Pequena Sabatina ao Artista

Por Fabrício Brandão

 

A Literatura segue como verdadeira ponte entre mundos, lugares que deslizam entre o vivido e o imaginado. Nesse ínterim, acepções das nossas humanidades se delineiam de modo a compor um painel difuso sobre as tramas da existência. Olhando assim de tal forma, escrever pode representar substancial exercício de vivências na linha sutil a divisar realidade e ficção. As paragens literárias comportam um contingente imensurável de subjetividades possíveis, de cenários e situações que marcam o indelével e imponderável espírito humano. Há sempre um quê do autor numa determinada obra, ainda que seja apenas algo alimentado pelo campo das referências, pela inalienável observação e assimilação dos fenômenos mundanos que se nos atravessam teimosamente por entre os dias.

Como poderíamos definir, por exemplo, o que seriam os caminhos da autoficção? Quem de fato nos conduz nesta complexa estrada que transborda do texto para a vida? Imprecisões à parte, parece ser melhor pensar que se desdobram eus no corpo vasto de uma certa escritura, relatos de si que reverberam experiências tidas ou imaginadas, as quais muitas vezes nos estimulam pela impressão de realidade que sugerem. Se estamos então mergulhados nas tensões cotidianas, aí é que os textos podem nos revelar mais do que meras predileções estéticas ou estilísticas.

Ficamos, pois, com os vestígios e marcas palpáveis da vida quando nos deparamos com um livro como O Enigma de Daniela. Nele, sua autora, Lelita Oliveira Benoit, mais do que uma obra autoficcional rica em informações e detalhes, constrói uma narrativa que envolve o leitor pela capacidade de mesclar percepções e relatos frutos de uma realidade que emerge brutal. Nesse sentido, o texto procura o leitor, seduzindo-o a ponto de fazê-lo (o leitor) testemunha próxima de tudo aquilo que é pormenorizadamente contado. À personagem-narradora coube a cuidadosa missão de contar a história verídica de Daniela, jovem médica que, ainda estudante, viu seu destino ser marcado por um irresponsável acidente automobilístico que limitou para sempre seus movimentos. A partir daí, desenrolam-se batalhas de superação pessoal da jovem diante de suas restrições físicas e, sobretudo, de sua readequação mental para seguir vivendo, além do enfrentamento judicial das questões que envolveram o acidente, tendo em vista que o motorista causador do atroz infortúnio estava embriagado na ocasião.

Lelita Oliveira Benoit, além de escritora, é psicanalista e Doutora em Filosofia pela USP. Sua tese de doutorado, Sociologia Comteana: Gênese e Devir (1999), publicada em livro pela Discurso Editorial/FAPESP, foi indicada ao Prêmio Jabuti em 2000, sendo que anos depois, em 2007, viria a ser traduzida para o francês e editada pela L’Harmattan. Também é autora de Livro da Madrugada (E de outras enigmáticas horas amorosas), livro de poemas publicado em 2013 pela Iluminuras. Com O Enigma de Daniela (2019), editado também pela mesma editora, a autora estreia na prosa. E foi justamente para falar desse seu novo momento literário que ela concedeu uma entrevista à Diversos Afins, pontuando aspectos fundamentais de seu processo criativo, desafios e perspectivas do mister. O saldo da conversa que agora segue é deveras positivo, não apenas pela expressão da intelectualidade de Lelita, mas principalmente por sua sensibilidade em dividir conosco reflexões profundas sobre a condição humana.

 

Foto: Julieta Benoit

 

DA – “O Enigma de Daniela” é um livro vigoroso na medida em que trata, de forma densa, delicada e informativa, de um tema que ainda nos é muito caro: as limitações do corpo físico diante da tragédia. Que espécie de desafios se configuraram de imediato em sua escolha narrativa?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Agradeço as suas fortes e sensíveis colocações iniciais. Me tocou muito ao sentir na minha pele, na minha alma, a sua leitura do meu romance de estreia. Indo agora em direção à sua pergunta. Diria que não fiz escolhas narrativas. Não tive como ponto de partida uma ou outra escolha ficcional. Diria sim que fui sugada pelo tempo – que era então, o tempo presente da minha vida passada. Foi essa a escolha, pela vida. Fiz da vida, ficção – como é inevitável no espaço da escrita do romance, ou talvez, do romance de qualquer ser humano. E acrescento mais. A escrita desta ordem particular, a do romance, para mim ao menos, acaba sendo máscara do eu – do meu eu. Pois não há outro caminho (methodos, em grego clássico) para ser Outro de si mesmo, no espaço ficcional. Me dupliquei. Me transformei em máscara do meu eu. Na escrita do romance, da poesia, sou (ou somos, não sei bem…) Outro sendo eu mesma. E confesso que tenho grande dificuldade em fazer a interpretação daquilo que lancei ao papel. Para clarificar um pouco a minha enodoada resposta, lembro aqui do segundo prefácio que Rousseau escreveu para o seu romance Julia, ou A nova Heloisa, que tem como subtítulo “Cartas de dois amantes de uma cidadezinha ao pé dos Alpes”.  No prefácio, é transcrita a conversa entre o filósofo-escritor com o seu editor, e este último se refere ao conteúdo do romance, composto por cartas. Pergunta o editor ao “homem de letras”: “Esta correspondência é real ou trata-se de uma ficção?” Lhe responde Rousseau: “Para dizer se um Livro é bom ou mau, que importa saber como foi feito?” Rousseau se refere à zona do fazer que me parece mergulhada na própria escrita literária. É a sua zona mais desordenada, tumultuada, caótica, sei lá… Pois é o espaço da criação artística. Implica a subjetividade do eu que escreve, entrelaçada às suas vivências e escolhas indeslindáveis, quase sempre. Poderia recorrer à psicanálise, a Freud. Mas prefiro outro caminho, mais nas proximidades da literatura ficcional.  Então me permito “roubar” aqui a fala de Mikhail Bakhtin, em O romance como gênero literário. Lá escreve o grande teórico da literatura que prefere escutar a voz do romancista ao invés de recorrer aos linguistas ou filósofos da linguagem. Prefere Bakhtin acolher as vozes de romancistas tais como Rousseau, ou Friedrich Schlegel, ou Dostoiévski e outros mais, pois são eles que “participam da formação viva do romance enquanto gênero literário”. Me coloco sempre ao lado da criação literária, portanto, ao lado da vida, e tendo a concordar com Bakhtin. Que parece ter escutado a minha voz de romancista.

 

DA – Dentro dos percursos autoficcionais, seu romance vai desfiando cenários, situações e personagens que envolvem o leitor numa sensação permanente de realidade. Nesse sentido, quem lê a obra está amparado por cuidadosos requintes descritivos e informativos a respeito de assuntos que transitam, por exemplo, entre os saberes médicos e jurídicos. Como você vislumbra tal perspectiva?

LELITA OLIVEIRA BENOIT –  O meu romance se fez da perspectiva de intenso desejo – e, assim espero, com delicadeza e muita poesia. O desejo de tocar com os meus dedos imaginários a realidade. Desejo amoroso sempre. É o amor que a tudo pode enlaçar, acredito eu. No meu romance, a  realidade emerge do fluxo do meu desejo amoroso, entre as letras e palavras, se desmanchando em fios – “desfiando”, na sua bela imagem – acontecimentos vivenciados, portanto situações verdadeiras, na alternância das histórias lá contadas, sempre com o meu eu-máscara enlaçado a elas. Sempre. O meu desejo amoroso foi recolhendo, aqui e ali,  saberes diversos e múltiplas vozes que foram costuradas –  não encontro palavra melhor… – às minhas diversas leituras  das belíssimas páginas da literatura judaica (Amós Oz, Bashevis Singer, Kafka, I.L. Peretz e outros mais), das narrativas fortes e poéticas da Bíblia Hebraica, da longeva história do povo judeu, e ainda de escritores não judeus, como Jorge Luis Borges que reverenciou esse povo milenar em sua produção literária – que se leia o magnífico “El Aleph”! Então, o meu desejante olhar amoroso – ou, o meu eu-máscara – foi guiando com delicadeza os meus dedos para que tocassem a realidade da sabedoria médica que, além da cura dos nossos corpos biológicos, procura sempre a Justiça como exercício da Ética, tão ausente agora, e talvez desde sempre. Lado a lado ao saber médico,  toquei a realidade de seu outro inseparável comparsa, o saber jurídico. Descobri que este último segue, quase que aos trancos e barrancos, tentando preencher os vazios que permeiam a medida humana do justo e do injusto. Algumas vezes, chega bem perto, em outras, falha completamente. Com os meus dedos de romancista segui tecendo um enredo, às vezes caótico para mim, no qual tanto o saber médico quanto o jurídico se mostravam quase que imobilizados diante da tragédia de um acidente automobilístico criminoso, que é o mote central de O Enigma de Daniela. Enfim, o romance – e não apenas o meu, com certeza! – é minha voz, voz reflexiva e altamente elaborada, incluindo certa desordem da minha escrita, que tem o poder de abrigar outras vozes, vozes íntimas e coletivas,  jurídicas e médicas, de professores e da estudante de medicina, do pai amoroso e da bela filha resgatada da tragédia pelo amor paterno, vozes dos amantes enlaçados pelo mútuo encontro feliz, e tantas outras vozes significativas. E sim, o meu romance toca a realidade presente e com beleza estética, desejar apontar futuros possíveis, e – tenho esperanças! – mais humanizados. Para que um dia, talvez – quem sabe ao certo? – consigamos nos libertar do Holocausto pós-moderno no qual estamos como que paralisados, literalmente sufocados pela injustiça universal – e agora me remetendo às inspiradoras palavras da poeta Maria Lúcia Dal Farra, que escreveu a apresentação de O Enigma de Daniela. Paralisados nós todos, e não apenas as pessoas portadoras de tetraplegia que o meu eu-máscara abrigou, acolheu com amor, no fluxo dessa minha narrativa romanceada de acontecidos reais, verdadeiros.

 

DA – Nunca é demais pensarmos sobre o que realmente desejamos para o Outro, exercício de alteridade no qual a promoção do bem coletivo nalguns momentos parece resvalar na utopia. Acredita que estamos presenciando, em escala global, um acelerado processo de desumanização?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Para responder à sua pergunta, retorno a Mikhail Bakhtin que, nos dias de hoje, muito me tem inspirado com a sua teoria do romance. Escreve Bakhtin que, no gênero romance, a realidade fica de tal forma próxima da ficção que é como se aquela pudesse ser agarrada e tocada pelas mãos do escritor, ou colocada de pernas para o ar, ou exibida em suas vísceras carnais. Essa grande proximidade com o presente produz, no gênero romance, o seu permanente inacabamento que o abre ao futuro, em leituras que seguem o recriando a qualquer momento e sempre. O gênero romance se estabelece como mais próximo do futuro do que do passado, resvalando às vezes na utopia, comenta ainda Bakhtin. O que isto tudo pode nos inspirar? Que o romancista tende a se encostar sim em certa utopia, no nenhum-lugar,  no lugar do supostamente irrealizável, porém desenhado nas páginas de milhares de romances.   Pois, do outro lado da escrita ficcional,  do romance, se encontra o seu Leitor.  Este último vai preenchendo o vazio ou o adensamento excessivo entre as palavras, essa rara espécie de nenhum-lugar, com o cimento da própria experiência existencial. É assim criado um tipo particular de diálogo no âmago da escrita ficcional. Do Escritor do romance e de seu Leitor:  inseparáveis no tempo da leitura ou das reflexões elaboradas após a leitura, e que talvez acompanhem o Leitor por toda a sua existência. Refletindo um pouco mais em torno do elo entre o Escritor e o Leitor.  Ao menos para mim, que me bebo também nas fontes da filosofia, os diálogos de Sócrates, contados por Platão, seriam romances de vidas, pois narram histórias reais. E há muito mais a dizer. O diálogo socrático está ali não como mera possibilidade de ser vivenciada por Outro, um suposto Leitor, mas está lá de corpo presente, cravado em palavras e se entrecruzando na forma dialógica da escrita de Platão. No que também tendo a concordar com Bakhtin, que viu nos diálogos platônico-socráticos os primórdios do romance europeu. E do nosso, por consequência. O rápido processo de desumanização – ao qual você se refere e com o qual tristemente tenho que concordar – poderia talvez ser sustado com o retorno ao romance, à poesia, à totalidade da literatura e, é claro, com o retorno às demais criações culturais: artes plásticas, cinema e qualquer tipo de invenção artística (que se fragmentam em múltiplas formas de aparição, nos dias de hoje). Li há pouco um discurso proferido pelo poeta Federico Garcia Lorca, no dia da inauguração de uma biblioteca pública em sua cidade natal.  Nesse discurso lírico, afirma o poeta que não só de pão vive o ser humano. E se por acaso ele, o poeta, estivesse faminto, pediria metade de um pão e um livro. É esse um provável caminho, quem sabe… Lembro ainda que tive o privilégio de, em pequeníssima parte,  vivenciar algo semelhante, desde 1985, como professora de Filosofia em escolas de ensino superior, direcionadas particularmente a trabalhadores pobres. A fome (ou, nos dias de hoje, a alimentação carente de nutrientes necessários à vida)  se manifesta na fala e na escrita da maioria dos estudantes. Mas é em igual medida que os mesmos estudantes manifestam fome por cultura. Se o pão lhes foi negado – mesmo que no corpo perverso da “comida” atual – a cultura igualmente lhes foi roubada descaradamente. E nos dois sentidos, o fosso é muito profundo entre a fome e o se sentir saciado.

 

Foto : Julieta Benoit

 

DA – Essa ideia de saciedade pelo acesso aos bens culturais deveria ser respeitada como um direito humano inalienável, posto que também estimula a formação do pensamento crítico. Você aposta na libertação do sujeito pela fruição da arte?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Gostaria de dar um toque psicanalítico a minha resposta. Breve retorno a Sigmund Freud, nas questões da arte e dos artistas. Relembro de um curto texto no qual o psicanalista-fundador discorre sobre o “princípio de prazer” e o “princípio de realidade”. Segundo Freud,  esses dois princípios parecem guiar, dar direções ou doar significados à vida psíquica de cada ser humano. O princípio de prazer é quase onipresente em nossas primeiras escolhas, ainda no berço, na primeira infância. Sua tarefa mais importante seria, a todo custo, evitar o desprazer. Mas aos poucos, o princípio de realidade coloca interdições ao primeiro, vai se impondo e ganha cada vez maior espaço no psiquismo humano, determinando nossas decisões relacionadas ao mundo exterior, à sociedade em que vivemos. Às vezes, chega quase a sufocar por completo o princípio de prazer. Trocando em miúdos, seria algo bem semelhante ao princípio de adaptação à realidade.
E me desculpe se faço um resumo tão tosco de reflexões tão poderosas! Mas prossigo, apesar da precariedade. O artista é aquele que, por um talento inexplicável, consegue aproximar, entrelaçar os dois princípios de funcionamento do psiquismo quando produz uma obra de arte. A um só tempo, a obra artística dá prazer ao próprio criador e ao seu fruidor. Enfim, a obra passa a compor a realidade e surge nela como objeto artístico. Observação muito importante: o artista se recusa à aceitação do princípio de realidade e, de certa forma, faz a sua negação, mesmo que parcial. O fruidor da arte é aquele que compactua – talvez, secretamente ou inconscientemente – com a insubmissão do artista ao mundo em que vivemos, embora não consiga realizar o ato de rebeldia, a obra de arte. No nosso tempo presente, vigora a sensação de que prevalece apenas o sufocante e puro princípio de realidade. É muito triste que assim seja. A arte e o seu criador, o artista, são censurados,  banidos ou ignorados o tempo todo e por diversos meios.  Não há horizonte visível, ao menos para mim, de libertação dos seres humanos pela fruição da arte. E me pergunto muitas vezes que significado pode ter um direito, mesmo que inalienável, se não se pode o exercer, ainda que parcialmente? Me permita repetir o que já disse antes: o fosso é muito profundo entre a fome e o se sentir saciado, tanto pelo pão quanto pela cultura. Diria que é o fosso da terrível desigualdade, em todas as suas formas de aparição, na realidade contemporânea. E contudo, quando se sente fome, acredito que ainda vale parafrasear o poeta Garcia Lorca – e há ainda quem o faça sim! e aos gritos! – que meio pedaço de pão aplacaria a necessidade básica de todo ser humano, caso chegasse acompanhado de um bom romance.

 

DA – Por falar em psicanálise, há um exercício de escutas que norteia a relação entre a personagem-narradora e  Daniela, servindo de base para a exposição dos relatos e situações. Em que medida a sua porção de psicanalista auxiliou nessa construção?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Você tocou num assunto muito importante para o processo de elaboração do meu romance. Antes de tudo, devo confessar que o meu ser psicanalista só se mostrou por inteiro após finalizar as escutas de Daniela.  Me explico. Foi a moça que me revelou o que eu não sabia ainda, ou não era bastante claro para mim. Daniela me disse que eu tinha sido a sua psicanalista durante um longo tempo, um ano ou mais. Se bem que,  acrescento eu, não nos moldes tradicionais. Era eu que me deslocava até o apartamento de Daniela. Não havia, como o habitual, o consultório da psicanalista.  Não recebi  pagamento em dinheiro por tais escutas.  Porém outros detalhes ocorriam. Dois significativos exemplos: o tempo sempre fechado da escuta e Daniela me revelando segredos. Sim, segredos os quais, após o romance já composto, ela resistiu bastante quanto à publicação de alguns trechos, pois seriam seus “segredos”. Hoje, quando  junto as pontas do já acontecido,  se revela para mim um exercício de inspiração psicanalítica intensa no decorrer da escuta não apenas de Daniela, mas igualmente, do pai da moça, o médico Alberto, da advogada Cleide e das demais pessoas, de cujas falas me ocupei para a construção – um tanto caótica, confesso –  do enredo do meu romance. Veja só que precisei de mais de quatro anos até colocar um ponto final em tudo. E enquanto isso não acontecia, não era muito claro para mim o significado e os limites da minha experiência de escutas de inspiradas na psicanálise. E vou além. Penso que  as pessoas – que pelo ato mágico da escrita ficcional, tornaram-se personagens do meu romance – todas elas são singularidades humanas, são únicas e insubstituíveis, e se faltasse uma apenas, o enredo não seria o mesmo, se enfraqueceria muito, ou talvez nem sequer existiria. Pois nunca se tratou de um enredo construído conscientemente, foi muito mais uma escrita beirando a desordem, durante aquele tempo em que fui sugada pela vida.  Talvez por isso, no romance finalizado, conservei por inteiro as vozes que escutei. Mesmo que eu tenha enlaçado  as falas das pessoas-personagens naquilo que é só meu, a minha rede de pescadora das vozes de Outros e que resultou no meu eu-literário.  Aquela que sou sustentou aquela que inventou a fantasia de Outros e a minha, a um só tempo. Isto tudo acontece sempre na escrita de qualquer romance? É a minha pergunta ainda sem resposta. E nem pretendo encontrar uma que seja acabada e, portanto, sem vida, fria e morta.

 

DA – É interessante perceber que o processo autoral no seu romance acaba resultando numa convergência de vozes. É a sensação ali de não se ter uma autoria fixa, centrada num sujeito apenas, mas na intersecção de subjetividades. Desde sempre você apostou conscientemente nisso?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – “Convergência de vozes” e  “intersecção de subjetividades”: bonito! Gostei das expressões, ou melhor, da sua interpretação. Essa pergunta me conduz a  Roland Barthes (brilhante escritor, quase “démodé”, infelizmente…). Me recordo de Barthes discorrendo sobre a “morte do Autor” e dando a própria interpretação da literatura e do romance, em particular.  “A escritura é a destruição de toda voz, de toda a origem… a começar pela do corpo que escreve”.  Destruição das origens, a do corpo que escreve e de sua voz. Com qual finalidade Barthes decreta a morte do Autor? Para realçar, penso eu, a própria escrita ficcional e dar espaço para que falem as múltiplas vozes ali acolhidas. E igualmente, para destacar a importância singular do Leitor.  Sem leitores não há romance que se sustente no presente, ou que perdure por muito tempo. Você me perguntou se foi escolha consciente o ato de descentralizar ou dissolver a minha autoria na “intersecção de subjetividades”. Respondo que sim, foi consciente, e ao mesmo tempo, que não foi consciente. Explico o sim: é porque pertenço a uma geração que tendia ao coletivo,  ao partilhado. O romance é lugar ideal para manifestar as vozes que me habitam. E Barthes, de certo modo, falava e escrevia para esse meu outro tempo, talvez por isso esteja um pouco fora de moda. Agora, o não. E é bem difícil de explicar que não foi inteiramente um ato consciente, que eu me inclinava, de certo modo, à minha anulação. Dei voz a  tantos, partilhei com muitos a minha voz de escritora.  Olhe, tenho que detalhar alguns dos meus procedimentos literários.   O gravador de voz  foi o instrumento mais importante para realizar as escutas. Escutava ao mesmo tempo que gravava e depois, eu mesma elaborava as falas, cuidadosa em conservar o melhor: o ouro, ou o mais precioso delas. Ressalto, ainda uma vez mais, que há outras vozes – além das pessoas reais, transformadas em personagens da minha ficção – vozes que recolhi da história escrita do povo judeu, do melhor da literatura judaica, das preciosas citações da Bíblia Hebraica. E é certo que, poucas vezes, me deixei falar, a minha voz é silenciosa, quase ausente. E quando aconteceu de eu falar… Bem, você já sabe, é o meu eu-literário que se apresenta, um “eu” que é ficção do que eu sou. No meu romance, outra vez trocando em miúdos, me apresento como uma quase mentira de mim mesma, fantasia do meu eu.

 

DA – É impossível não notar como a ideia da fé atravessa todo o seu livro. Nesse contexto, as citações de passagens da Bíblia Hebraica estão sempre a introduzir cada capítulo e acabam dialogando, de algum modo, com a atmosfera que emana das narrativas. Diga-se de passagem, a saga do povo judeu, em especial, é algo emblemática no transcurso da história, sobretudo pelos desafios enfrentados. O caminho da espiritualidade é uma via de esperança?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – As suas perguntas me jogam sempre para o lado de escritores que me apaixonam! Como a atual. E agradeço por me dar a oportunidade de dizer algo, ainda que bem sucinto, em torno do escritor judeu israelense Amós Oz. A Bíblia Hebraica entrou no meu romance por intermédio dos seus ensaios de Os judeus e as Palavras. Oz, em um deles, se autodenomina “escritor secular” e demonstra ver na Bíblia Hebraica o lugar da pura literatura, e da mais alta qualidade, encontrando nela poesia e encantamento. De passagem, recordo que Amós Oz possuía uma grande e fértil erudição, que se manifestou em diversas direções, como no romance Judas e na autobiografia De Amor e Trevas. E há mais, muito mais que não caberá nesta simples resposta. Oz escreveu, neste ensaio que citei,  que o povo judeu tem uma relação muito particular com as palavras. Durante séculos e séculos, não tiveram outra terra ou país a não ser o das palavras, a começar pela Bíblia Hebraica, ou a Torá, para ser mais precisa. E quando alguém folheia, de modo despreocupado, o meu romance O Enigma de Daniela, encontrando lá, em suas páginas, citações bíblicas, norteadoras de cada um dos seus capítulos, poderá talvez pensar: “Caramba, este deve ser um romance religioso”. Mas não é de modo algum. É, isto sim, um livro que muito  gostaria de cativar os seus leitores com palavras e apenas palavras, através de existências humanas significativas, vivas, como quando ocorre, em suas páginas, o enfrentamento de quase intransponíveis desafios diante de um acidente criminoso e que abruptamente atingiu a jovem mulher judia Daniela, de apenas 23 anos, roubando-lhe os movimentos mais importantes do seu corpo. Para completar, lembro aqui de um tema presente no meu romance, o da complicadíssima relação entre religião e tradição judaicas. Dou um exemplo que me chega das minhas relações pessoais, portanto, de fora do romance.   Tenho uma grande amiga cujo pai era  judeu alemão e que imigrou para o Brasil nos anos da 2ª Guerra Mundial. Este senhor era ateu e marxista, no entanto, colaborou financeiramente para a construção da Sinagoga do Rio de Janeiro. Me parece que muitas vezes é bem complicada para os judeus e judias resolverem a equação religião versus tradição. Enfim,  se tenho alguma fé, é nas palavras escritas, no seu poder de encantamento, que pode mover o íntimo das pessoas para algum lugar melhor, dentro ou fora delas. Mas há também, nos dias atuais – e aliás, sempre existiram –  palavras que ferem e, às vezes, são letais. Difícil de responder… Me afasto sempre de caminhos pré-fabricados. E de um poema me lembro agora, do espanhol Antonio Machado, que assim escreveu: “Caminante no hay caminho, sino estellas en la mar”.  A ver

 

Foto: Julieta Benoit

 

 DA – Que espécie de polêmica a capa do seu romance gerou?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Ótima pergunta, que me possibilita dizer algo a esse respeito. Mas, antes de tudo, gostaria de agradecer ao excelente e prestigiado fotógrafo Ângelo Pastorello, que assina a foto de capa do meu romance. E também ao artista Eder Cardoso que compôs a capa a partir da foto de Pastorello, e ainda é o criador do bonito projeto gráfico do meu livro. Indo agora direto à polêmica, que dividiu opiniões. Alguns, que criticaram insistentemente a foto, disseram que se trata de um resultado fotográfico resvalando a publicidade, talvez um kitsch fotográfico. Outros, que a aprovaram – aliás, a maioria – viram nela algo próximo a conceitos da “pop art”. É engraçado, pensei, que uma opinião não anula a outra, mas se complementam. Preferi  então beber na fonte e fui conversar com o fotógrafo Ângelo Pastorello.  Diálogo bastante interessante e  bem surpreendente, pois  me remeteu às minhas escolhas – ou não-escolhas, para ser mais precisa – na escrita de O Enigma de Daniela. Veja, de forma bem sucinta, o que Pastorello me revelou. Que nunca teve como ponto de partida um conceito, em particular. A sua única escolha foi a de fazer um portrait, ou seja, um retrato espontâneo, sem truques, em interação viva e livre entre o fotógrafo e a pessoa fotografada, no caso, Daniela.  Para fazer o retrato, apenas escolheu, isto sim,  o tipo de luz, uma luz mais volumosa, luz de cinema,  para acentuar as expressões faciais e corporais da moça. De resto, completou, tudo aconteceu de maneira empírica e espontânea, entre o fotógrafo e Daniela.  Enfim, Pastorello ressaltou bastante que não foi guiado por um ou outro conceito, e é bastante subjetivo falar de conceitos em fotografia. Se dissesse, por exemplo, que a intenção era a de passar a seriedade ou o humor da moça, isto não seria completamente verdadeiro.  Pois sempre é o ponto de vista do fotógrafo que prevalece, um olhar apoiado por um aparato técnico-fotográfico. Enfim, nada tem a ver com conceitos pré-estabelecidos, específicos e, durante a sessão de fotos – que se prolongou por um dia inteiro –, nas palavras de Pastorello, “deu-se a liberdade de improvisar”. E concluiu me explicando, uma vez mais, que a imagem carrega muito da subjetividade do próprio fotógrafo, mas acima de tudo, a de quem olha a foto.  Na verdade, é ainda mais importante, pois a pessoa olha e sente a imagem de acordo com o seu Universo próprio e único.

 

DA – Você me confidenciou que estava trabalhando num novo livro. O que pode nos dizer a respeito desse futuro projeto?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Sim, revelei um segredo para você. Mas posso adiantar algo sobre esse novo projeto, já em curso. Será (ou já está sendo) um romance de vidas, como foi O Enigma de Daniela. São muitas vidas femininas que estou agora abrindo a minha escuta às suas vozes internas: seus gritos de aflição, de dolorida existência e também, aos seus desejos mais intensos. Os meus dedos de romancista tocam a vida real de mulheres, envoltas em grandes dificuldades e lutando contra elas, o tempo todo. São dificuldades, diria eu, diferentes daquelas enfrentadas pela família judia Bortman e, em particular, pela mulher Daniela. São dificuldades vivenciadas por muitas mulheres que se remetem à pobreza material,  à falta de moradia digna, de uma formação escolar humana.  Sendo de natureza material e espiritual, as muralhas erguidas por tantas dificuldades seguem tentando impedir ou talvez, espedaçar o futuro dessas mulheres entristecidas, mas resistentes. Os seus sonhos femininos persistem com tenacidade, com admirável beleza, apesar de tudo e contra tudo, insistem em existir.  Sobreviventes no caos do dia a dia, universo que as sufoca. Ao sofrimento feminino estou abrindo a minha escuta neste novo romance de vidas. Nele, insisto, é acima de tudo a voz feminina que fala. Já tenho um título, talvez provisório: O deserto e o canteiro belo. Invenção de uma jovem mulher, desprovida de tudo, mas ainda assim, dotada de imensa criatividade. Aliás, como o atual romance, O Enigma de Daniela, cujo título foi escolhido pelo médico neurocirurgião Alberto Bortman, pai de Daniela.  Pois, a criação de um romance de vidas envolve sempre a escritora, o meu eu-literário, e as vozes que nele acolho – como que encantada! Sim, encantada, surpreendida e, sobretudo, emudecida. Sempre tentando transformar tragédias em literatura, em romances, em poemas. Mesmo que apenas seja beleza literária, e no papel lançada.

 

DA- Afinal, por que escrever?

LELITA OLIVEIRA BENOIT – Sem escrever, nada sou. É tão natural como respirar, sabia?  Sem escrever, não há como eu sobreviver. Questão de vida ou morte, ao menos para mim. Escrevo como respiro: se me faltar a possibilidade de escrever, é o mesmo que me sentir sufocada ou sem ar respirável. Ao final do processo de escrever poemas ou romances, ou até mesmo, artigos ou livros de filosofia ou psicanálise, sinto –  é sensação, sim! – que vozes múltiplas falam através das minhas palavras. De certo modo, já me habitavam desde não sei quando.   Sou apenas a voz de Outro.  Procuro ser a transcrição poética das vozes que sendo de Outro, coincidem, de algum modo, com o meu eu-literário, o eu que escreve – e respira! Reforço: até mesmo na escrita teórica, de natureza filosófica ou psicanalítica. Como disse no começo desta conversa inspiradora – à qual só tenho que agradecer a oportunidade – sinto intransponível dificuldade de interpretar a minha escrita. Respiro: eis tudo… Quando faço tentativas de buscar sentidos na minha escrita, o ar me falta, fico ofegante, gaguejo, ou sei lá o quê… O que pode ter acontecido, no decorrer desta entrevista.

 

Fabrício Brandão é caótico, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no mundo como editor, poeta, baterista e mestre em Letras.

 

 

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