Dedos de Prosa I

BRUTALMENTE BRUNA

Marcus Vinícius Rodrigues

Desenho: Felipe Stefani


Eu não sabia o que fazer e abri a blusa
mais tarde eu ia dizer foi sem pensar
ele me achou desnorteada, confusa
como acharia qualquer mulher que abre a blusa
e faz tudo que fiz só pra agradar.
Bruna Lombardi

Flash!

Qual a pose que ficou?  Eu de olhos lânguidos pra ele? Eu de taça de champagne na mão? Podia ser whisky? Essa dor de cabeça é whisky, tenho certeza. Mas quando foi que eu desci do champagne protocolar para o porre? Quem mandou beber em público, sua alcoólatra, no meio de um monte de jornalistas? E olha que eles foram convidados. Nós não somos nada sem a imprensa, querida. Até vocês decidirem nos destruir, eu devia ter completado. Amanhã vai sair a pior foto no jornal. Nada da minha arte, só a fofoca. Você está namorando alguém? Eu ainda estou casada, querida. Ele está filmando no Xingu, um filme ma-ra-vi-lho-so, co-produção com a França, querida.

Flash!

Eu não vou te contar, querida, que acordei com seu flash nos meus olhos, quase cega, querida. Você não vai saber que eu não dormi em casa. Tá! Eu ainda não sei bem onde estou e nem quem é esse cara deitado na cama. Você ia gostar de me ver agora, de quatro, debaixo da cama, à caça de uma calcinha. Eu estava com uma, tenho certeza. A manchete podia ser assim: uma noite vadia com Bruna Bianchi. Muito literário pra você, não é? Você ia preferir algo mais direto nas bancas de revista: flagra! Bruna Bianchi pula a cerca. A foto de meu traseiro nu, mal coberto por esta camisa de homem. Não, querida. Esse gostinho eu não lhe dou. Pode falar mal de meus quadros, pode dizer que sou péssima atriz. Você não é crítica de arte mesmo. E novelas? Aquilo não é arte, é corrida de obstáculos. Como você explica sua arte? Você perguntou. Como você explica sua ignorância, meu bem? Eu não virei artista plástica do nada, benzinho. Você não sabe que eu fazia Belas Artes, quando aquele fotógrafo me descobriu?  O dinheiro era tão bom, entrei no mundo da moda. As novelas? Uma coisa leva à outra. Não! Isso não é meu eu interior. Minha arte pretende outra coisa. Nem pense que você vai fotografar minha alma. Contente-se com meu corpo. E não, eu não estou fazendo isso para aparecer. Se eu quisesse aparecer, seria melhor ter um câncer. Tão na moda, hoje em dia. O sucesso seria garantido. Atriz vence luta contra a doença. Eu, belíssima e orgulhosa com minha cabeça raspada, uma Nefertite vitoriosa. Tenho certeza que você ia escrever algo assim: o sofrimento deixou Bruna Bianchi mais próxima de sua personagem. Ela consegue viver a dor da heroína. Que dor? Pura técnica. Cristal chinês. As lágrimas falsas.

Flash!

Os quadros? Eu só pinto o que vejo. Por isso os cães de bocas ávidas, de olhos arregalados, brilhantes como o sol; os homens abobalhados, os mesmos olhos acesos. E os quadros só com olhos, dezenas de olhos, objetivas de câmeras, binóculos, isso não lhe lembra nada? Você ainda não se identificou, meu amor? Não entendeu nada, hein? Bote lá na sua manchete: Atriz impressiona em sua primeira exposição. Não foi isso que a TV mandou dizer? Enquanto eu estiver no ar, tenho imunidade diplomática. A TV não vai deixar nada me acontecer. Todos nós sabemos quanto vale o meu rosto. E a novela está nos seus momentos decisivos, audiência absoluta. Eu tão comportada. Já faz um tempo que não dou escândalo. Estou limpa, querida. Sem calcinha, na casa de um estranho, é verdade, mas você não tem provas. Vai sair uma foto dele me abraçando? O nome, a profissão. Modelo? Olhando daqui, pode ser. Tem estampa. Minha avó diria que ele tem apresentação, moço bonito. E tem tamanho, Vó. É magro. Deve ser mesmo modelo. Amanhã vai estar famoso. Eu sei, Vó, eu deveria me preservar mais. Vou tentar da próxima vez. Agora só me preocupa a calcinha que não acho. Isso eu aprendi, Vovó. Uma mulher não deve deixar vestígios. São nossas intimidades, minha neta. Mas como, Vozinha? Eu sou uma fábrica de pistas. Meu cabelo cai por onde passo. E essa tintura é única. Outro dia achei um fio na calcinha. Imagina quantos homens que apenas me cumprimentaram foram flagrados com cabelos meus na cueca. Esses fios são assim. Entram em tudo. Também sempre se solta um vidrilho do vestido. O batom, então? E os cheiros. Não dá pra recolher tudo isso. Pelo menos a calcinha! Eu sei,Vovó, eu sei. E se ele pegou de souvenir? Afinal, é uma calcinha de Bruna Bianchi. Um troféu! Ele tem de mostrar pros amigos. Não, não parece que seja isso. Eu devo ter perdido. A cueca dele está aqui, o nome da grife no cós. Ei, dela eu lembro saindo da calça, toda branquinha, embaixo da camisa transparente, a barriga absurdamente malhada, a virilha quase à mostra. Imprensa amada, Vovó querida, Bruna Bianchi é uma vadia. Está explicada a perdição em que me meti. Aquela saliência que começa na cintura e vai até lá embaixo, os pêlos começando discretamente, foi por ali, foi por ali … Veio tudo como um flash. Eu gostaria de me justificar, sabe? Foi uma tentação audiovisual, como nos melhores métodos de aprender línguas. Tinha aquele corpo atrás da transparência e uma voz dizendo algo como puxa, é como se você colocasse um espelho na frente das pessoas que lhe rodeiam, os fãs, os jornalistas. Este é o mundo que você vê. Viu, Ricardo, eu lhe traí com alguém que entende minha arte, ao contrário de você. Tá, isso que ele disse tava no release que mandei pra imprensa, mas eu estava bêbada. E você? Você não pareceu capaz de tirar uma folga deste filme idiota para ser o par de sua esposa. Já está há três meses neste fim de mundo. Ciúmes das índias, eu?. Elas não me preocupam com seus peitos caídos, suas barrigas inchadas. Acho que nem se interessam por um branquelo como você. O que me preocupa são essas atrizinhas de quinta, fazendo papel de índias, os seios duros de silicone, lhe chamando para um mergulho no rio. Não me volte com doenças, Ricardo. Se voltar, que seja malária. Vou me deliciar com as febres de fim de tarde. Ah! Meu amor, o que você me faz fazer? Lembra quando nos conhecemos, eu já estava muito bêbada. Você disse alguma coisa que não entendi, mas terminou me chamando de docinho. Eu não sabia o que responder, nem sabia a pergunta, mas aquele docinho sussurrado no ouvido .. eu não sabia o que fazer e abri a blusa. Você deve ter me achado uma louca. Depois eu ia dizer: foi sem pensar. Ia dizer que foi você quem me tirou a razão. Não foi nada disso. Eu apenas não sabia o que fazer. E uma mulher, assim perdida, assim sozinha numa noite mais triste que as outras, essa mulher, só porque não entendeu uma pergunta, é capaz de abrir a blusa, mostrar-se desafiadora. Foi só isso, Ricardo. Toda minha vida em suas mãos só porque você disse docinho no final de uma pergunta. Não sei se você queria ir ao banheiro ou se queria me pedir um beijo. Eu apenas abri a blusa e você ficou maravilhado com minha ousadia. Um botão pode decidir nossas vidas.

E agora, aqui estou eu neste chão de um apartamento estranho. Veja, vozinha, amigos jornalistas, registrem este momento. Podem fotografar. Eu não estou lá na melhor forma. Este camisão não me valoriza, estou com a maquiagem borrada, mas gostaria de aproveitar a oportunidade para falar de meu próximo projeto de teatro, um recital: Brutalmente Bruna. Eu completamente sem glamour, assim como estou agora. Sempre funciona. Se a ex-modelo se enfeia para o papel, já sobe de patamar, vira atriz. É o pedágio. Vou virar atriz, querida, e você vai ter de deixar suas ironias de lado nessa sua colunazinha de fofocas. Agora só vou aceitar críticas da Bárbara Heliodora, fofa. E eu também vou fazer o cenário e a luz. Veja essa fresta de sol sobre meus seios. Se eu me inclino pra frente, a luz ilumina meu rosto. Já dá uma chamadinha na TV, não é Ricardo. Sei, Vó. Pernas fechadas. Tenho de lembrar sempre de fechar as pernas na televisão. Mas eu vou usar calças. Uma mulher sempre está de pernas fechadas, minha neta, esteja usando o que for. Mesmo sem calcinhas, bêbada, usando só uma camisa de homem? Eu devia levantar e ir ao banheiro recompor este rosto. O que fazer sem maquiagem  na bolsa? Só um batom. Água e sabão. E se o batom é rosa, pode ser o blush  e a sombra. Uma mulher nunca deve estar inteiramente de cara limpa, principalmente nos momentos mais dramáticos. Esse prédio deve ter porteiro que certamente me conhece. Os porteiros conhecem todo mundo que é famoso. As revistas  têm sempre de passar por eles. E quando você está na novela … Tenho de descer com toda a pose, roubar estes óculos do rapaz, esse dinheiro para o táxi. Melhor deixar um bilhete dizendo que peguei emprestado e vou devolver. Não. Nada de vestígios, não é Vó? Ele que pense o que quiser. Depois mando um pacote anônimo devolvendo tudo. Desfaz-se a impressão e ele vai ter certeza de que não é pra me procurar. Vou levar este casaco pra disfarçar o brilho do vestido. Estou uma gatuna. Se eu fosse uma princesa europeia, ia ter um batalhão de assessores pra esconder meus deslizes. Um telefonema e o serviço secreto invadiria o apartamento, depois de minha discreta saída, e sumiria com todos os vestígios. Se o rapaz não colaborasse, jamais trabalharia neste país. Um caso de segurança nacional. Mas eu só tenho minha Vozinha pra zelar por mim e um marido ausente. Ricardo não está nem aí. Ele ia adorar me pegar no pulo. É muito difícil para uma mulher não ser uma princesa. A calcinha? Vejamos uma resposta. Voz natural, enfado: Nossa, ela marcava muito através do vestido. Tirei e joguei no banheiro da galeria. Lembra que Carmem Miranda fez isso uma vez? Eu não podia imaginar que existissem pessoas tão doentes como esse rapaz. Roubar a calcinha de uma atriz como eu. Certamente um fã, mas um fã muito doente. E eles leiloam de tudo nessa internet. Como as pessoas são solitárias hoje em dia. Esse rapaz certamente só quer chamar atenção. Dada minha última entrevista, passo os olhos no apartamento. Simpático até. Desço pela escada os dezoito andares. Elevadores são perigosíssimos. Muita intimidade. É quase promíscuo. Lá pelo nono ouço uma ópera. Alguém ouve ópera de manhã cedo. Ainda bem que não moro aqui. Ópera? Eu quero a Gal aos berros, você me entende. A Gal rasgando a garganta. Saio sem olhar o porteiro na cara e caminho para uma rua transversal. Bairro agradável, nem estou longe do meu. Desvio do jornaleiro que abre sua banca, a rua deserta. Meus saltos são o único barulho nas pedras portuguesas. Não é tão fácil como estar numa passarela, mas coloco um pé em frente ao outro, ombros para trás, mãos nos bolsos do paletó, fixo o olhar num fotógrafo imaginário no horizonte e vou.

Flash!

(Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-BA. Publicou os livros “Pequeno inventário das ausências” (poesia), Prêmio Brasken/Fundação Casa de Jorge Amado – 2001, “3 vestidos e meu corpo nu” (contos) – Editora P55, 2009, “Eros Resoluto” (contos) – Editora P55 e, mais recentemente, “Cada dia sobre a terra” (contos) – EPP Publicações e Publicidade, 2010. Participou das antologias “Concerto lírico a quinze vozes: uma coletânea de novos poetas da Bahia” (Ed. Aboio Livre, 2004), “Os outros poemas de que falei” (Prêmio Banco Capital, 2004) e “Tanta poesia” (Prêmio Banco Capital, 2005), dentre outras)

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