Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Big Jato. Brasil. 2016.

 

 Big Jato

 

Big Jato, de Claudio Assis, não é exatamente uma inflexão no cinema do diretor pernambucano, mas radicaliza sua obra para uma alegorização do Brasil e para a poesia libertária das imagens.

Essas características já estavam presentes em seu filme anterior, Febre do Rato, que se passava no ambiente do Recife, num quase-alegórico anos 70, filmado em preto-e-branco. Ambos escritos pelo roteirista Hilton Lacerda (que é também o diretor de Tatuagem, um filme bem afim desses dois filmes de Assis), Febre do Rato e Big Jato opõem os princípios da ordem e da liberdade.

Em Febre do Rato, Zizo é um poeta das ruas, libertário, anárquico, amante de todas as mulheres, sobretudo das mais velhas, de quem faz a felicidade, mas se apaixona “platonicamente” pela jovem e bela Eneida, que evita se envolver com ele. A poesia e a libertinagem correspondem à ideia de liberdade. Já o princípio da ordem é a própria ditadura militar, não abordada diretamente, mas intuída nas cores P&B e no sentimento de “beco-sem-saída”. Na cena final, a nudez dos corpos se contrapõe à própria nudez do autoritarismo do regime, que não consegue lidar com o inusitado de uma performance corporal de poesia em plena comemoração do 7 de Setembro.

Em Big Jato, a alegoria é total. A história se passa em Peixe de Pedra, um município fantasioso do sertão mais entranhado do Brasil, com suas paisagens que lembram os chapadões, as rochas antiquíssimas, onde estão depositados os fósseis pré-históricos mais antigos da fauna do continente.

O filme traz a história de Chico Filho, adolescente que acompanha Chico, seu pai, num caminhão limpa-fossas denominado justamente de Big Jato. Chico Filho acompanha e ajuda no trabalho de seu pai de sugar com a mangueira o excremento das fossas das casas do interior sertanejo ainda não atendidas por saneamento básico. Apesar de ter outros três irmãos, um deles mais velho, que estuda matemática, apenas Chico ajuda o pai em seu trabalho.

Chico Pai e Chico Filho no caminhão limpa-fossas

Chico Pai e Chico Filho no caminhão limpa-fossas / Foto: divulgação

Chico Pai, vivido por Matheus Nachtergaele, é um trabalhador que durante sua jornada de labuta ensina a seu filho adolescente a virtude e honra do trabalho. “Quem não reage, rasteja” está escrito no paralamas de seu caminhão. Uma ética do trabalhador que o pai quer transmitir ao filho para que ele se afaste da atividade ociosa da poesia.

Chico Filho, o adolescente, sacoleja no caminhão trepidante pelas estradas do Brasil profundo e parece gostar de ajudar seu pai em sua jornada de trabalho. Mas ele também nutre fascinação por Nelson, seu tio, um personagem que é o avesso de seu pai: Nelson é radialista, apaixonado por rock, e tem um enorme desprezo por trabalho e pelos “urubus de carteira assinada”, como chama os trabalhadores. Nelson, que é também vivido por Matheus Nachtergaele, disputa com seu irmão Chico Pai a mente do sobrinho adolescente, incentivando seu talento nato para a poesia. Dá de presente ao rapaz uma máquina de escrever para seduzi-lo por outra vida e para semear seu desejo de fugir da cidade e não ficar condenado a ser um “limpa-bosta”, como se refere ao pai do garoto.

Assim, os dois irmãos, vividos pelo mesmo ator e que durante o filme nunca se encontram, representam em Big Jato a oposição entre ordem e liberdade. Ordem dessa vez é a prisão de um trabalho sem sentido e sem futuro, enquanto liberdade é a poesia, o rock e a vida ociosa.

Entre pai e tio, o adolescente também trava amizade com o Príncipe, personagem vivido por Jards Macalé, filósofo e vagante das ruas de Peixe de Pedra. O Príncipe medeia a indecisão de Chico Filho entre seguir o exemplo de trabalhador do pai ou o de libertário do tio. Ele ensina ao rapaz outra dialética: a das vísceras e do amor. As vísceras são aquilo que nos empurram com a força de sua necessidade.  Já o amor é uma prisão, como já havia provado o poeta Zizo de Febre do Rato. O amor testa Chico Filho em sua paixão pela menina do vilarejo, a quem dá um vidro de perfume e dedica um poema. Mas a menina já está noiva de outro rapaz…

Um dos maiores problemas do filme é que a oposição entre ordem e liberdade, representada pela oposição existencial entre os irmãos, é bastante esquemática. Por um lado, Chico Pai é o típico patriarca, provedor, cheio de filhos, que quando chega em casa se enche de cachaça, agride verbalmente a mulher e fisicamente os filhos, incentiva a iniciação sexual do filho com prostitutas, opõe a matemática à poesia, sendo a primeira o caminho certo de estudo para subir na vida e a outra a rota para uma vida de vadiagem. Já seu irmão é precisamente seu avesso, tendo repugnância pelo trabalho, amante da liberdade e da ética do rock’n’roll e pela conjunção vital entre poesia e música.

O libertário Nelson

O libertário Nelson (direita) / Foto: divulgação

Chico, o adolescente, parece transitar bem pelos dois mundos e está à vontade em ambos. Tanto ouve com atenção as histórias carregadas de sabedoria do próprio pai, em sua visão de mundo de trabalhador, como tem admiração pela trajetória libertina do tio. Nesse aspecto, ele é tanto um mensageiro entre os dois mundos (que nunca se encontram), como relativiza a tensão opositiva entre seus dois modelos.

Afinal, os modelos não são assim tão opostos e o filme descontrói o contraste entre os irmãos. Por um lado, o pai, com seu discurso, repleto de metáforas de excremento, matéria-prima de seu trabalho, considerado o elemento universal da vida, e se afigura assim como um sábio contador de histórias; por outro lado, Nelson, o tio, é um dedicado radialista, fascinado pela banda Os Betos, que em sua mitologia pessoal teriam influenciado os Beatles. Ambos constroem mitos e histórias que fascinam o adolescente e servem de material para sua imaginação.

E quando o infortúnio se abate sobre ambos, pai e tio, essa infelicidade está ligada a um destino comum: o de se tornarem “fósseis” da mesma cidade onde vivem e não podem sair. Pois seja o trabalho (e a família) de Chico Pai, como a liberdade de Nelson, radicam-se em Peixe de Pedra como as formações rochosas do lugar. Se há uma magia imemorial do Brasil profundo, no entanto, a utopia está na fuga, única possibilidade de resolver as contradições.

Sem cenas explícitas de sexo, como é comum na obra do autor, Big Jato se revela ao final um curioso filme jovem, cuja perspectiva é a de um adolescente, que não por acaso usa óculos. Numa das cenas do filme, o próprio filho de Claudio Assis faz uma ponta como o duplo do protagonista. Talvez seja essa uma das razões do esquematismo do filme, já que percebemos ser uma fábula moral vista e rememorada pelos olhos de um jovem, indeciso ao ter que escolher seu futuro. A seus olhos, os mundos que lhe surgem como inconciliáveis talvez não sejam tão distantes entre si, e que é possível fazer poesia com matemática. Em tempos de ocupações secundaristas, o filme de Claudio Assis se apresenta como algo interessante de ser mostrado em nossas escolas públicas para jovens que procuram utopia na realidade e realidade na utopia.

 

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.    

 

 

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