projeto. Pagar pela edição não é um problema, grandes e bons autores pagaram por suas edições. Ótimas editoras realizam esse trabalho com um critério e qualidade ainda maiores do que o meu. Não acho um mérito ou me vanglorio de não fazer muitos livros pagos, acho que é a minha opção de trabalho, que me traz alguns resultados positivos, como manter minha coerência editorial, que é até bem incoerente; e negativos, como deixar a editora quase sempre com problemas financeiros, não graves, mas também muitas vezes falta dinheiro para alguns projetos que gostaria de realizar.

 

DA – Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, a proliferação das pequenas editoras proporcionou um aumento expressivo de novos autores no mercado. Muitos por meio dessa condição de pagar pela publicação de seus livros. Sendo assim, temos uma faixa etária cada vez mais baixa de escritores estreantes, muitos deles claramente despreparados para entregar uma obra de qualidade. Ao ter contato com alguns originais, você chega a conversar com esse tipo de autor, aconselha que espere um pouco, lapide a escrita, forme-se como leitor primeiro, antes de pensar em publicar o primeiro livro?

EDURADO LACERDA – Poucos escritores querem ouvir conselhos, muito menos os mais jovens. Com a facilidade de publicação, qualquer escritor encontrará uma forma de publicar seu livro de estreia (ou dezenas de livros por ano), seja por uma editora tradicional, seja por uma plataforma de autopublicação, seja pelo Wattpad, pela Amazon, por um blog, pelo Facebook. É uma opinião muito pessoal, muito, mas eu acredito que a literatura é um direito, é direito ler, é direito escrever. Se a facilidade gera banalização (e gera), também cria oportunidades de aumentarmos o número de escritores e de leitores, o que é ótimo. Não há como nos beneficiarmos de uma condição sem trazer junto vários de seus aspectos negativos. Agora, como filtrar esses aspectos negativos, isso é um ótimo desafio.

 

DA – O lançamento do primeiro livro, sobretudo quando o autor é jovem, é envolto por uma camada espessa de vislumbre sobre o que é o mercado e o meio literário. Muitas vezes, é difícil para um autor compreender que a carreira de um livro não depende do quanto ele ache que dará certo, que será um sucesso. Você lida com esse tipo de ingenuidade e, posteriormente, relatos de desapontamento? É papel do editor transmitir para o autor uma realidade que vai além daquela contida em seu livro?

EDUARDO LACERDA – Sim, lidamos com as decepções e frustrações de dezenas de escritores todos os dias. Não só com os autores mais jovens, mas também aqueles mais velhos, mais experientes. É comum receber ou publicar o livro de um autor mais velho, que já lançou livros nos anos 80 ou 90 e ver a decepção com as vendas, com a repercussão, diferentes da que tiveram há algumas décadas. Escuto muito desses autores “meu primeiro livro vendeu 300 exemplares na noite de lançamento, não vou vender menos do que isso”. Quando o livro não chega aos 50 exemplares vendidos, a decepção é enorme, alguns chegam a culpar a editora, que nunca trabalha de forma suficiente. Também os meios de divulgação são muito diferentes, alguns autores esperam ainda que o jornal irá noticiar o lançamento, mas sabemos que isso não ocorre mais. O lançamento de um livro, exceto para o autor e para a editora, não é mais um acontecimento social, que desperta interesse público (exceto em cidades menores, nessas cidades a dinâmica de um lançamento é muito interessante, os jornais locais noticiam, pessoas “importantes” da cidade muitas vezes comparecem). Podemos somar às decepções, além da recepção e das vendas, a inexistência de crítica literária (existem ainda alguns bons resenhistas, mas que não dão conta da leitura de milhares de lançamentos todos os anos) e os prêmios literários, poucos e que nem todos vão ganhar, mesmo com bons livros. Essa decepção ou frustração gera, em alguns autores e autoras, uma ansiedade, uma necessidade de lançar vários livros em um curto espaço de tempo, na expectativa de que o próximo livro alcance o sucesso que o anterior não encontrou. Assim um livro vai substituindo o outro sem que haja um tempo mínimo de trabalho. O editor deve explicar, mas também entender (muitos não entendem), que um livro é um trabalho a longo prazo. Um livro não pode morrer dentro do catálogo da editora e tem que continuar acontecendo, mesmo que os resultados venham bem devagar. É bem difícil, mas é possível.

 

DA – A Patuá trabalha com pequenas primeiras tiragens, entre 50 e 200 exemplares. Muitos desses livros acabam não alcançando leitores e, muito menos, os cadernos culturais e a chamada crítica especializada. Ter um livro publicado, assim, acaba sendo mais um capricho. Isso lhe angustia de alguma forma? E, diante de um cenário em que a literatura tem cada vez menos espaço nos jornais e nas revistas, como avalia a importância dos sites, blogues e demais plataformas digitais voltadas para a literatura?

EDUARDO LACERDA – Me angustia, mas não considero um capricho ter um livro publicado com uma baixa tiragem. A culpa não é do autor, da autora ou da editora, temos um problema gravíssimo de falta de leitores e descaso pela literatura. O escritor, a escritora, eles escrevem. A editora publica. Ambos trabalham para que o livro chegue ao leitor. Se o livro é bom, se o autor, se a autora, trabalham sua literatura e levam isso a sério, uma hora a literatura se sobrepõe ao que não é literatura. Mercado editorial não é literatura. O que eu faço, editar livros, não é literatura. Literatura é o que está escrito e que nós damos suporte, um bom suporte, que pode ajudar que a literatura chegue ao leitor, mas quem escreve é o escritor e lançar um livro para poucos leitores, embora seja triste, não é apenas um capricho. Os sites, blogs etc são muito importantes. Excelente literatura está sendo produzida e publicada diretamente nessas plataformas. Autores e autoras mais jovens, que ainda nem conhecemos, estão se formando, lendo, comentando, refletindo, a partir de literatura divulgada pela internet.

 

DA – Falando em digital, li uma entrevista sua, faz alguns anos, em que defendia apaixonadamente o livro físico. Ainda tem a mesma opinião sobre a relevância da obra em papel? Não há, num plano futuro, a intenção de lançar os livros da Patuá também em formato digital?

EDUARDO LACERDA – Eu ainda sou apaixonado pelo livro impresso, acho que nunca deixarei de ser, mas não sou contra ou avesso ao livro digital. Pelo contrário, acho incrível a possibilidade de termos milhões de livros acessíveis, o que pode ajudar a democratizar o acesso ao livro (pode, talvez ainda não esteja, porque formação de cultura e hábito de leitura não estão relacionados apenas com a disponibilidade de livros).  Futuramente também a Patuá terá livros digitais, mas ainda não é um plano. Editar um livro pode ir além da plataforma ou suporte escolhido para ele existir, se impresso ou se digital. Eu ainda me importo muito com a possibilidade do encontro que o livro impresso permite, a festa de lançamento, as leituras públicas (embora muitos poetas leiam hoje em dia em seus celulares), as trocas de livros, as feiras, o livro impresso permite ainda um encontro entre pessoas que eu gosto muito. É um romantismo meu, ao qual me permito. Talvez esse encontro exista no livro digital também, talvez um dia passe a existir para mim.

 

Eduardo Lacerda / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Ao contrário de muitos editores, que preferem trabalhar nos bastidores, você é um editor ativo, que participa de eventos e está sempre divulgando seus autores. A Patuscada, um misto de livraria e bar, é possivelmente a melhor representação desse tipo de atitude, cuja intenção maior é congregar autores e leitores. Essa é também uma maneira de ter uma contrapartida às livrarias, de projetar os livros que não estão nas vitrines dos shoppings literários? E já houve a intenção de levar os livros da Patuá para essas prateleiras?

EDUARDO LACERDA – Eu adoro livrarias, não detesto a forma como elas trabalham com as editoras, é simples. Acho que o Brasil tem pouquíssimas livrarias e que precisamos incentivar e criar milhares de outras, através de leis que promovam a isenção de alguns impostos para as pequenas livrarias (não para as grandes) e de outras ações. Aliás, eu costumo dizer que mesmo São Paulo não tem livrarias, temos algumas megastores e algumas boas livrarias em regiões ricas da cidade, como a Paulista, Jardins, Pinheiros, Vila Madalena etc e em alguns shoppings, essas mais para livros de alta vendagem, os chamados best-sellers. Não estou fazendo um julgamento de qualidade, apenas apontando como e o que trabalham. Será raro, nessas livrarias de shopping, encontrarmos livros até de autores conhecidos, reconhecidos e consagrados, como, por exemplo, Clarice Lispector ou Mário de Andrade. Poesia, talvez, aquela utilizada no vestibular do momento ou a lançada pelo último BBB poeta ou pelo Gregório Duvivier (novamente, não é um julgamento de valor, mesmo porque gosto de alguma poesia dele). Mas se pensarmos nas regiões de classe média, nas mais pobres ou nas periferias da cidade de São Paulo, não temos mesmo livrarias. Precisamos discutir o modelo como trabalham as livrarias. É impossível pensar que uma empresa (a livraria) pega produtos (o livro) em consignação, com frete de ida e volta por conta dos fornecedores (o editor), pede 50% de desconto no preço final do livro, depois de efetivar a venda ainda pede mais 120 dias para pagamento, se o livro for danificado o exemplar é devolvido da mesma forma, com prejuízo à editora. Até pouco tempo atrás esse sistema ainda garantia que nossos livros seriam expostos nas livrarias, mas atualmente a situação é ainda mais absurda, porque a maior parte das livrarias apenas cadastram os livros em seus sites e só nos pedem o exemplar se for vendido. Cuidar de um bar e livraria é uma experiência incrível, ainda assim com suas (minhas) frustrações. Vendemos pouquíssimos livros, muitos escritores aparecem por lá para beber, mas nunca levaram um livro. Enfim, não vou ganhar no grito, meu trabalho continua e, se fosse fácil, muita gente estaria fazendo.

 

DA – Dando uma olhada nas listas dos mais vendidos, fica evidente a hegemonia dos grandes selos, sobretudos aqueles que trazem, em seus catálogos, traduções de best-sellers internacionais. Como fazer uma editora independente ganhar expressividade nesse cenário em que a literatura contemporânea brasileira, sobretudo a composta majoritariamente por autores desconhecidos, está longe de representar a preferência dos leitores?

EDUARDO LACERDA – Como disse, a literatura, o que é literatura, não se mede pelo número de leitores; a literatura existe, resiste e será sempre assim. Nossa expressividade ocorre, acredito, ao fazer algo relevante não só para a literatura como um todo, mas algo relevante para nossas vidas, para as vidas dos escritores e leitores que compartilham de uma mesma época. Um leitor pode ser tão importante quanto milhares de leitores. Eu acredito nisso ou já teria abandonado a edição independente.

 

DA – O brasileiro é um leitor ruim?

EDUARDO LACERDA – Não podemos culpar o indivíduo pelo sistema. O Brasil, como país, tem um projeto político de não formação de leitores. É um projeto mesmo, político, social, cultural e econômico de um não interesse para formação de leitores. Começa com o descaso com a educação, mas somente a educação não garante que teremos leitores, passamos também por diversos períodos de proibição da circulação de livros e literatura. Nossa história é uma história de descaso com o livro, com a literatura e com o leitor.  E não podemos chamar de leitor ruim quem não lê e quem lê aquilo que consideramos literatura ruim. Sim, acho que existe uma boa literatura, mas, como já disse, acredito que a leitura e a literatura são direitos, direito de ler, direito de escrever, direito de publicar. Experiências em saraus de periferia, por exemplo, que dão a palavra para a pessoa comum, de todas as profissões e de todas as cores, de todas as classes sociais, como chamar essas pessoas de leitores ruins? São leitores, talvez alguns ainda em formação, mas leitores. Estão se apaixonando pela literatura, pela poesia, estão escrevendo. O que poderá explodir e acontecer a partir disso até mesmo de boa literatura em nossa visão tão limitada do que pode ser boa literatura? Por outro lado, temos – eu tenho, eu pelo menos quero ter – o dever de ajudar a mudar esse país, de pensar um país que ame sua literatura, que ame o livro, seja ele impresso ou digital, que ame seus escritores, que ame seus leitores, sejam eles bons ou ruins.

 

DA – Olhando para o Eduardo Lacerda que, em 2013, criou a Patuá, consegue enxergar uma certa inocência na maneira como ele enxergava o mercado literário? E, passado esse tempo, qual a melhor coisa que ser dono de uma editora lhe proporcionou?

EDUARDO LACERDA – O Nelson Rodrigues que disse que sem paixão não dá nem pra chupar um picolé, também não se faz muita coisa sem inocência, nem mesmo amar é possível sem inocência. O grande desafio é continuar um pouco inocente e apaixonado. Eu descobri um caminho seguro nesse mercado literário e editorial, recebo os livros, leio, consigo, de alguma maneira, escolher alguns bons títulos, envio para um grande artista fazer a concepção de capa e projeto gráfico, mando pra gráfica, faço o lançamento, envio para jornalistas e críticos, vendo um pouco, pago os custos, faço o próximo livro, eventualmente ganhamos algum prêmio. Certo, não é só isso, isso é um resumo, mas é um caminho seguro. Como ser inocente e apaixonado e pensar que, sabendo disso, de algo que já dá bons resultados, posso pensar em algo diferente, que me contradiga, que me oponha ao meu trabalho e me renove? A melhor coisa de ser dono de uma editora é fazer os amigos que eu faço. Escritores e escritoras, sim, mas também pessoas admiráveis. Não sei se meu trabalho pode mudar o mercado editorial ou literário, não sei se estamos fazendo alguma história. Mas eu sei que estou fazendo a história da minha vida e de alguns/algumas escritores e escritores. E fazer sua própria história, de forma apaixonada, já me parece bem importante.

 

DA – Vale a pena trabalhar com livro no Brasil?

EDUARDO LACERDA – Vale, vale muito! Acho que se tivesse seguido uma carreira de professor, que é a minha formação, se tivesse terminado a graduação, feito um mestrado, um doutorado, talvez eu tivesse uma estabilidade financeira um pouco maior. Mas nunca teria me divertido tanto, feito tantos amigos, lido tantos ótimos livros.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

 

 

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3 Comentários

  1. Excelente entrevista . Perguntas e respostas inteligentes, entre duas pessoas que conhecem aquilo sobre o que estão falando. Eduardo Lacerda é um Dom Quixote, necessário como são os dons quixotes nessa terra tendendo ao deserto, e uma pessoa maravilhosa. Uma alma querida.

  2. Muito bom! Eduardo, sempre direto, sincero e elegante nas respostas. E figura já mais que necessária neste meio!

  3. Excelente entrevista! Uma leitura prazerosa e esclarecedora.

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