Dedos de Prosa III

Fernando Rocha

 

Foto: Tati Motta

 

Ainda estou aqui

 

Alguém que se foi, mas permanece aqui como um holograma, deitado na cama, de onde não pode mais se levantar, da boca apenas saem sons que não são palavras, a fralda é agora o banheiro, não sente mais vergonha dos excrementos, não sente mais o controle do próprio corpo, é um refém sem algoz, talvez a má sorte, que ele sempre ignorou, olhando sempre para os lados e para trás, mas nunca para frente, ela estava lá, pronta para desmanchar toda a construção inútil que foi a vida.

O homem forte, trabalhador, aquele por quem meus olhos e meu corpo se encantaram, não existe mais, ele está acamado há quatro anos, sequela de um a.v.c.. Tenho cuidado dele do jeito que posso, nossa filha me ajuda aos finais de semana. Ainda estou aqui, tenho querer, sinto o meu corpo pulsar.

Ontem a menina veio, menina? É uma mulher de 20 anos, mas aos olhos da gente é sempre uma criança, tomei um banho mais longo, senti cada gota de água correr em mim, um tempo comigo, depois saí por aí.

Parei na padaria onde ficava com os colegas de faculdade, nenhum deles estava lá, ao contrário de mim, concluíram o curso de direito, são doutores e doutoras, ocupados com as burocracias da vida de um advogado.

Sentei-me no balcão porque as mesas são destinadas aos que têm companhia, através dos lanches, eu vi dois homens que conversavam e bebiam suas cervejas, ali estavam como se flutuassem numa bolha que os protegia das chateações do cotidiano. Um tinha um sorriso encantador, eu queria, mas não conseguia parar de olhar, ele devia ter uns dez anos a menos que eu. Pela persistência do meu olhar, percebeu que eu o estava mirando, meio tentando disfarçar, mas sem conseguir, ele começou a retribuir o gesto, há tempos trancada em casa, como é bom ser desejada, ou será só devaneio meu?

Não, o amigo foi embora, ele veio até mim, a mão estendida era desejo, mas também receio, eu não tinha mais tanto tempo ou paciência para pudores, levantei, o beijei entre o rosto e a boca, disse um nome que acabara de adotar para aquela tarde, ele também se apresentou, conversamos sobre a vida, suas pupilas dilatadas me engoliam, olhos de menino num rosto de adulto, não recuei, pus a mão sobre a dele e com toda a minha coragem, não desviei o olhar, ele aceitou.

Disse que tinha que voltar para casa, eu disse que ainda estava cedo, me ofereceu uma carona, aceitei, minha intenção oblíqua era outra, entrar no carro e colocar meu plano em curso, eu disse vai por ali, vire à esquerda, entra! Estávamos na frente de um motel, ele titubeou, mas me obedeceu.

Entramos… Numa voracidade se atirou sobre mim, eu, faminta por um corpo aceitei e retribuí. O calor da pele transpassando a roupa, braços fortes e quentes, o beijo forte, parecia me engolir, era a vida sinalizando sua presença, logo estávamos nus, a boca dele percorrendo cada centímetro do meu corpo, acendendo em cada poro uma fogueira, um pouco afobado, mas eu logo comecei a ditar o ritmo, entendimento pleno entre corpos, duas horas morando no prazer.

Tomei banho sozinha, porque o contentamento é egoísta, saímos, disse a ele que podia me deixar na esquina, à direita, de lá pegaria um taxi, um último beijo, mais sereno, antes de sair do carro.

Em casa, a menina disse:

– Mãe, está tudo bem? A senhora está diferente.

– Coisa da sua cabeça, filha. Pode ir cuidar da sua vida, deixa seu pai comigo.

Olhei nos olhos do meu marido, eles permaneciam opacos, mas me miravam de um jeito diferente, fui até a cozinha preparar um sanduíche, mordido com força de quem está inteira em si.

 

Fernando Rocha da Silva é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor de Língua Inglesa na rede municipal de São Paulo, autor do livro de contos Sujeito sem verbo (Confraria do vento), da novela Os laços da fita (Penalux) e Afetos (Penalux). Tem um conto na antologia Descontos de fadas (Alink editora). Possui textos publicados em Mallarmagens, Diversos Afins, Incomunidade, Musa Rara e Letras Inacabadas.

 

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1 comentário

  1. Encantador e vivo este conto! Emoções possíveis e verdadeiras!

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