Dedos de Prosa I

Rodrigo Melo

 

Ana Pérola

Foto: Ana Pérola

 

CÉU SEM FIM

 

Eu trabalhava como soldador em uma fábrica de carrocerias de caminhão. Não é um trabalho fácil, tanto que muita gente até desiste depois de um tempo, mas era o que eu gostava de fazer. Dizem que todo homem nasce para alguma coisa. Talvez eu tivesse nascido praquilo. Trabalhei lá por quase quinze anos. Chegava bem cedo e saía às seis da tarde, entrava num ônibus apinhado de gente e seguia pra casa apenas para tomar banho, comer e dormir. No dia seguinte, antes que a fábrica abrisse, estava lá outra vez. Os patrões gostavam de mim. Nunca ninguém falou, eu apenas sentia que eles gostavam. Eu era quem menos faltava ou reclamava. Eu não negava serviço, doutor. Naquele dia, porém, uma dor de dente me fez sair mais cedo, algo que jamais havia acontecido. Foram dois os sofrimentos: pelo dente e por não soldar. Sentei no ônibus, desgarrado das coisas, preso àquela dor. Quem já teve dente ruim sabe do que falo. Encostei o ombro na janela, o rosto sobre ele, fechei os olhos. Alguém então se sentou ao meu lado. Era uma loura de uns trinta e poucos anos e a primeira coisa que passou pela minha cabeça foi que ela tinha um rosto parecido com o de mamãe. Ela se sentou e ficou a me olhar com estranheza e curiosidade, em seguida perguntou se eu precisava de ajuda. Minha cara não devia estar boa, ela que na verdade nunca foi grande coisa. Respondi que não, que só estava cansado, que ser gerente numa fábrica de carrocerias de caminhão não era brincadeira, naquele instante eu ia resolver umas questões, havia a labuta com os subordinados, as preocupações matavam. Preferi não dizer que era soldador ou que não cuidava dos dentes. Talvez ela se decepcionasse. Talvez ela deixasse de ser simpática e de conversar. A sua voz era doce como a voz de um anjo. Seus olhos eram cheios de vida, o seu cheiro era bom. Conhecê-la fez com que a dor no meu dente diminuísse. Disse para eu ter paciência no trabalho. Com tranquilidade e fé tudo voltará ao normal. E esta é uma coisa que nunca tive, doutor: fé. Lembro que havia uma moça no orfanato que gostava de me contar histórias antes de dormir. Era uma boa pessoa e foi a única que me deu atenção depois que mamãe me deixou. Um dia ela se casou ou conseguiu outro emprego e nunca mais apareceu. Mas foi ela quem disse: tenha fé, sua mãe ou alguém vem te buscar… Mas eu não sabia como era ter fé e talvez por isso mamãe não tenha voltado e ninguém me adotou e tarde da noite eu ficava acordado olhando para o teto daquele lugar, e a noite marca e destrói, a noite é um libertino que fode com as nossas almas, doutor, e aquele era um teto tão alto quanto um céu sem estrelas, um céu infinito feito apenas de breu e de solidão, e eu olhava para ele tentando entender o porquê dela ter me deixado lá, lembrando do seu rosto, da lágrima que descia, de quando acenou e saiu apressada, sem olhar para trás. Por onde andará? Quem sabe ainda viva, em um outro lugar… Sinto falta do emprego na fábrica, do barulho, de chegar antes que todo mundo e de me pedirem para fazer algum serviço… De qualquer maneira, eu estava lá, no ônibus, e por um instante pensei em conversar um pouco mais com aquela mulher, pensei em perguntar seu nome, se achava que choveria mais tarde ou qualquer bobagem assim, mas não perguntei. Não demorou muito, ela se levantou, puxou a cordinha, disse boa sorte e desceu. Tudo tão rápido que só resolvi saltar quando o ônibus já ia longe. E então comecei a correr. Corri muito, corri desesperadamente, corri como se tudo dependesse daquilo, de vê-la outra vez. E eu a vi: atravessando a rua, com a calça jeans desbotada, a blusa vermelha com listras brancas, o cabelo loiro, a caminhar em direção a um prédio de tijolinhos. Era um prédio velho e pequeno, mas enxerguei charme e beleza nele. Quase um minuto se passou, a luz do apartamento do segundo andar foi acesa e ela entrou e se sentou sobre o pequeno sofá que havia na sala, tirando os sapatos e estirando as pernas. Pensei que era muito possível que ela gostasse de me ver novamente. Mas o que diria? Ela se levantou, foi até o quarto, acendeu a luz e tirou a roupa, ficando apenas de calcinha e sutiã. Passou a se olhar no espelho do guarda roupa, num instante de perfil e, no outro, segurando os seios e os levantando. Enfiou uma das mãos por dentro da calcinha. Eu não sabia o que viria a seguir. A intimidade é a nossa sentença. Segundos depois, entretanto, ela parou com aquilo e entrou no banheiro. Ficou por lá uns bons vinte minutos. Quando reapareceu, estava envolvida numa toalha. Foi nessa hora que resolvi ir até lá. Entrei no prédio, não havia ninguém na portaria, subi os degraus e bati na porta. Eu estava ansioso, sentia que era o que tinha que fazer. Mas o que aconteceu quando a porta se abriu, infelizmente, não foi nada do que imaginei. O rosto dela já não parecia doce e amável como quando conversamos no ônibus, sua tez empalideceu, seus olhos se arregalaram. E ela então me perguntou, andando para trás, com a voz assim meio tremida, o que você está fazendo aqui?! Eu mostrei a nota de cinquenta reais em minha mão. Eu disse, é sua, vi quando caiu. Falei lentamente, sorrindo, para ela se acalmar. Porque as pessoas gostam muito de deduzir e acabam pensando em coisas que não têm nada a ver. Quase sempre se exagera. E acho que foi mesmo o que aconteceu.  Ela de repente estava com os lábios crispados, com os olhos bem abertões, parecendo olho de cavalo, e tentou fechar a porta com força.  Eu coloquei o pé na frente, dizendo que só queria devolver o dinheiro, que já ia embora. Mas ela correu para dentro do apartamento e começou a gritar. Foram gritos horríveis aqueles, gritos longos, altos, que pareciam não acabar mais. Pra quê aquilo tudo? No fundo, digo ao senhor, as pessoas não são de confiança. Culpam os outros pelas próprias escolhas e, se deixarmos, podem mesmo nos arruinar. Eu pensava nisso quando dei o primeiro murro. E, depois dele, dei outro, depois outro e mais outro. A verdade, doutor, é que eu não consegui mais parar, mesmo quando ela deixou de gritar e virou uma massa de carne, sangue e cabelos loiros, mesmo quando senti que não respirava mais. Quando vocês chegaram, mais de uma hora depois, o dente tinha começado a doer outra vez e eu estava deitado ao seu lado no chão, com o braço cruzado sobre o seu peito, abraçando-a. Do mesmo jeito, doutor, que eu, quando olhava para o teto lá do orfanato, imaginava deitar com mamãe.

Rodrigo Melo é autor de “o sangue que corre nas veias” e “jogando dardos sem mirar o alvo”, livros de histórias curtas. Lançará, no final do ano, o seu primeiro romance.

 

 

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3 Comentários

  1. Parabéns pela excelência!

  2. Gente, que surpresa no final!
    No início eu fiquei tentando buscar uma explicação para o gosto de soldar. “Solda dor”. Soldar a dor. Consertar o quebrado, emendar-se para ser amado depois do abandono… No final ele quebra e amassa… nada mais teria conserto. Somente o céu continuou sem estrelas naquele teto bem alto.
    Muito bom!

  3. O autor consegue nos prender a atenção em todo o texto, deixando-nos a imaginar um desfecho. E ele chega inesperado, para este jorro de frases bem boladas, coerentes. Ótimo texto, Parabéns!
    Maria Lindgren

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