Janela Poética I

Maria da Conceição Paranhos

 

Patrick Arley

Foto: Patrick Arley

 

SONETO DE COITA DE AMOR

(Ditado por um cavaleiro à sua amada distraída em despetalar uma rosa)

 

A rosa, palpitando em meus dentes, ornasse
a cortina mais densa de brasa em meus beijos!
Mas, escrínio e mudez, tu te envolves em seda,
enquanto, com a cravelha, procuro o cadeado.

Imagino em minha boca o sabor mais desperto,
engrossando minha febre, num alcance de enlevo
– melhor é deslembrar esse enlace gozoso,
e bebê-lo no dia, a pascer horizontes.

Te imagino no leito, sonho ou devaneio,
eu, besta grave e lenta, libando teu peito,
para te oferecer cascatas de deleite.

Mas que importa! Rasguei, em incalculáveis horas,
com o desejo em fervor de adentrar a tua cona,
a concha de tua mão, roçando a língua morna.

 

 
***

 

 

O NOVO TORSO DE APOLO

 

Eu só vi tua cabeça e a percebi inteira.
Quando as pupilas amadureciam, eu vi
teu torso a brilhar mais do que uma tocha acesa,
na qual o teu olhar, de si mesmo saído

detém-se e reverbera. Ou então não poderia
teu mamilo cegar-me, e nem a doce curva
dos rins teria mãos de abrir o meu sorriso
até este teu centro, donde o sexo uiva.

Diversa vejo a carne densa e inaugurada
sob a curva de seda – nos ombros, a imagem.
Meu ser não fremiria, na pele selvagem,

e nem te deixarias além de suas raias
qual astro que se mira – nele não há quina
que não me toque, lenta, e diga: dá-me a vida!

 

 

***

 

 

SONETO DA PREMONIÇÃO

 

A ciência de saber que a vida segue
não diminui a dor de te perder.
Foste tu que bateste à minha porta,
abri-a par a par, e sem temer.

Entraste deslumbrado, eu, generosa –
vivera mais que tu, sempre a me ter,
doesse a corda louca e uivasse a rosa,
eu me esmerava em ser como mais ser.

Sei que um dia essa febre vai passar,
e vou lavar meu corpo com cuidado,
apagando o roteiro do desejo.

Espera e agora escuta: há um alarme no ar.
Em nossa porta, foi estilhaçado
o cadeado azul de nosso beijo.

 

 
***

 

 

APOSTA À DERIVA

 

Perdi. Perdi o jogo. Esvai-se a vida,
em si, presa paixão de intenso gesto.
Jamais pensara ser, cada partida,
aposta já perdida, sem ciência.

Não pressentira, então, o desabrigo
de cada dia, luto tão absorto,
rude bocejo a esfumaçar o rito
de prosseguir, sem pátria no alvoroço.

Estanca a desistência da miragem –
que se faz e refaz, futura imagem
do desarrimo, embora tão presente.

Tarja de luz, suspensa a esmo, aclara
espectro de aura torva, que deambula
ao susto vesgo de carta marcada.

 

 
***

 

 

ORFEU QUÂNTICO

 

Fragmentos de corpo destroçado
espalham-se pelo tempo.
a história infinita,
ali inscrita.

O difícil é escrever essa história,
com o corpo bípede profanador
em sua vaidade assassina.

 

 
***

 

 

QUINTA-FEIRA

 

Corpo meu tão gentil, minha alma ardia,
viajando em teu mastro – n’ alma o vejo,
e mantenho minha flama: é meu desejo,
conservar a tua luz lume em meus dias.

Ao mirar o teu sono, se esbraseiam,
o meu corpo e a minh’ alma, e é tão sobeja
a impaciência a singrar por teu beijo
em naves de paixão – que se encandeia,

presa, minha vida – em uma só cadeia!
Ditosa aquela sina, que se atreve
a apagar ardentias e tormentos

em momentos que a tinta não transcreve!
Possuem-me, Senhor, teus elementos,
enquanto gelo em fogo e fuljo em neve.

 

 
***

 

 
VISITA

 

Apenas isto: andar, buscando a vida.
Sem carregar consigo nenhum tempo.
No céu, é tarde. A voz não pressentida
emite um grito vão, irmão do vento.

Andar assim, o corpo numa lágrima,
indagando um destino de demência,
a contemplar estrelas: só, em pânico,
e este silêncio frio, e esse silêncio…

Viste a louca mudez da estátua fria?
Já o dia se cumpria, e o abismo abria-se,
nos meus olhos vendados e vazios.

Talvez a ida seja breve e pura
ao suspiro letal em hora túrbida,
mas visito a paisagem cada dia.

 

Maria da Conceição Paranhos nasceu em Salvador e escreve desde os 4 anos de idade. Formou-se em Letras pela Universidade Federal da Bahia, onde também fez mestrado. Concluiu seu doutorado na Universidade da Califórnia, Berkeley, em Literatura Comparada, e seu Pós-doc. Na Universidade de Viena, em Estudos de tradução. Tem vários livros publicados, entre os quais “Dr. Augusto chegou” (contos, relatos e sonhos), “Chão circular”, “Os eternos tormentos, “As esporas do tempo”, “Minha terra e outros poemas”, “Delírio do ver” (poesia). Recentemente, lançou “Poemas da Rosa” (Ed. Mondrongo).

 

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1 comentário

  1. Da minha janela revejo as cenas dos versos de Conceição. . . Algo de um passado longínquo tocou a minha saudosa alma.

    tocantes os poemas.

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