Dedos de Prosa II

Viviane de Santana Paulo

 

Foto: Antonio Paim

 

Viver e morrer no facebook

 

Era uma vez ela —, uma amiga no facebook. Ela era amiga de uma amiga minha e me pediu amizade. Cliquei. Registrou-se com o nome de Megami de Aiedi Timaeus. Não sei se esse foi o seu nome verdadeiro, desconfio que não, por ser muito estranho e porque muitas pessoas se registram com nome fantasia mesclado ao verdadeiro. Fomos amigas durante uns quatro anos. Ela postava fotos da família, dos amigos, das viagens, esboços do que pensava sobre determinado acontecimento, vídeos engraçados, dizeres sobre sabedoria de vida. Soube que foi ao show do Caetano e lá encontrou o ex-namorado (foto dela sorrindo ao lado de um rapaz sorrindo), começou a trabalhar em uma instituição cultural, depois de dois anos mudou de emprego, era secretária executiva em um banco, fez uma viagem a Roma e subiu a escadaria na Praça da Espanha (no anexo, mais 31 fotos que eu não abri), desmanchou o namoro com o namorado porque conheceu alguém mais interessante no jantar da empresa (soube através de um comentário maldoso de uma amiga dela), casou-se com ele (fotos dela vestida de branco, segurando um buquê de orquídeas, o marido ao lado, homem bem apessoado, moreno, estatura mediana, de óculos e mais 95 fotos que eu não abri, e um vídeo no qual assisti os primeiros momentos em que ela entrava na igreja e dava o braço para o noivo), e passou a lua de mel em Buenos Aires (ela tomando café no Tortoni, em frente à fachada colorida de uma casa no La Boca, passeando na orla do Puerto Madero, comendo churrasco, tomando vinho e mais 46 fotos que eu não abri). Outros detalhes de sua vida eu soube, acompanhei algumas fotos: por do sol na praia de Santos, gato em cima do sofá, receitas de tortas de palmito, pudim de milho, tapioca, almoços ou jantares com a família, com amigos, caminhada na praia do Balneário de Camboriú, nova sandália de salto, dicas de restaurantes, de como se alimentar bem, receitas para dietas, vídeos de cachorros, de gatos, de papagaios, de tucanos, de bebês fazendo graça, de cidades estrangeiras, de lição de vida… e alguns comentários no facebook.

De repente, no meio de várias postagens que eu recebo, vejo com espanto uma foto dela in memoriam. Não sei como ela morreu, não sei por qual destas fatalidades repentinas ela foi acometida, se foi de câncer, acidente, aneurisma… Tinha trinta e quatro anos. Na foto ela possuía um sorriso sereno e o reflexo do sol banhava sua face, ao lado o cacho de uma orquídea rosa vergava-se do vaso suspenso na parede de cor ocra. Imaginei ser a varanda de uma casa no campo. Ela não era bela nem feia, possuía um rosto comum, ovalado, os cabelos escuros meio ondulados, compridos até os ombros, a pele clara, as bochechas um pouco salientes, os olhos pequenos e escuros, os lábios finos. E cliquei. Nunca nos encontramos, nunca troquei mensagens com ela no inbox. Cliquei em uma foto ou outra, em um vídeo ou outro, em um comentário ou outro. Na imagem in memoriam a família e amigos expressavam condolências. Postei as minhas e antes que surgissem fotos dela, recapitulando a sua vida, eu a excluí do meu grupo. Afinal não era meu parente ou uma amiga íntima!

Por que acompanhei a sua vida? O que estes detalhes da vida de um desconhecido têm a ver com a minha? Para que serve esta enxurrada de detalhes da vida alheia?

Sempre procuramos saber da vida alheia, por mais que nos convençamos que não nos interessa. Não é bem assim, fora da nossa vida tudo faz parte da vida alheia, os filmes que assistimos, os livros que lemos, as pessoas que encontramos. Além da nossa vida, vivemos a vida alheia inconscientemente, apreendemos a realidade do outro de forma indireta e a integramos em nossa vida, em nossas opiniões, em nossas preferências, em nossa visão de mundo. Precisamos do outro, embora sejamos egoístas e egocêntricos. Mas sem o outro não temos como ser egoístas. Sem o outro estaríamos pensando no outro o tempo todo. Com o outro pensamos no que somos, nos definimos através do outro. No entanto, meu contato com ela não foi do tipo que proporcionasse esta característica. Hoje em dia não buscamos esta característica, temos preguiça de nos conhecermos e conhecer o outro e nos falta tempo. A amizade virtual permanece na superfície e no nunca conhecer o outro como ele é na vida real. Ela foi um punhado de imagens, frases sucintas e opiniões, vídeos, digitalizados e esporádicos, efêmeros como em um livro de enredo fragmentado, temas mesclados e incompletos —, um livro mal lido e emprestado que você esquece de não ter recebido de volta.

E sigo minha vida clicando.

Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Participa das antologias Roteiro de Poesia Brasileira – Poetas da década de 2000 (Global Editora, São Paulo, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Huerga Y Fierro, Madri, 2007). Publica poemas em diversos jornais e revistas. Vive em Berlim.

 

 

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