Janela Poética IV

Rodrigo Melo

 

Helena Barbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

SILOGISMO

 

quem sabe às vezes,
em algum apartamento velho e alugado,
enquanto um moleque lhe pede a janta,
ela por um instante pare e tente imaginar
no que é que o tempo ou a vida
me transformou.

 

 

***

 

 
MA VIE

 

suas ancas largas e a frase de dylan thomas na cicatriz do pulso direito lembrança da noite longa que perigou ser o fim aquela noite fodida e mal paga em que te tirei da banheira como os personagens dos filmes que você assistia e agora este céu estrelado este céu que segue ad infinitum sobre nós e sobre as nossas cabeças mesmo você não estando completamente aqui mesmo você recendendo à porra duma semente de alguma verdura que precisa brotar nesse instante em qualquer outro lugar tem alguém amando tem alguém lavando roupa assistindo tv jogando dominó batendo punheta comemorando o aniversário do cágado do gerente de compras da vizinha que ficou viúva e faz crochê alguém talvez sentindo o mesmo que eu esse tipo meio nonsense e amalucado de melancolia o gosto por perder também um pouco de medo além de todo esse anti climax que é coexistir e isso me coça a alma beibe isso me leva à merda do chão eu te encontrei um dia e sua boca carnuda e os quadris largos me salvaram e fazem falta agora o seu pulso direito com uma frase de dylan thomas todas as suas mágoas nos braços borrada por cima do queloide sua voz rouca a cantar músicas de jair naves i love you but i’ve chosen darkness e o seu jeito de querer ter razão agora a casa em silêncio a cama desarrumada a banheira toda suja de sangue quando fecho meus olhos à noite e tudo volta tudo como uma espécie de gif queria saber se você vai ficar de pé amanhã ou na próxima semana queria saber se a gente ainda vai para algum outro lugar de mãos dadas nesse instante tem alguém pulando de uma ponte alguém comendo pizza de calabresa visitando o avô que está com câncer no pulmão e que morrerá antes do natal comemorando o título antecipado do time do coração aplicando um golpe num caixa 24 horas levando o cachorro para passear assobiando ma vie de alain barriere alguém sentindo essa mesma merda que eu o coração gritando alucinado a cada batida feito um gigante de conto de fadas na hora em que vai gozar.

 

 
***

 

 

 

UMA CIRROSE NO PORTA RETRATOS

 
Dona Nice sente falta do marido,
reza para a santa
e costura tapetes
pra esquecer.
seus olhos são como duas poças de lama
em solo sêco e rachado
e eles se perdem entre a rua lá fora
e a imagem do quarto no hospital.
ele bebia demais – ela diz,
depois dum longo suspirar -,
mas eu gosto do filho da puta
até hoje.

 

 

 

***

 

 

 

MÉIER

 
um apartamento grande,
tão logo vendesse viveria de renda
em um dois quartos no méier, aquele fim de mundo.
a sala em dois ambientes,
a cozinha espaçosa,
três suítes, uma delas com vista para o mar.
alguns pombos voaram ali perto,
num céu azul de domingo
e o sol rasgou as janelas e alcançou
o retrato dos velhos dependurado na parede,
naquele instante em que ela começou a chorar
– e dentro daquele apartamento à venda,
naquele domingo em que pombos faziam a festa,
além dos soluços,
ecoaram também os velhos dias de aniversários
e formaturas,
as bodas de prata,
visitas de parentes,
a primeira comunhão:
a mãe a servir assados e o pai a fazer palestras,
a sala cheia de gente que não via mais.
uma época distante, que não voltará.
uma época em que não havia morte,
nem saudade,
nem vazio,
nem contas vencidas.
e o méier, aquele paraguai,
a devastadora realidade a esmurrar dia após dia
a sua porta,
era só mais um lugar.

 

 

***

 

 
SEU SORRISO ERA COMO UMA HÓSTIA PRA MIM

 

o coração era um velho milionário
no quartinho habitado por sonhos
que se transformaram em queimaduras
de segundo grau.
a vida é um oceano, você dizia ao
jogar suas roupas numa mochila,
e as ondas mudaram de força e direção.
adeus pernas enroscadas,
adeus festejos e conluios,
adeus planos no meio da madrugada,
quando eu urrava como um campeão.
o quarto é um corpo desalmado sem a foto
do reveillon de 98,
sem as calcinhas dependuradas na cortina do banheiro,
sem o cheiro dos cremes para as pernas,
sem o poster da praia que você sempre quis ir
e eu nunca pude levar:
seu sorriso sempre funcionou como uma hóstia pra mim.
herdei lembranças
e o sapinho no canto da boca que olho toda vez que vou ao banheiro,
feito o moleque que chega em último,
mas guarda com todo o cuidado
a medalha de consolação.

 

 
***

 

 
ASA DE FRANGO

 

papai me disse, uma vez,
que escreveria um livro
que nos daria dinheiro suficiente
para morarmos numa casa bem grande e bonita,
uma casa com jardim, piscina, quintal,
onde poderíamos acordar tarde,
chamar uma dezena de amigos,
criar cachorros, cágados, leões, girafas, tamanduás,
nos sentaríamos numa enorme mesa de madeira,
teríamos churrasqueira, forno à lenha,
varanda gourmet,
uma casa como a de um filme que assisti,
em que no final uma garota deslizava pelo corrimão,
saltava lá embaixo
e corria feliz na direção de um lindo jardim,
ao tempo em que a música tocava e os créditos começavam a subir.
mas papai já lançou uns três ou quatro livros
e a gente continua por aqui,
tomando banho de mangueira na laje
e comendo asa de frango nos domingos,
enquanto ele bebe cerveja
e diz que bota pra fuder.

 

Rodrigo Melo tem dois livros de prosa lançados e em breve publicará o seu primeiro com poemas. Vive em ilhéus, sul da Bahia.

 

 

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