Pequena Sabatina ao Artista

Por Sérgio Tavares

 

A boa literatura também se faz com o não dito. O que o autor guarda entre as dobras da tessitura narrativa, o algo inexplícito que se torna uma voz secreta modulando além dos limites da história, na apreensão do leitor. São as lacunas acortinadas em mistério, as sombras do enredo que concentram, nos silêncios, seu maior impacto.

Ninguém detém a noite explora os cantos de obscuridade que tem lugar na natureza humana. Em seu segundo livro de contos, o escritor pernambucano Nivaldo Tenório compõe uma galeria de personagens mobilizados por desejos e terrores interiorizados e, portanto, muitas vezes inauditos. Ainda que situado no espaço das cidades pequenas, dos povoados distantes, o palco das verdadeiras ações está dentro desses indivíduos incapazes de se desatarem de conflitos e de atos cruéis para significar suas próprias existências. Um ambiente de reconhecimento onde é sempre escuridão adentro, ou uma escuridão que vive dentro de outra escuridão.

Diante dessas tétricas experiências da vida, a força simbólica reside na morte e em suas representações. O autor promove as relações entre animais noturnos e objetos umbrosos sob o signo da finitude, transformando o universo abstrato, de crises e surtos mentais, numa atmosfera de devaneio através da qual se desvela o passado de perdas e de impura formação. A prosa de ficção vagueia pelas rachaduras da realidade, com naturalidade e consciência imaginativa, revelando um autor pronto, habilidoso e maduro, detentor de todas as chaves que permite a imersão do leitor e nunca os deixa sair, mesmo ao alcançar, transformado, o ponto final.

Em entrevista exclusiva, Nivaldo Tenório mergulha em seu recente trabalho e examina sua atração pela subjetividade temática, apontando os caminhos que percorre da ideia de ignição até a conclusão de um conto. Além disso, explica a sua preferência pelas narrativas breves, a estreia tardia na escrita, suas influências e angústias criativas. Natural de um estado-celeiro de grandes escritores, o autor analisa a presença do regionalismo no cenário atual da literatura brasileira, a nova cena de autores nordestinos, a proliferação das editoras pequenas e seus efeitos, e a importância dos prêmios literários e da crítica especializada. Um olhar apurado e franco sobre o meio literário, que reflete as intermitências do próprio ofício da escrita. “Escrever talvez seja o modo mais cruel de perder tempo”, observa.

 

Nivaldo Tenório / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Ainda que tenham uma construção geográfica bem concreta, os contos de “Ninguém detém a noite” são frequentados por personagens que lidam majoritariamente com questões relacionadas ao plano subjetivo, no qual se impõem signos e metáforas como representações da finitude. Essa é uma característica muito marcante do seu trabalho, que vem de sua coletânea de estreia, “Dias de febre na cabeça”. O que lhe motiva nessa exploração interna? Acredita que transitar pelo secreto de seus personagens é uma forma de consistir verdade ao seu fazer literário?

NIVALDO TENÓRIO – Grato pela análise, Sérgio. Acho que foi O’Connor quem disse que a ficção trata de tudo o que é humano e nós somos feitos de pó, e se alguém despreza o fato de ser pó, é melhor não tentar escrever ficção. Ela tem razão. Somos pó e parece que não há nada o que possamos fazer a respeito. Herdei isso de meu pai; um melancólico desconsolo com a nossa finitude. Lembro-me que era comum, nos momentos mais felizes ele de repente nos chamar a atenção para o fato de existir a morte, que estamos sujeitos a este fato inelutável: um dia simplesmente deixaremos de existir. Isto roubava-lhe metade da alegria. Falo no passado, mas ele continua vivo, embora com a idade sobreveio o avanço inescrupuloso de uma doença demencial que, pelo menos, deixou-lhe o saldo de não pensar mais na morte. Então herdei dele esse desconsolo e com o tempo, acho, se transformou em obsessão e tema de meus contos, pois o que vejo é a dimensão trágica do mundo muito além do alcance de nossas ações. Nossas escolhas não são sempre deliberadas, pensadas e, mesmo que fossem, são elas que definem fatalmente nossas vidas ou é a força das circunstâncias? Duvido do livre arbítrio. E é essa dimensão humana, marcada sobretudo pelo efêmero, que é o objeto de minha literatura. Alguém poderia dizer que disso já tratou exaustivamente Faulkner, Philip Roth – dois autores que continuo lendo depois de muitos anos – eu poderia citar outros, são muitos, mas o fato é que é isso o que sempre me fascinou na boa literatura – não posso esquecer de Machado – a capacidade de sondar o humano. E tudo isso, claro, não é nada se não se consegue progresso na forma, e transitar pelo secreto, como você tão bem colocou, foi o modo que encontrei de transformar minha obsessão – que divido com tantos outros – em literatura. Gosto do texto que sugere mais do que diz, por isso exploro as camadas do conto buscando o sentido secreto por trás das ações de personagens, e não estou interessado nos grandes feitos, mas nas coisas mais comezinhas, é ali que encontramos o humano.

 

DA – Essa humanidade cotidiana tem um apelo muito forte no histórico da literatura pernambucana, seu estado de origem. Só para citar dois grandes autores, João Cabral de Melo Neto e Osman Lins alimentavam seus fazeres literários com uma matéria oriunda de um plano subjetivo, mas que ao mesmo tempo refletia características particulares do lugar em que nasceram e estavam inseridos. Outro aspecto era trazer para a ficção momentos de suas vivências. Partindo da menção ao seu pai, o quanto o fato de ser pernambucano, de ser nordestino, influencia na escolha de seus temas? A sua literatura é também alimentada por experiências pessoais?

NIVALDO TENÓRIO – Quando eu era só um garoto e morava numa periferia pobre de minha cidade não havia muita coisa bonita do que se orgulhar, a família sofria os reveses da pobreza, mas meu pai conservava certo orgulho tão anacrônico quanto suas lembranças da fazenda onde nasceu, e de seu velho pai, um modesto e próspero plantador de café que também ostentava fama de valentia. Vovô e a fazenda desapareceram, a herança dividida entre tantos irmãos não deu pra nada. Então, papai, que não conheceu a pobreza quando era menino, fazia das tripas coração para que não sofrêssemos tanto com a nossa. Por exemplo, não queria que os filhos trabalhassem, nós devíamos nos dedicar aos estudos enquanto ele se matava como pequeno negociante do ramo de confecções. A primeira vez que trabalhei de verdade – se é que podemos chamar de trabalho – foi quando me alistei para o serviço militar. Mas a pobreza estava ali, nem eu nem meu irmão desfrutávamos de coisas que meninos da nossa idade e de famílias mais remediadas podiam dispor. Por volta dos 13 anos me interessei por livros. Sentia-me seduzido pelo objeto, sonhava poder comprar os livros da Bibliex – biblioteca do Exército – que eram anunciados na TV preto e branco. Eu não sabia o que aqueles livros continham. Eram livros, isso parecia bastar. Veja, Sérgio – agora você vai entender por que precisei recorrer a esses dados biográficos – eu acho que vivi numa bolha, construída com o esforço de papai e mamãe, fui um menino quieto, solitário, mal saía de casa e, quando descobri o prazer da leitura, os livros eram os únicos endereços possíveis. Lembro-me de passar um período das férias escolares inteiro lendo Anna Karenina. As coisas lá fora eram o resultado do esforço de meu pai, e não era muito, apenas o suficiente para sobreviver. Um sobrevivente não se sente especial, mas ler Tolstói me fazia sentir especial. O livro de Tolstói eu consegui na Biblioteca Pública Municipal, a bibliotecária me deixava levar emprestado os livros, e assim li Victor Hugo, Dumas, Rabelais, Balzac, e não foi nada programado, os livros mais bonitos eram os clássicos universais, eram os que mais me atraíam. Também tinha Machado de Assis, Lima Barreto, Monteiro Lobato e outros, mas naquela época só me interessava pelos autores estrangeiros. Talvez eu buscasse neles geografias diferentes da minha. Aqueles livros com histórias que se passavam tão longe, no tempo e no espaço, me garantiam uma distância maior da pobreza e daquele lugar que as circunstâncias me fizeram meu. E agora que falo isso, penso no que diz o José Luís Passos na apresentação do livro, de que os contos ambientados em cidades pequenas aspiram a uma maior largueza espiritual através da viagem ou alusão à cultura estrangeira. Então, respondendo à pergunta, acho que quanto ao tema – deste livro pelo menos – ser filho de meu pai e herdar algumas de suas idiossincrasias foi mais forte que ser pernambucano ou nordestino e quanto à experiência pessoal, acho que algumas estão nos contos sim, mas transformadas de tal jeito, que ninguém que tenha partilhado comigo tais experiências será capaz de reconhecê-las.

 

DA – É curioso você citar esse seu interesse inicial apenas por autores estrangeiros, pois me coloca diante de uma característica marcante da sua prosa; ou talvez a falta dessa característica marcante. Embora seja um autor nordestino, seus contos, ao contrário de uma lista imensa de novos e velhos autores, não trazem uma linguagem regional ou são ambientados num cenário expressivamente nordestino ou historicamente nordestino. Desde que começou a escrever, você se preocupou em não se enquadrar no que foi rotulado de “literatura regionalista”? Ou você acredita que é um processo natural da nova literatura brasileira ter um aspecto mais globalizado, independente da região onde é feita?

NIVALDO TENÓRIO – Não há dúvida de que um dos melhores – senão o melhor – capítulo da produção da literatura brasileira se deu a partir de 1930 com o Regionalismo de Gilberto Freyre – certamente um de nossos gênios – e falar de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e outros dessa geração é falar do cânone da Literatura Brasileira do Século XX. Guimarães Rosa também é regionalista como Faulkner, é o escritor regionalista do Sul dos EUA. Mas, quando hoje se taxa um escritor de regionalista, parece que por trás há uma clara intenção de segregação. E eu não sei se você já notou, Sérgio, mas a mim parece que esse rótulo só serve para o escritor nascido no Nordeste, talvez a culpa seja das novelas das oito da Rede Globo, e todos os coronéis, mocinhos e mocinhas que carregavam no sotaque baiano. Não sei. Conheço escritores no meu estado que não gostam de ser chamados de regionalistas só porque suas histórias são ambientadas no Nordeste. Ronaldo Correia de Brito não gosta, Raimundo Carrero tampouco, e eles têm toda razão. Quanto a mim, posso garantir, não houve intenção nenhuma de querer evitar o rótulo, nunca me vi pensando na questão, os contos eram escritos e só me dava conta da ambientação deles não evocar o Nordeste quando alguém me chamava a atenção para o fato. Confesso que acho algo desnecessário, principalmente num conto, o autor se preocupar em dizer que sua personagem parou pra descansar no trecho tal da Conde da Boa Vista, no Recife, ou que seu carro foi guinchado da BR Luís Gonzaga, em São Caetano, até Caruaru. Ao mesmo tempo, acho que não é isso de descrever o ambiente ou não que vai determinar se o conto presta. Apenas não acho necessário. Nunca estive interessado no homem ou mulher de Recife ou de São Paulo ou da pequena cidade onde moro, minha Garanhuns de clima ameno, localizada mil metros acima do mar e seus 130 mil habitantes, que há anos nem sobe nem desce no censo, pois lá impera a imobilidade. Estou interessado sim nos homens e mulheres e no que eles possuem de humano, não importa se transitam na Avenida Santo Antônio ou Quinta Avenida. Outro dia li a entrevista de um escritor brasileiro, desses que andam na moda. Ele dizia que não acredita nessa coisa de “ser brasileiro”.  Não sei o que pensaria José de Alencar se um vidente lhe dissesse que mais de cem anos depois dele um escritor importante e brasileiro faria tal declaração. Alencar e seu projeto de construção da identidade cultural do Brasil, ele e seu romance ambicioso em conter toda geografia. A mesma reação teria o Mário de Andrade, que, ao modo dos artistas de sua geração e seu caráter anárquico, também ambicionou dar continuidade – de um modo diferente, claro, crítico e coisa e tal – ao tal projeto de construção da identidade cultural. Macunaíma é sem dúvida o romance tese dessa empreitada. Mas o fato é que o tal escritor da entrevista talvez não esteja enganado. Quase cem anos depois dos gritos e berros que ecoaram no teatro municipal de São Paulo, ainda estamos em formação e a única conclusão que chegamos é que não somos negros nem brancos nem índios. Mas teve um tempo, Sérgio, que eu achava estranho o fato de gostar tanto dos romances americanos da década de 20, por exemplo, ambientados na França e que falam de homens e mulheres – de quem uma escritora se referiu como geração perdida – vivendo o entre guerras e a frustração de ser humano e o quanto isso representa de impotência e fragilidade. Cheguei a escrever para um amigo, lamentando essa falha no meu caráter. Por que eu me sinto mais identificado com Fitzgerald do que Graciliano, e por que “Kind of blue” me encanta mais do que Samarica Parteira? Não estou dizendo que nossos escritores e músicos sejam melhores ou piores. Estou dizendo que um livro ou disco, escrito ou gravado quase cem anos atrás e milhares de quilômetros longe de meu país me encanta e me causa felicidade. De algum modo e apesar de todo estranhamento, eu, nascido em Pernambuco, Nordeste do Brasil, me encontro ali. Vislumbro meu reflexo. E como minha literatura primeiramente nasceu do reflexo de meu gosto de leitor, isso talvez responda tua pergunta.

 

DA – Aproveitando que falou de rótulos e da criação de estereótipos, queria me aprofundar nesse assunto e perguntar sobre a relação dos autores que não estão nas chamadas rotas Sul-Sudeste do mercado literário. Durante muito tempo (e ouso dizer que a imagem permanece fora do Brasil) os livros dessa região eram consumidos em função de seus aspectos exóticos, sertanistas. Hoje, a impressão que tenho é que melhorou, baseado no reconhecimento de autores citados, como Ronaldo Correia de Brito, Raimundo Carreiro e José Luiz Passos, além da grande Maria Valéria Rezende e de novos autores, a exemplo de Débora Ferraz e Franklin Carvalho. No entanto, você, que vive a realidade dessa região, como enxerga o interesse das editores e dos leitores (e, por que não, também dos críticos) para com os autores fora desses centros? Você acredita que há, ou já sofreu, algum tipo de discriminação pelo fato de não fazer parte de um círculo específico, de não socializar com o editor X ou com o autor Y?

NIVALDO TENÓRIO – Acho que o problema da dificuldade de ser lido ou editado não está no fato de viver, de fazer literatura no Nordeste. Acredito que problemas similares encontram escritores espalhados no Brasil, mesmo no Sul e no Sudeste. A questão é de outra ordem e tem a ver com leitores. Poetas e contistas – com raras exceções – não estão exatamente na ordem do dia. Fazer o tipo de literatura que eu faço significa escrever quase exclusivamente para outros escritores. Às vezes, tenho a impressão de que estamos presos numa espécie de autofagia. Nos eventos de literatura escritores falam para escritores, enquanto o resto do mundo está lendo o último livro do Dan Brown, do Paulo Coelho ou do Stephen King etc. Uma amiga minha, também escritora e que mora em Portugal, me diz que lá é a mesma coisa. Acho que vivemos a crise do leitor. Thomas Mann, num ensaio sobre Tchekhov faz a sua mea culpa e reconhece que não levava a sério a forma breve do conto, estava interessado nas grandes catedrais dos romances de fôlego. Não é o caso do leitor de hoje, este só está interessado no livro da moda, em bruxos e vampiros, e necessita, mais do que ninguém, de muita autoajuda para suportar a existência. É o que aquece o mercado. Outro dia vi, no Globo News Literatura, a Luciana Villas-Boas, a antiga editora da Record, hoje agente literária, que costumava aconselhar escritores a não escrever conto ou poesia porque não vende, falar de uma dessas novas autoras, surgidas na internet e que escreve excelentes livros, inspirada no “Cinquenta tons de cinza”. A Luciana garantia que não se tratava de mero pastiche da E.L. James, como se isso fosse uma garantia do talento literário da moça. Essa autora, de quem nos fala a Luciana, provavelmente não vai ser resenhada por você, Sérgio, mas, num tempo incrivelmente curto, já vendeu mais de 100 mil exemplares. Não quero parecer pessimista ou despeitado, mas é a realidade. Também sei que você não estava se referindo a esse tipo de livro, quando me fez a pergunta, mas é preciso entender que primeiro o problema é de leitores. Não há leitores interessados em literatura, falo de alguém que vai a uma livraria para comprar a nova tradução do Gombrowicz porque está a fim de ler um bom livro, um livro instigante. E não vale se for da área, nada de jornalista cultural, crítico ou escritor, falo de um cara comum, que dirige um táxi ou é médico ou estudante de engenharia. Então, Sérgio, não é morar longe do centro – embora isso atrapalhe um pouco, sem dúvida – o maior problema. Já foi por isso que Osman Lins pediu demissão, juntou os trapos e trocou Vitória de Santo Antão por São Paulo, mas isso foi na década de 60, quando não existia internet.

 

DA – A sua resposta é muito pertinente e me conduz a duas reflexões. A primeira é relacionada ao que chamou de crise de leitor, diante da qual estou completamente de acordo. O caso é que, na contramão dessa situação preocupante, temos um cenário literário onde nunca se publicou tanto quanto hoje. Isso tem a ver, óbvio, com o surgimento de inúmeras editoras pequenas e com a possibilidade cada vez mais acessível da autopublicação. Qual, na sua opinião, será o efeito dessa equação que não fecha e que se torna gradualmente mais complexa? Acredita que a facilidade com que se publica neutralizou um filtro editorial e, atualmente, a quantidade alimenta um catálogo contumaz de livros não lidos?

NIVALDO TENÓRIO – Você tem toda razão quando usa o termo contramão. De fato é muito fácil publicar um livro hoje, as editoras pequenas surgem como resistência, mas também como negócio, uma vez que na maioria delas é o autor o responsável em pagar a gráfica. Além do livro, temos a internet, mas apesar dela e sua facilidade e sedução, a publicação em papel continua o sonho de consumo e o fetiche da maioria de quem escreve um livro e deseja vê-lo publicado. É uma equação mesmo, e para mim esquizofrênica, uma vez que me confirma a suspeita de que no Brasil – não sei lá fora – existem mesmo mais escritores do que leitores. E a maior parcela dela é de um tipo estranho de escritor, a parcela de escritores que não compram livros, logo não leem. Conheço alguns do tipo, quase sempre se consideram injustiçados e quando a gente pergunta o que estão lendo respondem que não leem porque temem a famigerada influência. Algo em que notamos um grande zelo pela própria escrita. Fico imaginando como seria aquecido nosso mercado livreiro se todos os escritores comprassem livros. E não sei, Sérgio, confesso que não consigo explicar esse fenômeno de tanta gente escrevendo e publicando, sempre achei que o escritor surgia por causa de amor e obsessão pelos livros – acho que foi meu caso – ou como resultado de uma grande experiência, do tipo que é preciso registrar no papel para alertar a todos de um grande mal ou de uma grande injustiça, o genocídio de um povo, por exemplo ou por algo – e vou citar Augusto dos Anjos – como uma vontade absurda de ser Cristo para sacrificar-se pela humanidade, mas acho que é sentimentalismo da minha parte. Tantos escritores talvez seja só uma forma – para muitos deles, pelo menos – de querer aparecer na foto. O homem nunca gostou tanto da própria imagem como nos nossos dias. Mas nem tudo é ruim; contrariando o tal filtro editorial, fico muito feliz quando é incluído, entre os finalistas de grandes prêmios, autores autopublicados ou de pequenos selos editoriais. Já faz muito tempo que lamentamos não existir mais crítica literária nos jornais, lamentamos a morte de cadernos de literatura etc, isso talvez seja o que mais atrapalha, mas apesar de toda dificuldade – em razão dessa quantidade absurda de livros publicados todos os dias – é possível sim reconhecer um bom livro. Talvez o reconhecimento não venha na hora, talvez demore ou só ocorra postumamente, mas vem. E quanto à enorme quantidade de lixo publicado, a boa notícia é que o papel é biodegradável.

 

Nivaldo Tenório / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Sinceramente, considero o reconhecimento póstumo a circunstância mais desleal que possa ocorrer com um escritor. Mas voltando a segunda reflexão, seus dois livros foram publicados por uma editora pequena. Foi uma decisão deliberada ou chegou a mandar o original para uma editora grande e não houve o interesse? Você mencionou o lado comercial das editoras pequenas e, na minha opinião, a qualidade gráfica da maioria desses selos pequenos nada deixa a desejar quando comparada a de uma grande editora. Os problemas são justamente a divulgação e a distribuição. A partir de sua experiência, quais são os prós e os contras que um autor lançado por uma editora pequena acaba por se deparar?

NIVALDO TENÓRIO – Eu nunca mandei meus livros para editoras grandes. De antemão, já intuía o resultado, na melhor das hipóteses uma carta educada dizendo que a editora não trabalha com meu perfil de escrita. O dinheiro movimenta o mundo. Quando mencionei o lado comercial das editoras pequenas quis dizer que elas utilizam estratégias de sobrevivência e, entre essas estratégias, a parceria com o autor é uma alternativa viável se se deseja algum lucro, no final. Imagino que uma editora pequena que publica 500 exemplares de um autor ainda desconhecido, embora bom contista, poeta ou mesmo romancista, corre sério risco de não conseguir só com a venda dos livros tirar os gastos da gráfica. As distribuidoras ficam com a porção maior do bolo e algumas livrarias cobram caro, algumas chegam a exigir 50 por cento. Também concordo com você, é excelente a qualidade gráfica de algumas editoras pequenas. Imagino que fazer o livro bonito acaba sendo uma estratégia comercial já que o público dessa editora, embora pequeno, é exigente. Tem bom gosto. Divulgação e distribuição são problemas sérios enfrentados até por médias editoras. Não é em toda livraria que você encontra um livro da Iluminuras ou Editora 34, só pra citar duas que gosto. E se publicaram autor brasileiro, contemporâneo, pior. Para o autor que se autopublica é um problema irreversível, apenas minimizado pelos selos pequenos. Acho que as livrarias também não ajudam e talvez a culpa não seja delas, afinal há tantas publicações de vampiros, bruxos e pastiches de 50 tons de cinza no mercado que as prateleiras simplesmente não cabem. Por isso, algumas ainda concordam em disponibilizar o livro no catálogo virtual. O Brasil é enorme e tal, mas o problema, insisto, é mesmo a falta de leitor. Outro dia ouvi que um autor – não me lembro quem – que ganhou o prêmio São Paulo verificou, um ano depois do anúncio do prêmio, ter vendido 100 livros. Parece mentira, mas não entendo porque alguém mentiria sobre isso. O livro fôra publicado por um grande selo, parece que também ganhara o prêmio Sesc e, com toda mídia e prestígio do prêmio, aumentou suas vendas em apenas 100 livros. Gosto da editora pequena. Algumas alcançaram respeito e isso, no fundo, é o que importa. Fazem um livro bonito e, sem muita pretensão, encontram o leitor especial, interessado em boa literatura. Se o mercado não é milionário, a culpa não é dela. Faz seu papel e o autor encontra seu lugar. Pequenas tiragens e distribuição – mesmo longe do ideal – possibilitam que o livro circule, concorra a prêmios e seja resenhado.

 

DA – Essa história do autor premiado é verídica, eu o conheço pessoalmente. Mas o final da sua resposta me instigou uma provocação: diante do que chamamos de crise de leitor, você acredita que o autor que lança uma edição de 500 exemplares, por uma editora pequena, tem muito mais uma preocupação em colocar um crachá de escritor e entrar para um clube do que ser realmente lido? Neste caso, o livro não seria mais um dispositivo para uma satisfação pessoal do que um meio pelo qual ele possa alcançar o objetivo final de toda obra literária, a atenção do leitor?

NIVALDO TENÓRIO – Falei em 500 exemplares porque é o número que muitas editoras que trabalham com gráfica offset sugerem, 300 ou 500 exemplares. Quanto mais diminui o número de exemplares, mais caro o livro fica. Meu “Dias de febre na cabeça”, edição do autor, a primeira edição, foram 500 exemplares. Na época eu sugeri 300, mas a diferença que a gráfica fazia no preço era ridícula. Então fiz os 500 mesmo sabendo que se livrar deles seria tão difícil quanto se livrar de um corpo. Sim, tem a história do crachá de escritor, concordo com você, mas no meu caso foi só essa lógica de gráfica offset. Algumas editoras estão trabalhando com tiragens bem pequenas, 70, 100 exemplares. Acho o ideal, se houver procura do livro é só imprimir mais exemplares.

 

DA – Você há pouco citou rapidamente os prêmios literários. Com o mercado editorial cada vez mais fechado, acredito que é senso comum de que vencer um prêmio literário é a maneira mais meteórica de se projetar um escritor. Quando se é uma estreia, pode ser até perigoso, pois o autor carrega consigo a responsabilidade de entregar um segundo livro, pelo menos, à altura do anterior. O que pensa sobre os prêmios literários? E, ultimamente, os prêmios no Brasil têm agraciado muitos autores nordestinos. O prêmio Sesc, por exemplo, teve suas últimas edições dominadas por novos autores do Nordeste, tanto na categoria Romance quando na categoria Conto. Como explicar isso? Você consegue identificar uma geração de jovens autores ganhando corpo na região?

NIVALDO TENÓRIO – Devo dizer que pra mim não é surpreendente que prêmios literários agraciem autores do Nordeste. Acho que o Nordeste tem uma sólida tradição de excelentes escritores. Por acaso me lembro do polêmico Bruno Tolentino, ele que era do Rio, poeta erudito que não gostava do Modernismo nem da Cultura Popular, disse uma vez: tirem a Literatura do Nordeste do Brasil, restaria o quê? Sem bairrismo, de fato o Nordeste é rico em escritores, Pernambuco então nem se fala. Manuel Bandeira, Osman Lins, João Cabral de Melo Neto – um dos poucos autores brasileiros que já foi citado para ganhar o Nobel – e Gilberto Freyre, reconhecido no mundo como um gênio. Uma boa representação da literatura contemporânea também é de Pernambuco. Apenas citando os escritores que residem aqui penso em Raimundo Carrero e Fernando Monteiro, só pra mencionar dois. E se falamos em escritores que adotaram Pernambuco, temos o grande Ariano Suassuna da Paraíba (hoje um clássico da Literatura Brasileira), Ronaldo Correia de Brito e Sidney Rocha, do Ceará, autores com uma sólida literatura, todos premiados. Autores que nunca deixaram o Recife. Já faz alguns anos o estado criou um prêmio que só premia autores que residem em Pernambuco, o Prêmio Pernambuco – que recentemente alguém teve a infeliz ideia de mudar o nome para Hermilo Borba Filho, também ele um intelectual de destaque e excelente dramaturgo pernambucano. O prêmio tem revelado autores até então inéditos e de notável qualidade literária, espalhados na região metropolitana e interior do estado. De fato, o prêmio tem poder de revelar o autor, embora isto não queira dizer que todo autor premiado é um grande autor. São muitas circunstâncias e pesa o fator sorte. Mas ajuda, principalmente quando democrático e livre de preconceitos. Por isso, gosto quando encontro, entre os finalistas de grandes prêmios, livros de autores autopublicados ou de pequenos selos editoriais, isso denota honestidade. Acho que a gente vai precisar de mais tempo e o olhar a uma certa distância para perceber se aqui, na região, houve de fato uma nova geração de escritores fazendo literatura de verdade. Nesse momento, pelo menos, só posso dizer que há muita gente escrevendo e o que se vê publicado aqui não é de jeito nenhum inferior ao que se vê publicado no Sul-Sudeste.

 

DA – Falando em distância, durante seu ofício criativo há uma preocupação com o leitor, quem a sua história poderá atingir e o que pode despertar nela? Certa vez, fiz uma pergunta parecida para um autor, que respondeu não pensar no leitor, pois escrevia para ele mesmo. Achei a resposta arrogante e narcisista. O que pensa sobre isso? O leitor não deveria fazer parte, em algum momento, do processo de construção de um livro?

NIVALDO TENÓRIO – O leitor é fundamental. Preocupa-me muito o leitor. Morro de medo do leitor pouco generoso, o leitor que lê em metrôs, olhando para o relógio, hiperativo, que manipula o celular, que consulta as redes sociais enquanto lê. Tenho medo que minha literatura, para este leitor, assuma algum tipo de hermetismo do qual não me sinto culpado. O conto é irmão da poesia, requer mais de uma leitura. Ninguém lê um poema uma só vez. Quantas vezes eu já não li “Opiário”?, Decerto muitas. Sem o leitor minha literatura fica incompleta. Você poderia dizer, com toda razão, que sem o leitor nenhuma literatura acontece. De fato. O próprio processo de escrita se completa com o leitor. Por isso, necessito de um leitor que me dê a mão, necessito de sua paciência e disposição para amarrar as pontas, quando se fizer necessário, de um leitor que saiba ler os silêncios, que se interesse pela outra história que todo conto conta e sinta prazer em despender toda energia que a leitura lhe exige. O leitor que idealizo é um leitor especial e por ele sinto enorme apreço. A gente se esforça para escrever um livro melhor que outro. Acho que este livro que acabei de escrever é mais maduro que o anterior, mas só quem pode de fato julgar isto é o leitor. Por outro lado, não perco o sono por causa do leitor de gosto médio, o leitor dos livros da moda, o leitor apenas interessado em puro entretenimento. É claro que todos os dias eu o espero de braços abertos, mas não vou perder o dia se ele me ignorar.

 

DA – Seguindo nessa linha do leitor, ultimamente surgiu um movimento do leitor sensível, que tem feito inclusive universidades retirarem de seus catálogos obras com conteúdo considerado controverso. Seus contos, por outro lado, trazem para seus enredos temas pesados, envolvendo fortemente a miséria humana. Como enxerga essa pressão que existe hoje para limar da literatura temas polêmicos que possam ferir certos grupos? Isso lhe faz repensar a ideia de um conto?

NIVALDO TENÓRIO – O primeiro réu desse caso, se não me engano, foi Monteiro Lobato. Queriam censurar e cortar trechos de sua obra por causa do tratamento que Tia Nastácia – por ser negra – recebia. E aí me lembro do Oscar Wilde: um livro não é moral ou imoral, é bem ou mal escrito; eis tudo. Ele tem razão. No caso do Lobato, principalmente, tem a questão do contexto histórico. Eu não acredito numa obra literária que se constitua num panfleto mesmo que as razões sejam as melhores, imagine quando as razões são as de promover discriminação racial ou de qualquer natureza. A obra de Monteiro Lobato não me parece um panfleto, aquilo que Narizinho diz sobre a negritude de Tia Nastácia é corroborado pelo espírito de época. E quem fala é a personagem. Não existe boa arte pautada em normas de conduta, etiquetas e outras frescuras. É só olhar para o passado, o que é que hoje todos acham do processo por imoralidade que sofreu Madame Bovary? Veja, durante essas discussões eu esperei que alguém se manifestasse sobre a Bíblia, pois é difícil encontrar um livro tão politicamente incorreto. Ali há desde discriminação contra a mulher a genocídios determinados pelo próprio Deus. No Decálogo, exatamente no décimo mandamento, Ele determina que o homem não deve cobiçar o servo de seu próximo, e aí não precisa recorrer a exegese para intuir que para Deus a escravidão era perfeitamente aceitável. Natural. E diferentemente de Monteiro Lobato, um homem do final do século XIX início do XX, Deus não é um reles mortal, sujeito ao condicionamento cultural. Então é uma grande besteira esse negócio, começa-se mal porque começa-se descriminando umas obras e deixando outras de lado em nome da mais pura e genuína hipocrisia. Mas acho que quem deve se encarregar de julgar é o leitor. O leitor faz a leitura que quiser. Estabelecer uma censura em nome do politicamente correto é no mínimo ridículo. Não me interessa se Celine era antissemita e simpatizante do nazismo, a mim só interessa o assombro que me causou Viagem ao fim da noite, além do mais ali não há nada que promova as ideias infelizes do autor. A propósito disso, reconheço um bom autor pela sua capacidade de fazer a clara distinção entre suas ideias, ideologias e a literatura. Conheço escritores que também são meus amigos e são, na vida privada, pessoas de forte ardor religioso, e não são poucos, pessoas capazes de uma fé que eu não consigo entender que raios de improbidade intelectual os fazem acreditar nos disparates e contos de fadas de suas religiões, pessoas com uma visão que eu só consigo atribuir ao intelecto mais simplório, mas que no caso deles não é, pois não são ignorantes, alguns têm mais cultura e leram mais do que eu. Então, são questões que eu nem procuro inquirir – tenho mais com que me ocupar – no fundo o que me interessa é que em seus livros não há nada disso e até os invejo por conseguirem tal distanciamento. Mas acho que acabei fugindo um pouco da pergunta. E não, essa pressão e sensibilidade de tais grupos jamais me fariam repensar a ideia de um conto.

 

DA – Por outro lado, você consegue identificar determinados escritores que se colocam por detrás de uma causa, da bandeira de uma minoria, de uma ideologia, e se utilizam desse expediente para chamar atenção para seus escritos? Percebe que a mídia especializada foca, em muitos casos, na condição social desse tipo de escritor e se esquece de avaliar o valor literário, se o livro é, no mínimo, bom?

NIVALDO TENÓRIO – Num mundo que não lê, talvez não seja tão ruim chamar a atenção para um livro em razão de seu apelo social. Sem dúvida, há tais escritores e acho até que são muitos, e suas bandeiras chamam sim a atenção da mídia e de leitores que se veem ali representados. Imagino que deve existir escritores bons e ruins fazendo isso. A mim só interessa a literatura. Literatura pela literatura. Se alguém consegue fazer os dois, se consegue que o carro-chefe seja a força do texto e não o apelo social, tem a minha atenção. E não é de se admirar que a mídia se interesse e promova livros medianos, como você coloca, mas que levantam bandeiras de grande apelo social. A mídia está interessada em notícia. Por literatura se interessa um número bem menor de pessoas e isso não vende jornais, não dá ibope.

 

Nivaldo Tenório / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Mas ainda, por mais estranho que pareça, são justamente os cadernos e os suplementes literários que permanecem valorizados pelos autores, quando buscam uma resenha ou a divulgação de seus livros. No Brasil, ainda resiste uma cultura de associar projeção aos grandes jornais impressos, de não dar o valor devido ao espaço virtual, à atenção dada aos livros nos sites, blogues e afins. Como analisa essa transição? Os espaços virtuais reservados à literatura são uma maneira de compensar a falta de espaço na mídia impressa ou estamos diante de uma nova geração de críticos, que lidam com a literatura segundo a realidade de seu tempo?

NIVALDO TENÓRIO – Acho que são os dois, Sérgio. Sem dúvida, há uma nova geração de críticos mais antenados com as novas tecnologias e a literatura perdeu espaço na mídia impressa. Talvez o crescimento de uma esteja atrelado ao desaparecimento da outra. Aqui em Pernambuco, noto uma resistência. Há bons jornalistas interessados em escrever sobre literatura. Temos um suplemento cultural, o Pernambuco, que é um dos melhores cadernos de literatura publicados no Brasil. Quanto à preferência dos autores em verem suas obras divulgadas por cadernos e grandes jornais, deve ser um reflexo do próprio desejo de se ver publicado em papel. O cara publicou um livro nas redes sociais e tem milhares de seguidores, mas só se sente publicado de verdade quando seu livro está à venda nas livrarias. É o fetiche, é a tradição. Mesmo os escritores comerciais se sentem assim. Parece que o papel tem o poder de tornar oficial. É verdade que quando sai em jornal uma resenha aquilo só é lido por meia dúzia de pessoas. Todos só tomam conhecimento quando o link da matéria é divulgado nas redes sociais. Acho que essa crítica em blogues e sites vai crescer e vai ganhar mais prestígio à medida que as publicações em jornais ficarem mais raras e, se não desaparecerem dos grandes jornais, existirão apenas em jornais como Rascunho ou publicações artesanais para um número pequeno de assinantes. As facilidades que a internet oferece impediriam que hoje o Osman Lins desistisse de tudo, no Recife e Vitória de Santo Antão, e fizesse a mesma viagem que os sertanejos faziam para São Paulo.

 

DA – E no seu caso? Incomoda-lhe ou, de alguma forma, desanima adentrar uma dessas mega livrarias e não encontrar os seus livros? Qual a extensão que você almeja para sua carreira, para sua escrita?

NIVALDO TENÓRIO – Tudo o que almejo para minha carreira de escritor começa e termina no texto, quanto ao resto não é de meu controle. O meu livro não se encontra em mega livrarias – pelo menos o livro físico – não por ser de péssima qualidade. É exatamente o contrário. Quando entrei pela primeira vez na Livraria Cultura, da Avenida Paulista, não pude acreditar no que via. Mais da metade da livraria era dedicada aos livros da moda. É fácil reconhecer pelo colorido das capas. Não bastou que alguém tivesse escrito um livro tão ruim como “Crepúsculo”, era preciso que aparecesse um monte de imitadores com novos Crepúsculos que ganhariam as prateleiras de tais livrarias. Então, eu não tenho culpa se impera um gosto ruim ou mediano, se todo mundo parece tão carente de autoajuda e entretenimento que só aspira a mais bruxos e lobisomens em aventuras sensacionais. Mas eu estaria mentido se não dissesse que todo escritor deseja sim encontrar seu livro nas vitrines de livrarias. Alguns, quando encontram, chegam até a fotografar e exibir no Facebook, coitados, como um acontecimento realmente fabuloso. E talvez seja mesmo. Então, Sérgio, não me preocupo com isso. Interessa-me fazer um livro melhor do que o último. Este livro, acredito, é melhor do que o anterior, pois minha maior motivação é escrever cada vez melhor, embora isso, claro, quem julga é o leitor, seja lá onde ele estiver.

 

DA – Talvez seja uma heresia perguntar isso para um contista por excelência, mas você já pensou em escrever um romance? Caso não, o que o afasta do gênero? Caso sim, esse seria um próximo livro? Aliás, já tem um novo projeto literário?

NIVALDO TENÓRIO – Nunca tentei escrever um romance – apesar de ser um leitor de romances – mas já pensei sim, embora nunca tenha levado a termo, sequer começado. Encontro no conto o gênero necessário para minha criação. Há as pressões do mercado (que, é claro, eu não levo a sério) e dos amigos (que não sabem apreciar o conto), pois é comum coisas do tipo: e quando vai sair o romance?, como se todo esforço para escrever o conto fosse balela, um talento desperdiçado. Não por tais razões, o mercado que se dane e os amigos que aprendam a ler. Mas vou escrever. Não digo que já tenho um projeto, é só uma ideia que vem me assombrando ultimamente, de transformar um dos contos – porque me sugere uma narrativa de fôlego maior, o caso da tartaruga – em romance. Vou escrever, mas não tenho pressa. Sempre admirei os escritores obcecados por sua obra, que nos dão a ideia de que viveram apenas para escrever, como os russos e Balzac, por exemplo, mas tenho uma natureza infelizmente indolente, depois de um livro preciso de um tempo, mais do que razoável, para de novo me sentar e escrever. Tenho fôlego de contista, nunca estive interessado em quantidade.

 

DA – Diante de todas as frustrações e contratempos que trouxemos à tona, por que então continuar a escrever? Vale a pena ser escritor no Brasil?

NIVALDO TENÓRIO – Publiquei a primeira vez com mais de 30 anos. Escrever sempre foi mais importante do que publicar. A gente não escreve porque isso vai mudar nossa vida. Não vamos ficar ricos e nunca acreditei no exercício da escrita como terapia. Escrever, então, nunca representou obter algum tipo de vantagem. Acho que todo escritor tem dificuldade de responder esta pergunta. Hoje, mais do que nunca, quando para tudo que se faz, logo se espera obter resultados, lucros, vantagens. É isso ou você está perdendo tempo, dizem os pragmáticos. Escrever talvez seja o modo mais cruel de perder tempo. Não há garantias. Se escrevo e, se continuo escrevendo, faço porque sentiria muito se algo acontecesse que me impedisse de escrever. Não acho que seja mais fácil ser escritor em outro país. Quando a gente pensa no século XX, uma parcela significativa da grande literatura que aparece foi escrita na América Latina do Terceiro Mundo, com problemas de ditaduras e analfabetismo. Faulkner, Carson McCullers e Flannery O’ Connor escreveram no Sul dos EUA de pobreza, Ku Klux Klan e fanatismo religioso. Então, não é num país com problemas sociais resolvidos e índice zero de analfabetismo o lugar ideal para escrever e ser lido. Não há lugar ideal para escrever. Ouvi de uma editora francesa que, em Paris, o escritor ou escritora lança seu livro nas livrarias pequenas, lugares aconchegantes, cheias de histórias, com fotos de Hemingway penduradas nas paredes. Os lançamentos contam sempre com um público de 30 pessoas, no máximo, entre as quais se contam esposa, filhos, pais, parentes e amigos do escritor. O problema é maior, vai além das fronteiras, e tem a ver com a perda de certa noção da subjetividade. Mas uma coisa eu posso garantir, em todo tempo e em todos os lugares houve e há dificuldades, nenhuma delas, entretanto, é páreo para o desejo de escrever.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês e o espanhol. Participa da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris.

 

 

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