Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

Desobediência. Palavra que carrega em si um peso imediato. A uns, espanta e até mesmo repele; a outros, é frente de acolhida. Em tempos de cinismo, hipocrisia, reavivamento ultraconservador e de uma teatralizada desonestidade intelectual a nos rondar, ser desobediente pode se revelar uma valiosa e efetiva maneira de se estar no mundo.

É conveniente frisar que desobedecer não é uma atitude gratuita de simplesmente nadar contra a corrente de um ordenamento jurídico, político, social ou econômico com um banal artifício retórico. Significa entender-se como sujeito permanente de transformações, o qual luta acima de tudo para tornar presente a sua vez e voz num panorama necessário de existência pela preservação daquilo que lhe é demasiadamente humano e caro, a identidade própria.

Diante de um cenário de adversidades, o qual não é apenas secularmente constituinte de um país como o Brasil, há vozes que precisam se fazer presentes e, desse modo, marcar suas preciosas posições de existência. Aliando-se a este tipo de entendimento, uma poeta como Daniela Galdino faz do seu caminhar um permanente movimento de afirmação nos mais plurais níveis. E presenciamos esse vigor expressivo não apenas nos seus escritos, mas sobretudo nas frentes em que atua.

Dona de uma voz transgressora que demarca e expande a sua consciência do que representa ser mulher num mundo como o nosso, Daniela também se espraia pelos territórios da performance, do ensino e do ativismo cultural. Este último vem muito envolto numa noção sócio-política de engajamento frente a questões ligadas à visibilidade das mulheres, bem como aspectos importantes associados às temáticas de gênero.

A autora do emblemático livro de poemas Inúmera (Ed. Mondrongo), através do qual deixa transbordar toda a sua íntima, plural e peculiar visão de mundo, agora dedica o continuar de seus passos para a difusão do coletivo de poetas e fotógrafas Profundanças 2. Celebrando sua segunda investida editorial, esta obra privilegia as expressões de mulheres que se insurgem contra o manto da invisibilidade, o qual, dentro de uma nociva construção social, tentam lhes imputar cotidianamente.

O momento presente, pontuado nesta entrevista, pede que falemos sobre os desdobramentos de Profundanças 2, sua pungência diante dos duros cenários que pululam na atualidade. Urge também falarmos sobre Missivas, performance que Daniela Galdino tem realizado e que alerta para silenciamentos em torno da mulher. Por tudo isso, o agora se volta para ouvir uma artivista que cada vez mais abre seus caminhos para o diálogo com outras vozes. É preciso tirar os móveis do lugar, desarranjar viciadas estruturas, abrir caminho para o outro, sua verdade e inteireza.

 

Daniela Galdino / Foto: Ana Lee

 

DA – Na apresentação de Profundanças 2, você emprega o termo re-existência como um símbolo que situa as expressões das mulheres dentro de um contexto de afirmação identitária. Qual o sentido maior de fazer com que tais vozes não se calem?

DANIELA GALDINO – O sentido da desobediência, sobretudo. Em tempos tão ameaçadores à nossa sensibilidade, escrever literatura, atuar na coletividade em busca de leitoras/es, devolver os insultos cotidianos com poesia (por exemplo) é desobedecer à ditadura do pavor e do desencanto. Então, resta-nos dizer e nos associar a outres que também têm muito a dizer. É por isso que na apresentação da antologia Profundanças 2 também afirmo que “agora estamos irmanades pelo grito” e que “odiadores não representam a totalidade do mundo”. Entendo a re-existência como um intenso desafio de reelaboração de si e dos lugares que ocupamos ou pelos quais transitamos. Não podemos sucumbir à desesperança. Isso seria um total desrespeito àquelas que nos antecederam e, com luta/sonho/sensibilidade, abriram veredas para que atravessássemos. Não penso que a literatura deva se dar ao luxo de ignorar esses desafios. A palavra literária é grávida de vida, de cotidiano, de embates, de delírios, de transgressões.

 

DA – Da primeira edição até aqui, o que mudou fundamentalmente? O momento atual, o qual nos toma de assalto com toda sua nebulosidade, configurou uma nova tomada de consciência? 

DANIELA GALDINO – A primeira edição de Profundanças é de 2014. De lá pra cá, o país foi assolado por um golpe já denunciado pela imprensa, inclusive internacional. Em linhas gerais, essa foi a principal mudança para pior. No entanto, isso não significa que as outras formas de violência, as opressões (raciais e de gênero, por exemplo) sejam recentes. Não mesmo. A consciência crítica que nos leva a combater tais opressões também não é recente. Na literatura, a genealogia dessa consciência crítica é extensa, nos leva para o século XIX, se pensarmos em escritoras/es negras/os aqui no Brasil. O problema é que os espaços de consagração ou divulgação literária (como a universidade, as academias de letras, a escola, festas/festivais literários e mesmo o mercado editorial) historicamente têm tornado invisíveis as produções literárias que revelam discursividades dissidentes. Recente é o acordar (ainda lento, por sinal) de produtores de eventos, escolas, editoras para as “outras” vozes – negras, feministas, lgbti, etc. – e suas criações literárias. Alguns espaços sequer as reconhecem, como é o caso de boa parte das academias de letras, ainda insistindo naquele discurso desgastado: literatura é literatura e se basta, não deve ser “contaminada” por outras questões. Entendo que o estético e o político não devam ser apartados. E assim tenho sobrevivido como artista que dialoga com outres fazedores de artes. Estão nos bombardeando a todo instante. À literatura cabe a “tranquilidade” de se colocar à parte disso? A minha resposta é um estrondoso não. E, em verdade, a literatura não está isolada no mundo, há intensas formas de ativismo literário, de artevismo (como se diz).

 

DA – Com estas vozes dissidentes a que você se referiu, uma nova perspectiva de linguagem surge, algo evidenciada sobretudo pela forma de grafar certas palavras. E, sabemos, isso potencializa uma importante vertente discursiva. Acredita que tais mudanças no trato linguístico precisam também ser incorporadas nas práticas formais?

DANIELA GALDINO – Sim. Bem sabemos que a língua é reelaborada no social, que está em constante transformação. Em Profundanças 2, por exemplo, temos a presença de duas artistas trans não binárias, sendo uma delas da fotografia. Daí, generalizar pelo masculino se torna incômodo, não só para essas artistas, como para nós que construímos o projeto na coletividade. No âmbito do projeto passamos a grafar o termo “Fotógrafes”, como uma provocação para que outros gêneros sejam representados para além do binarismo masculino-feminino. Entendemos que não se trata só de uma troca de palavras, mas de um amplo sentido relacionado às formas de igualdade de gênero, o que, desejamos, devem ser incorporadas nas práticas cotidianas.

 

Daniela Galdino em Missivas / Foto: Ana Lee

 

DA – Quando você observa o resultado de um projeto como o Profundanças, consegue vislumbrar a presença efetiva de alguma transformação no campo das representações sociais?

DANIELA GALDINO – Profundanças é um projeto que está em curso, estamos no segundo livro num período de pouco mais de dois anos. Então, transformações serão percebidas no processo. Como é um projeto que combate a invisibilidade de escritoras no cenário da literatura, já se torna provocativo, ainda mais por ter a visualidade como algo importante. As duas antologias publicadas trazem, além dos poemas/contos/crônicas, ensaios fotográficos. Isso não é aleatório. Desejamos difundir imagens dessas escritoras em seus lugares de origem e/ou atuação, evitando qualquer forma de objetificação. Importante, também, por se tratar de um projeto que traz, em sua maioria, escritoras inéditas, muitas delas negras. Então, essa visualidade, esse contato de leitoras/es com imagens dessas escritoras, é uma forma de oposição à invisibilidade a que me referi há pouco. Além disso, Profundanças provoca deslocamentos, encontros. Cito como exemplo a poetisa Dayane Rocha que, apesar de ser pernambucana, não conhecia a cidade do Recife. Foi a partir de uma atividade do projeto (uma roda de conversa realizada no Espaço Pasárgada, em agosto/2017) que Dayane esteve pela primeira vez na capital do seu estado. Eu estava com ela e presenciei uma cena profundamente tocante. Chegamos ao Recife numa quinta-feira à noite, a cidade naquele intenso movimento de rua (trânsito frenético, pessoas saindo do trabalho, ônibus lotados). Nos dirigimos ao prédio onde ficamos hospedadas e, da janela de um vigésimo andar, vi Dayane chorando muito e observando os prédios imensos que restringem a visão da paisagem. Ela me disse: “quero voltar pra Brejinho”. Na manhã seguinte, eu me acordei com um poema que ela escreveu bem ao modo da tradição do Pajeú, o seu sertão (e ainda nos deixou um poderoso mote: “Recife, tu és mais dura/ que coração sem poeta”):

 

Buzinas, carros, barulho
O teu céu reflete prédios
Tua gente vira entulho
Por conta dos intermédios.
Tua paz é estressada
Até mesmo a passarada
Canta uma nota incompleta
Cantando na partitura…
Recife, tu és mais dura
Que coração sem poeta.

 

Trago esse exemplo para dizer que os encontros têm acontecido. Encontro com outras, com nós mesmas, com as estranhezas cotidianas… e isso tem nos transformado a todo instante. Dia desses, numa conversa in box, Renailda Cazumbá (escritora baiana que está em Profundanças) me disse: “você é uma refazedora de novos lares! Lares poéticos”. Somos colegas de trabalho na universidade e, aos poucos, comecei a desconfiar que Renailda escreve. Perguntei pela primeira vez, em 2013, ela disse que não. Na segunda vez, não perguntei. Já enviei o convite para ela participar de Profundanças, em 2014. Inicialmente ela não aceitou, depois foi convencida. Dito e certo: ela me enviou arquivo com poemas datados (alguns do final da década de 80). A partir disso, Renailda tem sempre relatado como foi difícil atribuir a si o nome de poeta; como tem disso uma revolução interior: se ver ao lado de outras mulheres que escrevem. Estou falando de uma mulher negra nascida no recôncavo baiano e vivida no sertão. Uma mulher que me diz: até a minha casa deixou de ser a mesma depois disso (a sua primeira experiência de publicação literária).

Já podemos falar de abalos na representação de si. E isso também envolve leitoras, leitores que temos encontrado pelo caminho. Pessoas diferentes nos mais diversos espaços (ruas, escolas, universidades, coletivos culturais, redes sociais, eventos etc) que têm nos feito relatos sobre a importância de se reconhecer na escrita e na imagem das escritoras que estão nos dois livros. Acho que a primeira poderosa transformação a que posso me referir é essa.

 

DA – Você crê que a literatura voltada para o ambiente virtual encerra uma substancial dinâmica de construção das identidades?

DANIELA GALDINO – Eu entendo que a literatura divulgada em ambientes virtuais nos insere em outras dinâmicas de diálogos com leitoras/es. Para você ter uma ideia, o primeiro volume de Profundanças já foi lido em escolas públicas, tivemos notícia de que circulou em turmas de um programa de formação de educadoras/es no sertão baiano. Ao mesmo tempo, numa pesquisa na internet, descobri que uma docente da UENF e IFF, a Analice Oliveira Martins, iriá apresentar uma comunicação acadêmica em Portugal (o Seminário Mundial de Estudos da Língua Portuguesa, outubro/2017). Nesse trabalho a profa. discute antologias literárias brasileiras e ensino, dentre as obras analisadas está Profundanças 1. Imagina a minha surpresa! Outro exemplo da repercussão: em novembro deste ano a mestranda Elis Matos (UESC) estará numa congresso na Argentina, apresentando um trabalho que aborda o feminismo não binário a partir do poema “Enquanto meus pés balançam”, de JeisiEkê de Lundu, que foi publicado em Profundanças 2.

No nosso caso, publicar um livro virtual resolve uma questão: a falta de recursos financeiros. Tem mais: Profundanças é um projeto independente, já nasceu na contramão e até o momento não vislumbrei captação de recursos via edital, por exemplo. Pode ser que no futuro façamos a opção pelo livro impresso. Por enquanto, a virtualidade tem nos levado ao encontro de leitoras/es distantes e desconhecidos. Eu, por exemplo, não conheço a Profa. Analice Martins, só depois de encontrar o resumo do seu trabalho na internet, fiz contato por e-mail.

Por ser um projeto que envolve imagens (ensaios fotográficos), sei que Profundanças demandaria custos relativamente altos. Isso talvez limitasse a quantidade de exemplares a serem impressos e, consequentemente, reduziria o público que teria acesso. O livro virtual tem nos dado uma maior liberdade nesse diálogo palavra-imagem e a grande aventura é saber que a circulação é ainda mais imprevista. Talvez tudo isso influencie a construção de identidades.

 

DA – Sua performance Missivas traz à tona importantes reflexões sobre a invisibilidade da mulher em nosso tempo. Desde o início do espetáculo, já somos tomados de assalto pela metaforização de um peso através da melancia que você carrega e vai passando, ao longo do caminho, por mãos masculinas. O que dizer desses sinais de alerta? 

DANIELA GALDINO – São incontáveis os sinais de que o patriarcado e seus tentáculos imputam a nós, mulheres: a inferioridade, invisibilidade, o aniquilamento. As violências se manifestam de várias formas e, o pior, vão se cristalizando como normalidade. A violência não tem existência por si só. É uma fabricação social e, como tal, necessita de sujeitos que movam essa roda. Por outro lado, se a violência é criada em sociedade, é nesse mesmo espaço que ela deve ser desconstruída, desfeita. Como proceder? Denunciando, (des)educando, descolonizando mentes e saberes, refazendo práticas cotidianas. O meu espaço de atuação tem sido a arte: a poesia e a performance. Como performer, tenho como prioridade sair do palco tradicional e ocupar as ruas e outros lugares aparentemente inadequados para a atuação artística. Prefiro me inserir no cotidiano das ruas, dos pontos de ônibus, dos mercados, das feiras – com seu ritmo, com seus sons, gritos e silêncios. Tem sido uma experiência fortíssima, pois a rua me traz o imprevisto, a possibilidade de interagir diretamente com desconhecides. E o contato – seja pelo choque ou acolhimento – faz de cada apresentação uma estreia. Tenho buscado esse diálogo, primeiramente, com as mulheres com as quais me encontro; mas é imprescindível deslocar, provocar e dialogar com os homens também. Só acredito em arte que potencialize as transformações (de si, de nós, do mundo).

 

DA – Como você percebe a reação do público masculino diante de uma performance que o põe no cerne de uma discussão?

DANIELA GALDINO – Missivas se divide em dois espaços: a rua, com um cortejo; e um ambiente que minimamente garanta condições adequadas para a trilha sonora e interpretação dos poemas. Nesses espaços as reações dos homens têm variado entre o espanto, o incômodo e até mesmo o desprezo. Explico essa última reação: na rua a performance implica em entregar uma pesada melancia para os homens, enquanto entrego cartas poéticas para mulheres e também digo frases secretas no ouvido delas. Ao mesmo tempo em que interajo com cartas e sussurros às mulheres, os homens seguram a melancia. Muitos já recusaram, teve até um, em Garanhuns (PE), que me hostilizou. Outros ignoram completamente a minha presença, desviam o caminho. A maior parte dos homens têm se incomodado, mesmo “aceitando” segurar a melancia. O desconcerto é visível, eles não sabem o que fazer com esse peso. Há, também, a reação na segunda parte da performance, quando interpreto os poemas e outras formas de interação com o público se desenvolvem. Geralmente fazemos uma roda de conversa após a performance e não houve uma só vez, desde a estreia (em março de 2016), em que não houvesse depoimentos de homens que assumem estar perturbados. Sinceramente, sinto prazer ao perceber essa perturbação que nada mais é do que o contato com as nossas palavras de mulheres dissidentes, com a ação performática e o convite para participar, acolher em si os desajustes. Importante dizer também que Missivas tem trilha sonora ao vivo e a proposta é convidar um músico a cada apresentação/temporada, que traz o seu repertório para dialogar com a proposta. Tenho feito questão de convidar homens para fazer a trilha porque dessa forma eu também os provoco, enquanto artistas, a ler/ouvir e se contaminar com o que nós, mulheres, escrevemos. Até então os parceiros musicais têm revelado incômodos e verbalizado isso nas rodas de conversa. Eles entram na performance e também percebem que, naquele instante, não são protagonistas; talvez aprendam a ouvir, não silenciar… Enfim, lógico que as transformações não são imediatas, mas só em gerar esse incômodo, já é maravilhoso pra mim enquanto artista dissidente.

 

DA – E o que dizer da interação das mulheres em meio às provocações sugeridas  por Missivas?

DANIELA GALDINO – Tem sido uma experiência incrível do cortejo à roda de conversa que acontece pós-performance. Estou circulando com Missivas desde março de 2016 e em todas as apresentações aprendi algo forte. As mulheres têm me ensinado muito. A forma de interação é diferente. Não digo que elas sintam mais do que os homens – isso nunca poderemos medir, o território do sensível -, mas a resposta tem feito do ato performático um intenso espaço energético. Tenho várias histórias para contar sobre Missivas, comecei a elaborar o diário da performance, sempre escrevendo dias depois de cada apresentação. Na verdade, relatos curtos que me façam lembrar do que aconteceu. E esses relatos trazem as mulheres na linha de frente. São várias histórias. Cito três.

Em 2016, numa das apresentações, uma jovem teve um ataque de choro e aquilo me chamou muito a atenção. Após a roda de conversa eu notei que ela estava abraçada com dois colegas gays e que os três choravam muito. Fui lá e ouvi isso: algo na performance disparou a memória dolorosa do estupro que a jovem havia sofrido há dois anos. Fiquei paralisada, a performance não fala de estupro, mas a força de tudo o que a moça tinha presenciado e vivenciado em Missivas ativou essa dor. Chorei junto com ela e os amigos dela. Algo que não foi publicizado, ficou entre nós. Difícil esquecer o que aquela moça me disse: “quando eu fui estuprada, era inverno, eu estava de calça, botas, casaco… e ainda assim o cara me violentou… ou seja, nenhuma mulher pede pra ser estuprada, nada justifica o estupro, nem mesmo se a vítima estiver com roupas curtas. Violência é violência”.

Recentemente, em Itabuna, eu estava fazendo o cortejo de Missivas para que um professor da UFSB (o Rafael Guimarães) fizesse o registro audiovisual que vai gerar uma vídeo-performance com fragmentos do trabalho de várias artistes. No cortejo, logo de longe avistei uma mulher que me chamou a atenção, me dirigi a ela e disse a frase secreta. Ela ficou paralisada, olhando profundamente nos meus olhos. Percebi que era uma mulher com transtornos mentais, retribuí a profundidade do olhar. Segui o caminho porque nessa parte da performance priorizo a comunicação com o olhar, sem mais palavras. Só que a mulher me seguiu, me perguntou: “o que é isso que você está fazendo? Por que você me disse aquilo?”. E eu não respondia com palavras, apenas com o olhar. Mas ela não se deu por vencida, me seguiu de novo, segurava a barra da minha saia e repetia a pergunta. Ela parou na minha frente, olhou de forma profunda e falou: “Não fique assim, você está tão bonita”. Depois, segurou no meu braço (sem impor força) e de forma acolhedora me disse: “Você tá bem? Tá precisando de alguma coisa?” Aquilo me emocionou, eu chorei retribuindo o olhar profundo daquela mulher e segui o meu caminho.

O terceiro exemplo foi em Ilhéus. Também no cortejo, me deparei com essa cena numa praça: uma idosa vendendo churrasquinho. A praça fica perto de um ponto de ônibus. No momento, havia incontáveis pessoas, pois o horário era de final de expediente. Apesar do intenso movimentar, ninguém me atraiu mais do que aquela mulher de marcas profundas na face.

Performance, pra mim, é um mergulho no imprevisto. A minha guia são as energias do momento. Eu também tenho amor pela rua – esse espaço-turbilhão onde o instante se consagra no diálogo com desconhecides. Pois sim. A energia me levou até aquela senhora trabalhadora. Cheguei perto dela e disse a frase secreta. Os olhos dela ficaram inundados; os meus, cheio de marés. Por alguns segundos nos olhamos fixamente. O instante se consagrou. Segui o meu rumo, mas me virei para trás e, novamente, conversei com o olhar inundado daquela mulher. Fiquei forte. Prossegui.
A fotógrafa Izabella Valverde (a qual não conheço) consagrou o instante pela segunda vez. E a cada momento em que olharmos para essa imagem, reviveremos o instante e acolheremos em nós as lutas, as inundações e a singeleza dessa senhora. A rua me ensina a cada ato performático. Sou grata a todas as mulheres que tenho encontrado pelas veredas…

 

Daniela Galdino em Missivas / Foto: Izabella Valverde

 

DA – Em que medida a convergência entre poesia e performance amplia as possibilidades de libertação pela arte?

DANIELA GALDINO – Nessa convergência só vejo desmedida. Sou uma artista em constante reelaboração, o que significa dizer que não meço as formas de ampliação do processo libertador. Quando as fronteiras entre linguagens artísticas e entre artista e público são rasuradas, o inesperado se apresenta. Gosto disso. Demorei para desenvolver essa consciência, sabe? Primeiro me assumi poeta. Há sete anos tirei a performer que estava no armário. Já havia feito teatro universitário nos anos 90, foi uma experiência incrível. No entanto, o mergulho na criação poética foi me trazendo uns estremecimentos que inicialmente eu não soube processar. Acolher e reler em mim esses impactos redefiniu caminhos. O entrelugar, a atuação híbrida que atrai a poesia para a performance e vice-versa têm me ensinado bastante. O caminho está se construindo nos caminhares, nos encontros, desencontros (comigo mesma e com o público). Esse processo já é libertador.

 

DA – Quem é Daniela Galdino? 

DANIELA GALDINO – Uma mulher desobediente, sonhadora, fazedora de incêndios íntimos. Sou uma incansável artista que não vê separação entre o estético e o político. Aprendente e desaprendente. Sou uma “rameira das palavras”, “uma interrogação vagando com pressa”. Sou esta que vive atenta ao mundo invisível e seus poderes; atenta às outras mulheres – seus desejos, delírios. Um poema que representa esse estado é “Arada” (publicado em Profundanças 2 e inserido no meu próximo livro, Espaço Visceral). Eis:

 

arada

 

ostento cara de terra
espírito de poço
índole mar

remota felicidade
sempre tive
irrigada padeço

estranheza, pra mim,
é abre-te sésamo

vagueio em cova funda
porque estou semente

gozo no sereno
inerte
numa pedra de amolar

corro as sete freguesias
e fastio não me alcança

levo fachos de gritos
aonde me querem muda

replantando-me
dou cestos fartos

 

Daniela Galdino em Missivas / Foto : Ana Lee

 

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Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos, filmes e no ato apaixonado de tocar bateria. Atualmente, é mestrando em Letras pela UESC, cuja linha de pesquisa reúne Literatura e Cultura.

 

 

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1 comentário

  1. Excelente entrevista. Missivas e Profundanças são marcantes. Vida longa a todes!

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