Sara F. Costa
Se os poetas são melancólicos
é porque o mar se desfaz no nosso ventre
como um deserto intemporal
espalhado pelas vísceras
de cada sílaba.
não me acuses de melancolia,
quando na representação da realidade
as vozes dos peregrinos
são arrepios escritos entre a pálpebras,
a melodia infinita que se esvai em sangue
quando ligamos o spotify.
hoje à tarde vou ser poeta outra vez
e amanhã vou ser mar,
depois deserto de vertigens.
dá-me uma metáfora que me salve a vida.
***
Na capital
de avental, à espera de limpar a casa
ou este labirinto inteiro a que chamo casa.
a limpeza deverá ser profunda,
mas como conseguirei vir à superfície,
debater-me contra todo este tédio de musgo.
sinto-me a afogar em cada lembrança de ti,
sei que vou ver-te mas espero até lá
já ter tudo limpo.
a capital é lírica
como o voo longínquo entre nós
como a tensão de bruma
ou o desencanto inevitável
entre nós.
deixei-te umas quantas mensagens sem sentido
quando estava sob o efeito das benzodiazepinas.
quero esconder uma paixão atrás de outra paixão,
atrás de outra paixão para que ninguém me veja.
mas a evidência da minha insignificância
mistura-se com o pó da casa:
discreto mas tóxico.
***
Lugares
este é um lugar de acidentes,
objetos arrefecidos no esquecimento.
esta é uma voz de vidro
que corta a paisagem.
queria ser a resposta às tuas perguntas
mas o açúcar das horas drenou a linguagem.
o lugar deste texto é entre a insónia e Cesariny.
***
São os teus gritos leves e radioativos,
são as tuas têmporas de aço
e os testículos idiomáticos dos teus poemas.
deixa-me sobreviver naturalmente
à vida furada que trazes às costas
podemos fazer planos
à volta da luz do medo
mas a vida é curta e a escrita é extensa
este é um nome que espreita
de todos os poros do meu corpo
o teu nome e o de outros animais
o ritmo desconcertante da espera,
as chamadas que rejeitaste,
os dedos transfigurados
pela radioatividade.
***
Doutora Fedúncia
vou escrever este poema com o que restar da culpa,
das várias culpas que vamos deixando amadurecer
junto à carne até que brotem raízes de luz
na escuridão que todos temos atrás dos olhos.
este é um poema responsável
sabe estar,
sabe mais do que
a imaturidade dos títulos porque a doutora sabe que
os nomes de código que a mulher da limpeza nos oferece
num ato de generosidade
são as alcunhas miseráveis
que melhor nos definem,
somos nomes de código que nunca saberemos
em bocas de consistência aleatória.
aquilo que nos chamam,
aquilo que os outros secretamente nos chamam
isso é que devia figurar na lápide.
***
Se precisares de mim,
sabes que estou disponível entre a faca e o coração,
o verão é incerto mas a minha mão
tem sempre o suor dos pulmões
sabes que a vida é simples
mas os movimentos da terra são longos.
hoje despeço-me de ti
vamos fumar a noite uma última vez
esconder-nos nas trevas que nos afastam,
nos símbolos que não nos pertencem,
nas religiões que nos separam,
a uma distância continental.
se precisares de mim
estarei no fogo e no sangue,
estou nas entrelinhas das coisas
que nunca deixaremos de partilhar.
***
Transfiguração da fome
escrevo ritualisticamente sobre as omoplatas da folha,
e há estrelas de solidão entre as palavras.
ao pernoitarmos na montanha do século
fomos adiando a terra
entre os aromas frágeis dos gestos.
há carne noturna nas nossas vozes,
impérios de tortura
e amigos tenebrosos.
perguntas-me se confio no furor do tempo,
quando sabes que a nossa glória
não passa da transfiguração da fome.
há um caos que irrompe da espera
e uma espera luminosa
nos espelhos provadores.
a tua ausência infindável
escorre desta folha.
Sara F. Costa (1987) nasceu em Oliveira de Azeméis. É licenciada em Estudos Orientais e Mestre em Estudos Interculturais: Português/Chinês pela Universidade do Minho em parceria com a Universidade de Línguas Estrangeiras de Tianjin, China. Tem recebido vários Prémios Literários nacionais na área da poesia. De momento reside em Pequim. Tem publicadas as obras poéticas: “A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos” (Pé de Página editores, 2003); “Uma Devastação Inteligente” (Atelier Editorial, 2008); “O Sono Extenso” (Âncora Editora, 2012); “O Movimento Impróprio do Mund” (Âncora Editora, 2016) e “A Transfiguração da Fome” (Editora Labirinto, 2018).
Para não dizer que não falei da poesia de Sara, registo apenas que na transfiguração da linguagem não se pode ignorar o valor de cada palavra poetizada, ela o faz com rara beleza, com o ser humano de permeio entre as coisas, o que nos faz supor a deliberada recusa de tomá-la apenas como sinais. Leia-se que a melhor tradução da sua poesia é a da liberdade concedida à palavra.
Obrigado pela partilha, pela oportunidade de conhecer alguém que sabe manejar tão bem as palavras.