L. Rafael Nolli
Paraíso
1
muito além das plantações de agrotóxicos
esquecido depois da derradeira ponte
do último homem que por ali passou
não resta o menor vestígio
o que ele viu – há tantos anos atrás –
é o mesmo que um satélite vê agora
da imensidão do espaço sideral
nenhum dos dois sequer suspeitou
2
onde hoje a árvore produz sombra
o prédio da prefeitura se erguerá
o rio prateado pelo sol
escorrerá
sinistro & pesado
dentro de uma galeria
pouco depois da colina
um sinal de trânsito determinará o fluxo
para o que agora é só vale e vento
3
sobre esse chão as pessoas
conhecerão fome e sede
e lutarão até as últimas forças
onde hoje prospera a grama miúda
a estátua de um boçal apontará o dedo
para a imensidão do espaço sideral
***
Hefesto/Vulcano/Völundr
Era um deus, no entanto.
Porém, não o poupavam. “Coxo Coxo
…………………………………………Coxo”
sussurravam pelas ruas.
Nos inferninhos e na boca do lixo
o consenso era geral:
“feio como um beliscão no cu”
“a própria mãe reconhece a merda que fez”
& demais despautérios.
Entre os seus, em língua grega
– ou naquela que lá se fala
& tampouco compreendemos –
a fama de corno corria aos quatro cantos:
“vencido por um amor de espuma”
“enfeitiçado pelos olhos de cigana oblíqua…”
& coisas do tipo.
Distraído, no cômodo do fundo
iluminado pelo fogo da fornalha
ele nada ouvia
senão o som do martelo malhando o metal.
***
23 horas 56 minutos e 4,09 segundos
para Érico Baymma
1
dias ruins
por coisas pequenas
quase-nada
pingo no i na letra errada
tropeço no cadarço desamarrado
dias ruins
por grandes problemas
estouro de boiada
um caminhão entalado bloqueando a paisagem
azia no banqueta das musas
dias ruins
por bobagens corriqueiras
coisas banais
azar no jogo
– dardo, RPG, carta –
ter que repetir a frase
(quando não se disse nada)
2
dias bons
por coisas pequenas
ou por nada
um sorriso (alado)
um pássaro pousado no retrovisor do carro
(ou por qualquer coisa fugaz rápida
como a queda de um meteorito
o bote de uma naja)
dias bons
por coisas grandiosas
que tomaram tempo
& cansaram o espelho
que consumiram a tinta do calendário
dias bons
por coisas improváveis inesperadas imprevistas:
encontrar um novo amor
ao pegar o caminho errado
(ficar perdido
até ter que mudar de casa)
***
O vendedor de algodão
o vendedor de algodão doce
se anunciava com um apito
senhor de diversas cáries
distribuía nuvem cristalizada
tingida de azul ou rosa
aceitava cascos de cerveja
que guardava em um saco de batatas
quando passava por uma criança
que não atendia ao seu chamado
ou simplesmente não se interessava
saía resmungando
curvado sob o peso do fardo
***
Cidade dos sonhos
1
Antes do amanhecer
estarão tomando a praça central.
A imensa cavalaria
sedenta pelos jardins
arqueiros posicionados
no alto das colinas
a infantaria
dinamitando as pontes.
Pé ante pé, rua a rua,
as posições sendo tomadas.
No entanto
antes que declarem o seu triunfo
um golpe decisivo dissolve o inimigo.
Abro os olhos: acordar basta.
2
Um dia a guerra estará perdida
e o povo daquela cidade
que só existe em meus sonhos
ficará entregue a própria sorte.
Um dia, quando eu não acordar mais,
a cidade se extinguirá
com todos que por lá transitam –
ou eles migrarão para outros sonhos?
Quem sabe, enfim,
esse seja o dia em que terei que defendê-la
de corpo presente
com as próprias mãos…
3
Saberei eu no sonho de quem?
L. Rafael Nolli nasceu na cidade de Araxá, MG, no ano de 1980. Publicou Memórias à Beira de um Estopim (JAR Editora, 2005) e Elefante (Coletivo Anfisbena, 2013).