Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

Palavras parecem domar o tempo com a astúcia de suas investidas. Talvez por tal razão não sejam menos importantes que a sina dos seus criadores. Elas, as palavras, ousam mais do que representar o mundo de quem as profere, imersas que estão nas profundezas do humano. Revelam-se a complexa ponte entre o íntimo e aquilo que está exposto cotidianamente nas travessias mundanas, bem ali na face desnuda da vida.

Quem engendra o verbo tem a consciência de que sua expressão criadora não se encerra dentro de um único domínio exclusivamente pessoal. Pelo contrário, intenta o encontro com o outro, trajeto comunicativo que, podemos desconfiar, não cessa jamais. Desse modo, levar a cabo uma obra é crer que na outra ponta outros sujeitos poderão consolidar sua permanência, conferindo-lhe uma gama de sentidos multifacetados. Por certo, um escritor fica exultante quando seus leitores mantêm vivo o seu legado dadas as mais distintas possibilidades de vivência, interpretação e apropriação do conteúdo concebido.

Assim como não se passa impunemente pela vida, com a literatura ocorre o mesmo. É salutar pensar um autor como alguém que mergulha nas questões de seu tempo e delas retira elementos construtivos para seu ofício. Quem se depara com a obra de um escritor como Itamar Vieira Junior, percebe um criador de olhares atentos aos fenômenos que constituem e demarcam sua condição de estar no mundo. Mas eis que tal característica tanto se baseia num fluxo de criticidade quanto no de uma vivência que permeia uma perspectiva de fruição estética. Assim, vemos um Itamar a construir sua obra com os requintes da lucidez, mas também sem negligenciar as possibilidades de criação inerentes a um viés de assunção das coisas intangíveis.

Com dois livros de contos na sua trajetória, Dias (Caramurê, 2012) e A Oração do Carrasco (Mondrongo, 2017), além do romance Paraíso (Câmara Brasileira do Livro, 2008), Itamar Vieira Junior pode ser considerado um dos nomes relevantes do atual cenário literário brasileiro. Grande parte disso se justifica em razão de que sua escrita madura e bem construída assinala um valioso lugar de reflexão, sobretudo quando se trata de atentar para o território das alteridades.

Doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar revela-se um escritor profundamente envolvido com as temáticas que denunciam a invisibilidade do povo negro. Na entrevista que agora segue, o escritor toca em certos lugares de incômodo social, reflete sobre a representação do racismo na literatura, o papel dos novos escritores, além de lançar luz sobre o panorama editorial brasileiro contemporâneo. O resultado do diálogo mostra-nos não somente um intelectual a expor seus consistentes pontos de vista, mas um indivíduo intensamente marcado pela necessidade de mergulhar fundo na dimensão humanista da existência.

 

Itamar Vieira Junior / Foto: arquivo pessoal

 

DA – Há tantos grilhões na condição humana e certamente aqueles que se referem à opressão do homem pelo homem são dos mais cruéis. Em “A Oração do Carrasco” você traz um deles à tona, qual seja a marca histórica do racismo, fantasma que nos ronda incessantemente. Diante de um contexto de tal natureza, como você concebe a literatura enquanto instrumento de exposição e debate desse tipo de incômoda temática?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – A literatura como expressão artística acomoda, involuntariamente, a narrativa da experiência humana. Atravessando os séculos – de Dom Quixote ao romance contemporâneo – ela sempre trouxe como sua razão de existir o descortinar de nossa condição. Hannah Arendt em sua obra “A condição humana” diz que a política é um dos três pilares da vita activa do homem. Tanto o trabalho quanto a obra – os outros dois pilares – são executados pelo homem em sua solidão, a partir das acepções que Arendt apresenta sobre trabalho e obra. Mas a política só se dá através do homem e entre os homens. Ou seja, somos seres essencialmente políticos e a literatura carrega, invariavelmente, a exposição do que um escritor é e pensa sobre o mundo a sua volta. Sem a política seríamos amebas vagando no mar do nada.

Vamos lembrar que a literatura abriga a diversidade do pensamento humano. Que há obras como “Escola de cadáveres”, de Louis-Ferdinand Céline, ou “O presidente negro”, de Monteiro Lobato, com um teor racista inquestionável. E que muitas outras, da mesma forma, vão se debruçar sobre as nossas mais primevas questões existenciais, dentre elas o preconceito baseado na diferença de origem ou de cor. “Amada”, de Toni Morrison, ou “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, por exemplo, abordam o racismo pelo viés histórico e social do colonialismo. É incômodo perceber que são obras que tratam o preconceito numa perspectiva histórica e que, ao se confrontar essas narrativas com o mundo contemporâneo, percebe-se que as mudanças são sutis e as formas de discriminação resistem apesar dos avanços.

Há algo incômodo na literatura contemporânea – e digo especialmente sobre a literatura produzida no Brasil. Como é uma atividade de uma classe privilegiada, ou pelo menos os autores que estão em evidência fazem parte dessa classe, os temas são majoritariamente afeitos aos dramas da classe média branca. Proporcionalmente, há um número menor de obras com personagens que representem a imensa diversidade da nossa sociedade. O racismo também existe no próprio fazer literário, não poderia ser diferente. Isso revela que há algo brutal em nossa história se repetindo, quando vemos persistir a discriminação ao senegalês ou haitiano que chega ao Brasil contemporâneo. Ou quando as relações entre patroas e domésticas nos fazem lembrar as relações de subalternidade mais vis do Brasil escravocrata. Ou quando abrimos um livro e não encontramos representações de nossa diversidade. Esse incômodo é que me fez conceber “A oração” como um painel, não de simples histórias distintas, mas capaz de apresentar um encadeamento de narrativas que nos lembrasse de que a história se repete. Não é por acaso que “Alma” abre o livro e é impossível pensar sua história desconexa das histórias de “Foi” e “Dominique” do conto “Meu mar (Fé)”, ou de Doramar. A imigração empreendida pelos ancestrais de Alma se repete da mesma África para o Brasil do nosso tempo. Esses imigrantes estão fadados a uma história de subserviência não muito diferente dos imigrantes do século XVII, XVIII. O papel de submissão dado pelo mundo a Alma se repete com Doramar, uma empregada doméstica que vive nos dias atuais, ou com “Foi”, a imigrante que vive deslocada em um país que não consegue acolher a diferença.

 

DA – No conto “Alma”, apesar das agruras vividas pela protagonista, notamos que paira nela um ímpeto que a encoraja a crer numa perspectiva de que algum dia sua existência cumprirá um sentido, digamos assim, mais pleno de liberdade. Há na narrativa a presença viva dos contrastes entre o pensamento colonizador e o colonizado. Diria que essa construção textual evoca uma necessária provocação, sobretudo para o que ainda testemunhamos em sociedade?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Acho que o sentido a que você se refere é uma premissa humana. Ou talvez seja uma premissa dos seres sencientes, se estendermos o desejo de liberdade aos animais. Há muitos anos trabalho com as histórias de comunidades negras rurais que estão passando por processos de regularização das terras que habitam. Em um desses lugares, encontrei a história de uma mulher escravizada que caminhou de Salvador até o Sertão Baiano – quatrocentos quilômetros de distância. Ela se tornou matriarca e fundadora de um agrupamento humano que resiste por quase duzentos anos. Só se sabe isso sobre ela. Não há registros além da história oral. Uma narrativa fabulosa, a princípio, e a ficção entra para preencher o que não se sabe sobre essa mulher: as motivações de sua peregrinação e o que encontrou pelo caminho. O que faria uma mulher cativa caminhar por um ambiente hostil, desconhecido, com possíveis perigos? A revisão da história social de nosso lugar indica as circunstâncias dessa migração. E a minha experiência humana, aquilo que nos une, incluindo a personagem Alma, permite emular esse sentimento supostamente universal de não estar subjugado e ser livre. É uma narrativa em primeira pessoa que opta pelo fluxo de consciência. Alma é a voz que narra personagens, episódios históricos e ações que marcaram sua trajetória. Essa foi a forma que encontrei de trazer à literatura a contundência da oralidade, do que pode ser narrado por gerações, resistindo e se transformando, quando as circunstâncias sociais e econômicas não permitem que haja registros documentais. A oralidade é uma forma de comunicação que antecede à escrita. Transmutada, é capaz de denunciar os incômodos que a humanidade, em seu processo civilizatório, não conseguiu transpor. Recentemente, fotografias de um mercado de escravos na Líbia se propagaram nas redes sociais. Em pleno século XXI nos deparamos com imagens que poderiam ser quadros de Rugendas representando a aflição de algo que talvez julgássemos ter acabado. Pelo contrário, os fantasmas continuam a nos atormentar. Escrever sobre uma mulher que precisou interromper o ciclo de violência que sofria, devolvendo a violência àqueles que a subjugavam, reflete essa provocação. Desmistifica, inclusive, que essa subserviência foi pacífica. No Arquivo Público do Estado da Bahia há importantes referências sobre crimes cometidos por trabalhadores escravizados.

 

DA – Há toda uma literatura dedicada às questões da negritude e que, no entanto, permanece ainda desconhecida por muita gente. Destacaria aqui, sobretudo, obras que se enquadram na perspectiva pós-colonial, cujos autores nos falam de mundos com suas narrativas e ambientações próprias, com o vigor que demonstra que não podemos olhar a África de modo homogeneizante. Na sua visão, que universos são esses que precisam ser vistos e lidos?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Os universos autóctones e da diáspora. Porque não basta ler a vasta literatura produzida no continente africano, é preciso compreender o seu legado para o mundo, principalmente para o continente americano e, mais recentemente, para a Europa Ocidental. A literatura pode ser um caminho para alcançar a história e o pensamento humanos a partir da perspectiva de nossa diversidade étnica. Tanto a literatura pós-colonial com seus mais diversos temas, desde o nefasto poder do colonialismo que vislumbramos na obra de Chinua Achebe e Chimamanda Adichie Ngozi até o trágico apartheid, tema recorrente nos romances de Coetzee e Nadine Gordimer, quanto a literatura diaspórica que pulsa de norte a sul do continente americano, são narrativas que confrontam o passado com o presente e nos despertam para a crise e o fracasso, em termos, de nossa civilização. Principalmente quando permitimos que as diferenças se tornem os mobilizadores das relações de poder que estabelecemos com nosso entorno. Nesse contexto a ficção pode comunicar a universalidade da experiência humana pela simples possibilidade de nos envolver numa trama de afetos onde somos convidados a todo o momento a ler o mundo a partir da perspectiva das personagens. Sem dúvidas é um interessante exercício de se transferir para o lugar do outro e conhecer suas vivências e experiências.

 

DA – Nesse conjunto de representações de mundos que precisam vir à tona através de uma arte como a literária, surge um componente de alta relevância, que é o das afirmações identitárias. Como tais sujeitos podem vir a se tornar efetivamente seres de ação no quesito que amplia uma via marcantemente humanista?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – A identidade é e sempre será relevante em contextos onde seja preciso realçar a alteridade. Já estive em comunidades negras rurais em que o racismo não era um problema aparente em suas vidas, a não ser quando precisavam resolver algum problema na cidade. Não fazia sentido um debate entre eles sobre a negritude, a não ser quando precisaram se confrontar com o Estado ou com outros grupos. Eu prefiro não tratar a identidade como um constructo fixo e imutável. Gosto mais do conceito de identificação que coaduna com a perspectiva do devir humano. Não somos seres imutáveis. Somos devires porque existe um movimento vital no homem, no mundo e no homem através do mundo. Esse movimento é fonte de transformações constantes. A identificação está baseada na diferença, e afirmar essa diferença como legítima e parte da diversidade humana é o que mobiliza as performances identitárias. Nenhum ser humano é composto de uma única identificação, nós somos muitas identificações sobrepostas, e algumas delas certamente se relacionarão com a de alguém a sua volta. Somos mulheres, homens, homossexuais, negros, índios, ateus, católicos, candomblecistas, e na trilha de nossa existência através do mundo nos reconheceremos. Agora, imagine que na trilha da vida, sem os artifícios que dispomos para o conhecimento, isso possa levar bastante tempo. Às vezes um longo tempo se pensarmos que nossos problemas são urgentes. Imagine também o poder da literatura, da música – e enfatizo o hip hop, o funk, o samba, ritmos que têm um forte apelo popular – da televisão, do cinema, das séries estrangeiras, que chegam com uma velocidade incrível na era da informação. A arte pode ser um valioso instrumento, não o único, mas certamente o que nos envolve com mais afeto e é capaz de comunicar nossa humanidade com grandes chances de êxito. Já que falamos de literatura, imagine o poder de “Stella Manhattan”, de Silviano Santiago, para comunicar a existência queer, ou “A pianista”, de Elfriede Jelinek, sobre a violência que cerca a existência da mulher. Ou o maravilhoso The Underground Railroad, de Colson Whitehead, que acabo de ler, para expor as agruras do racismo no continente americano. São obras ficcionais capazes de gerar empatia por nos permitir interagir no campo da imaginação com essas personagens. Ninguém sai delas indiferente ou ileso.

 

DA – É insuficiente considerar o papel da literatura por um viés de mera fruição estética?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Gosto muito do Milan Kundera ensaísta, além de ser um ficcionista excepcional, justamente porque seus ensaios estão despidos de um viés analítico e acadêmico. Precisamos dos artigos e pesquisas acadêmicas para o conhecimento. Mas seu alcance é limitado.  Diferente dos ensaios de Kundera que primam por uma abordagem estética e humanista da literatura. Em “A cortina”, Kundera apresenta a literatura (romance) como a arte do conhecimento que existe e sobrevive por se debruçar sobre a experiência humana. Parte dessa existência e sobrevivência deve-se à fruição, uma característica que diferencia a arte literária de outros gêneros de escrita. A fruição estética abre um leque de possibilidades que permitem interpretações e reinterpretações sobre um mesmo texto. O leitor é peça-chave nessa engrenagem por ser afetado, na experiência pessoal e intransferível da leitura, de maneira distinta. Por ser fruição estética, sem nenhum demérito, é que a literatura tem seu alcance expandido e se torna um instrumento de conhecimento do mundo-tempo que vivemos.

 

DA – Diria que a sua escrita reflete um processo consciente e permanente de engajamento com as questões de seu tempo?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Acho inevitável que quem se debruça sobre qualquer atividade intelectual, sem a arrogância ou o peso que o termo intelectual possa evocar, está refletindo de alguma forma sobre seu tempo. Desde os primórdios tem sido assim. Não escrevemos para nós mesmos e muito menos sem a esperança de que o que escrevemos altere qualquer coisa. Escrevemos porque desejamos comunicar algo. Desejamos provocar emoções. A comunicação parece ser um atributo muito caro à espécie humana, desde a pré-história com a arte rupestre até a era da informação e a revolução digital. O que não cessou durante nossa história foi a nossa urgente necessidade de nos comunicarmos. Tenho uma visão muito dessacralizada do ato de escrever e, mesmo nutrindo um profundo interesse pela literatura e por quem a faz, não creio que seja diferente, na essência, das muitas formas de comunicação que o homem elaborou ao longo de sua história. Sei também que nem todo escritor terá algo relevante para comunicar, mas ainda assim sua obra será acolhida ou não a partir dos valores que os leitores e estudiosos irão lhe atribuir. Acho que quem se debruça sobre a escrita, ou qualquer construção artística que tenha a possibilidade de resistir ao tempo, deseja no fundo comunicar e provocar a reflexão, seja da mais íntima questão humana aos problemas mais complexos de nossa civilização. Uns superficialmente, outros detidos de forma mais profunda sobre essa experiência. Não vejo a minha escrita dissociada da minha própria experiência. Pretendo-a consciente, talvez por isso engajada. Mas há arte inconsciente e que não seja engajada em seus próprios parâmetros? Essa é uma questão, não tenho a resposta. Atribuí a mim, como creio que fizeram os meus pares do passado e do presente, a intenção de dar um testemunho pessoal sobre o meu tempo. Um testemunho pequeno, mínimo, da história em face à nossa grande diversidade enquanto espécie. O que seria minha vida, e a de qualquer escritor, dentro do grande tempo da história humana? Talvez possamos narrar um átimo dessa longa jornada. Fiz essa escolha por circunstâncias que não seria capaz de explicar. Ao mesmo tempo pode parecer uma presunção considerar que somos capazes de aprisionar em uma narrativa uma versão de nosso tempo. Pode parecer soberba assumirmos esse lugar de narrar uma história. É e sempre será uma posição delicada, ainda que estejamos autorizados por nossas convicções a escrever.

 

Itamar Vieira Junior / Foto: arquivo pessoal

 

DA – O grande afluxo de novos escritores parece instaurar um outro momento para a literatura brasileira. Nesse percurso, as plataformas digitais assumem um papel fundamental como viabilizadoras de espaços dotados de considerável autonomia criativa. As produções não cessam e se avolumam num ritmo até certo ponto frenético, algo que pode comprometer a qualidade do que é escrito, pois, em alguns casos, o desejo urgente de ser publicado ignora todo um processo de maturação e profundidade necessários a uma obra. São tempos de pressa estes em que vivemos?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – São tempos urgentes, não só para a escrita. Talvez seja cedo para esboçar uma reflexão sobre o que está ocorrendo. A princípio vejo a democratização do acesso à publicação como um avanço por permitir que obras que não seriam acolhidas pelas grandes editoras cheguem ao público, ainda que essa circulação seja restrita. São livros que, graças às plataformas digitais e às pequenas editoras, têm tornado possível a construção de uma bibliografia que é ainda um pequeno panorama da nossa diversidade enquanto sociedade. Sobre isso não há dúvidas: obras de qualidade têm encontrado espaço no segmento das pequenas editoras. Basta observar as últimas premiações. Em contrapartida, vivemos um tempo de exposição de ideias e imagens de forma instantânea nas redes sociais. Somos a imagem que projetamos para essas janelas de comunicação. Há, sem dúvidas, uma glamorização da atividade do escritor e isso faz com que qualquer um, tendo habilidade ou não, se proponha a exercê-la. Mas isso não chega a preocupar porque se forem muito ruins não resistirão ao crivo das primeiras críticas de leitores e especialistas. O que persiste é que estamos num país com baixos índices de leitura comparado a outras nações em desenvolvimento. Dentre os possíveis leitores há ainda um grande caminho a percorrer. É preciso construir uma política pública que fomente a formação de leitores.

 

DA – Somos um país de leitores subestimados?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Somos um país em que a educação, até o presente momento, não foi encarada como um propulsor de desenvolvimento humano. Fôssemos um país que levasse a sério a educação, teríamos certamente mais leitores. Segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro, quase metade da população não tem o hábito de ler. Um terço nunca comprou um livro. Mas quase todos carregam um smartphone, correto? Estão conectados às redes sociais e à internet. E como dispõem do tempo e da tecnologia? Certamente essas “escolhas” explicam em parte nosso retrocesso em questões de direitos humanos e nossos persistentes problemas sociais. Uma população não educada tem menos chance de participar e colaborar ativamente das instâncias de decisões. Tem menos chance de refletir criticamente sobre o mundo e seu tempo. Pode ser facilmente manipulada. Vamos lembrar, para não perdermos o hábito de falar de literatura, de “O conto da aia”, de Margaret Atwood, e “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. Onde foram parar os livros na República de Gilead? Para onde a supressão da circulação de conhecimento pode levar a humanidade? Além dos nossos problemas estruturais de educação, há um particular desinteresse do poder público em investir em políticas de formação de leitores. Num país com mais de 200 milhões de habitantes, onde quase metade da população não tem o hábito de ler, o que poderíamos ser se compartilhássemos leitura, interesse e conhecimento de forma democrática?

 

DA – O que você não endossa nesse estado de coisas ao qual chamamos de pós-modernidade?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Sou um espectador, com participação mínima na vida ativa de meu país. Pior, sou um espectador desatento, alterno horas de pretensa atenção e horas de devaneios. Não é um lamento, digo isso conformado. Sou um leitor em primeiro lugar. Para cada mil livros que leio deverei contribuir de forma tímida com um que escrevo. E observo nosso tempo com muita confusão e poucas conclusões. Reflito diariamente, mas sem exigir de mim mesmo uma definição sobre as coisas. Sabe como vejo o mundo? Como observo nossa jornada através da história? Como se lesse algo que acabo de escrever e que vou modificando, entendendo de uma nova forma, percebendo as movimentações de palavras e sentidos numa frase, num parágrafo. Mesmo depois de ter revisado doze vezes e receber o livro da editora, se não quiser sofrer, não o lerei para não querer reescrever depois de impresso. É como leio traduções ou um livro qualquer: começo a arrumar as sentenças como se fossem minhas. Quando percebo minhas divagações retorno para meu papel de leitor novamente. Observo essa fluidez e velocidade próprias de nosso tempo com espanto. As transformações são vertiginosas e na vertigem perdemos momentaneamente o autocontrole. É como um livro novo que faz você ler e subverter todas as coisas que aprendeu até aqui sobre escrita e leitura. Mas penso que esse estranhamento deve ter existido durante toda a jornada humana com intensidades diferentes. Quando leio Lima Barreto, penso nas inquietações de seu tempo, que transparecem em sua obra, e o que remanesce até o nosso tempo de tudo que ele possa ter refletido ou não. Estar no presente, engolido pelo caleidoscópio da história e do tempo, não garante o distanciamento necessário à reflexão.

 

DA – Quando poderemos dizer que um autor obteve sucesso com seu ofício?

ITAMAR VIEIRA JUNIOR – Quando um único leitor vier até ele para dizer que um parágrafo do que escreveu lhe provocou alguma reflexão. Isso é o que espera quem publica, quem compartilha pensamentos e escritas com o público. Quando publicamos algo, por qualquer meio, não sabemos em que mãos irá parar. Mas se alguém que lhe desconhece escreve um e-mail ou indica a leitura de seu trabalho é porque algo pode ter ocorrido na experiência entre narrativa e leitor. A vida de uma obra só se ilumina nesse espaço “entre”. Uma obra não tem vida ao ser escrita ou enquanto está na imaginação de um único homem ou mulher. Ela ganha vida a partir do contato. É um espaço mágico onde a paixão pela experiência humana irá ocorrer. Imagino o que diria se encontrasse os escritores que me incendiaram de paixão pela leitura e escrita. O que diria sobre suas obras que não me abandonam mesmo passado tanto tempo. Como elas contribuíram para o que sou. Sei também que virão muitos autores, talvez alguns ainda por nascer, que me trarão essa mesma paixão. Um autor só obtém êxito com seu ofício quando consegue iluminar esse espaço entre a obra e o leitor.

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos, filmes e no ato apaixonado de tocar bateria. Atualmente, é mestrando em Letras pela UESC, cuja linha de pesquisa reúne Literatura e Cultura.

 

 

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