Janela Poética III

Yasmin Nigri

 

helenabarbagelata

Arte: Helena Barbagelata

 

Sobre isto, meu corpo não cansa

 
Contornando trilhos que nunca cicatrizam
Nessa eterna manobra

Descubro que se lhes torço
O cenho com ar zombeteiro
Suas lanças caem

Por isso não mais desvio dos gatos pretos
Inquisidores
Ou desse Outro por quem vocês se passam

Escrevo como quem ruma a país distante
E dá meia volta

Só minhas irmãs entenderão

As que se sabem condenadas
À solidão do próprio útero

Que em torno dessa fogueira
Deram as mãos

E hoje rodam com pés emprestados
De nossas ancestrais

 

 

 

***

 

 

 

Não há mais lugar sem ecos

 
Nessa ânsia por decompor imagens
Lanço a mágoa em plano véu

Ainda que pouco deixe ver em mim o que fui ontem

Continuo percorrendo as estações
Cada uma me impele às alturas

E precipito a queda
Vertigem de abismos mancos

Nem as plantas de tão seca fibra sentem sua ausência

Despedaço livros
Arremesso louças
Parto colunas

Para irromper meu mundo do seu corpo
Em mundo menos restrito e mais amplo

Se ao menos pudesse estar onde não mais venho ouvir sua voz

Ainda que pouco deixe ver em mim o que fui ontem
Não há mais lugar sem ecos

 

 

 

***

 

 
Este obscuro objeto do desejo

 
Não bastasse entrelaçados
Você desata

Tentei manter a testa imóvel
Não franzir o cenho

Dar de ombros
Soltar um longo suspiro

Nada que pudesse revelar
Este assombramento

À espera do sono
Onde sonho e realidade convergem
Para que se repare o dano

Antes que assente fundo
Antes que os perseguidores possam reclamá-lo

Preciso fosse, escreveria ao mofo das paredes, preciso fosse,
__________.

Então você chega
E traz consigo tudo que a aurora dispersou

Envolve meu ventre com
O delicado manto que sai da sua pele
E deita ao meu lado o segundo astro que veste a cidade

 

 

 

***

 

 

 

CID 10 – S91.3

 

Em delírio fui copo

À espera do teu juízo

Fui esquecida

Largada no quarto

Durante sua festa

Virei cinzeiro

Estive imóvel e atenta

À espera do seu chute

Cortei seu pé

Fiz sangrar

Causei toda sorte de infortúnios

Da dor

Ao tétano

Nem cruzes ou credos puderam dar cabo

Até seu pé ser amputado

 

 

 

***

 

 

 

Escrevo para te dizer que não tem acontecido nada e passo os dias tomando café ao som do Estrangeiro e tenho procurado emprego e não recebido resposta e tenho prorrogado comprar uma garrafa térmica porque derrubei a antiga e faço aqui uma pequena ressalva: tenho tomado café frio. Quem virá com a nova brisa que penetra pelas frestas do meu ninho quem insiste em anunciar-se no desejo? Toda semana decido ir diante da tua árvore para conversarmos a sós e lembro que tal árvore não existe apenas em algum poema que li e pensei que seria útil se você também tivesse uma e eu pudesse usar uns tempos verbais antiquados pra falar da tua árvore e como me prostro diante do teu signo e sinto tua vida pulsando na sola dos pés. Escrevo para anunciar o desejo que me mandes um mapa ou pergaminho falso para que o tempo aqui passe menos vagaroso e tenha algo para me entreter, tal como Sísifo.

 

Yasmin Nigri (1990), carioca, é graduada em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense. Cursa atualmente o mestrado na linha de Estética e Filosofia da arte. Feminista, cofundadora e integrante do coletivo DISK MUSA, grupo de mulheres que alia poesia e ativismo na produção de conteúdo áudio visual e performance. Montou sua primeira exposição com o coletivo DISK MUSA no final de 2015. É membro da Oficina Experimental de Poesia, que acontece toda quarta-feira, no Méier. Tem poemas publicados nas revistas mallarmargens, escamandro, germina e jornal relevO.

 

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1 comentário

  1. Belpíssima poesia. napo posso comentar muito, pois estou com crise eterna de coluna.

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