PEQUENOS DELITOS E EPIFANIAS
Por Jorge de Souza Araújo
Diante destes textos (ou peças literárias maxi-minimalistas, ou contos de feições microscópicas pluralizados por visão macro, ou crônicas abstratas derivando para contos fantásticos e, no entanto, intimistas, confessionais) é mais adequado pensar que a escritura de Antonio Nahud Júnior transcende seu mais exato mister, ultrapassando o que quer que se declare na ficha catalográfica do livro.
Dessa forma, “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” representa também exercício filosófico numa linha de investigação ontológica, metafísica, expressionista e existencial. E, por exemplo, “Love is a Many Splendored Thing”, que abre a coletânea de pasmos e pathos humanoides, ressalta uma fragrância de Poe, do épico e dramático de “O Corvo”, com a amada morta do protagonista entrando janela adentro na noite iluminada de Selton, o amante para sempre fiel e siderado pelas chamas da fornalha passional.
Assim, o que leremos doravante são mini ou macro textos parodísticos da existência pânica, imprimindo e imprimidos, não obstante, de frêmitos de lucidez em meio à voga lúdica, elíptica, espasmódica e diversionista da palavra em febre de dizer-se para além das eventuais obscuridades. O que mais neles avulta é a surpresa do insólito, não apenas reservados aos finais consagradores do clímax e do desfecho, mas por toda a rede de intrincadas e complexas teias, cujos enunciados se confundem com seus signos. O lírico sempre pesponta o outro lado do trágico e o humor cerrado em sorrisos contrafeitos observa a vida sob as escamas de um amplo e entrechocado mistério. A ambiência de sugestões de hiatos de percepção muda supre a necessidade de concretude do real. Por isso nem sempre as personas são nomeadas e a sensação do provisório e efêmero de nomes, pessoas e coisas produz a inércia do pensar, quase valendo qualquer nome para designar qualquer coisa ou pessoa.
Antes de se constituírem densidades dramáticas, oscilantes entre o trauma psicológico e a violência grosseira, contos como “Os Negros” e outros são mais perceptíveis como registros de instantes fugazes ou prolongados, sinestesias dos impactos de sentidos múltiplos, em particular a visão e o olfato, o detalhe significante (e machadiano, que nisso é avant la léttre) da metonímia de uma nesga de rosto, mãos, cabelos, cores, cheiros, perfumes, com predominância de assunção e projeção de flagrantes e diálogos envolvendo o desejo homossexual, tudo feito com refinamento, sutileza e inteligência dinâmica e superadora de vãos preconceitos. Cito diálogo de “Os Negros”:
— “Acredita em romances entre machos?”, atacou Glauber.
— “Sei que uma relação bem sucedida não depende do sexo dos envolvidos, mas da comunhão inevitável”, respondeu pausadamente o garçom.
Uma acentuada dose de coragem de se expor trescala desse e de inúmeros outros trechos e textos do livro que ora se ostenta sem pregar slogans nem bandeiras. Antonio Nahud Júnior, entre o escracho ou deboche e a estreita visão do córner discursivo dos guetos, opta pela sinceridade. Estará, portanto, na boa companhia dos bons textos de uma Állex Leilla, por exemplo, um dos mais agudos e penetrantes da geração da prosa curta contemporânea na Bahia. O que pretende, então, quem fere as nebulosas humanas destas “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” das tribos antropocêntricas? Vejamos o que tem a dizer o próprio autor, em entrevista. À pergunta de Gustavo Atallah Haun (jornal Agora, 03 a 10 de julho de 2006, Banda B, p. 8) — Em sua opinião, qual é o aspecto mais difícil do ato de escrever? Ele responde: — A construção de um universo mágico que me emocione e, consequentemente, emocione o leitor. Transformar a literatura num oceano de prazer. É a parte mais difícil. Sou exigente, faço questão que o texto ou o poema me comova. Sobre os temas que mais se impregnam em sua narrativa, provoca: Os elementos sensuais desempenham papéis-chave na minha literatura: odores, texturas, sexualidade, funções corporais. No entanto, seria incorreto classificá-los como especificamente homossexuais, bissexuais ou sei lá o que, pois eu não acredito numa literatura homoerótica, assim como não acredito numa literatura feminina ou masculina. Todos os escritores são seres andróginos.
Polêmicas à parte, “Pequenas Histórias…” é mesmo um livro de textos que respiram situações de claro/escuro no mundo das relações humanas. E também de interinfluências, algumas até de origem inconsciente, talvez. Um trecho aqui lembra Adélia Prado e seu poema descritivo de um rapaz que palita os dentes com ruído, esgaravatando o coração de cadela de quem o observa. Outro flagra decrepitudes fetichistas e ásperas solidões homoafetivas, com suas gruas de martirológio afunilando dificuldades existenciais. Noutros, ainda, predominam sensos parabólicos, ascéticos e um mistifório de alteridades. “Chá com Harpias” contém cenas, alegorias, analogias e alusões de teatro cosmopolita.
Enquanto “Sem Notícias de Deus” — o melhor do conjunto, na modesta opinião de quem escreve estas notas — é um conto soberbo, antológico e definitivo, com a pungência sincera da realidade fotográfica e a comiseração mais nítida do narrador, numa dimensão de permanência que não se subordina à claque e avança para a perenidade do documento humanista; “Noites de Ninguém” tem o pathos de Dalton Trevisan e o lógos protestatório de Glauco Mattoso ou Caio Fernando Abreu. “Fim de Caso” é drama burguês que não contemporiza, mas purga as dobras da agonia pânica, avizinhando-se da solidão da incompletude, aquela que se tem a sós ou acompanhada com a invisibilidade do outro. “A Dor no Coração da Deusa do Sexo” flagra o pungente retrato urbano dos que vivem sem felicidade no coração. Em “Brinquedo do Cão” o monólogo nunca personalizado ou exclusivo fala de todos os emparedados discursando sempre na primeira pessoa do singular. Imagens insólitas, arrimadas num lirismo oblíquo e dissimulado, constituem o perfil de “Apenas uma Mulher”.
Por vezes, a tibieza do lugar-comum ocupa as frestas do texto que cede à fala natimorta. Contos sem vínculo com Tchecov ou Maupassant florescem mechas para o psicodelismo, o delírio, até a paranoia do novo mundo concebido à sombra de florestas espessas das exclusões. Outros são os textos apaixonados por cinema, como os do argentino Manuel Puig, quase todos untados com malícia, alguns reiterativos do antes já dito. Por alguns também perpassa o melodrama a la Nelson Rodrigues. Melhor quando a linguagem advoga a primeira pessoa, mais espontânea, Antonio Nahud Júnior dissipa seu estilo com o Expressionismo e suas imagens derivárias do patético. Em “Tentativa de Controle”, o estilo é típico de “Matou a Família e foi ao Cinema”, de Júlio Bressane, incluindo o ciúme vampiresco de Otelo, o patetismo melodramático de Nelson Rodrigues e o corte incisivo do expressionismo alemão. “Da Utilidade da Poesia” poderia suscitar lembranças, ainda que vagamente, de Tchecov (“Teoria da Arte”), Tolstói (“Sonata a Kreutzer”) e do brasileiro João Antônio (“Afinação da Arte de Chutar Tampinhas”).
Algumas das peças literárias de “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano”, apesar dos temas, da fluência da linguagem, não buleversam, resguardando-se o leitor do sorriso enigmático da Mona Lisa. O tédio, o non-sense, o ar blasé, a cultura cosmopolita, o existencialismo a la Clarice Lispector, as buscas ásperas, a guarda baixa na auto-estima, a deserção, a desistência, a entrega solitária dos emparedados, tudo comove, mas nem sempre com a eficácia legitimadora da solidariedade. As palavras, o ritmo, as imagens e sensações que provoca, o texto de Antonio Nahud Júnior poderia desvendar-se no que o próprio texto determina e projeta na personagem de “Um Fluxo”: Aprofundando-se no cenário mental, entrega-se à selva de letras, obstinado, entre versos-insetos e parágrafos de flores carnívoras, vivenciando equinócios, constelações e centelhas: dialogando com árvores na trilha da montanha lírica. Sintomática a citação de Jorge de Lima do romance “O Anjo”, cujas fosforescências de idioma lírico Antonio Nahud Júnior parece também intuir, revestindo-se a palavra-emblema no primeiro texto surrealista publicado na voga do regionalismo de 30: “O Homem Nasceu para Contemplar. Só por Castigo Ele Luta e Trabalha”.
O universo das “Pequenas Histórias do Delírio Peculiar Humano” é quase exclusivo do dialeto autoral, particularmente o pitoresco e exótico, bem como são particulares os códigos de escrita e os motivos temáticos. Mas o humor rebelde e insubmisso traz vestígios, por exemplo, de Drummond (aposentado consumido por uma melancolia inexplicável, “Lulu”); “Vertigem” tem a ousadia pornográfica de Henry Miller ou a parábola fugaz de um Sade, que indetermina as razões do desejo e o sem-limite das perversões. Um conto muito longo (“Imagens”, por exemplo) termina vampirizando as energias do narrador e do leitor mais concentrado, ainda que ambos possam ser expertos e expeditos, antenados na ironia de um texto, mesmo o que não provoque empatias.
Este livro de Antonio Nahud Júnior é uma espécie de almanaque visceral, revolvendo sensações em perfis caleidoscópicos, flagrando instantes de perdas e descobertas, epifanias e registros documentais das hecatombes humanas e de pessoas singulares. A maioria dos textos imprime-se de contornos intimistas, confessionais de aparência ora gozosa, ora culpada de ocultamentos. Conforme a nomenclatura, contos se apresentam com finais oscilando entre o surpreendente e o óbvio. Tematizando os povos da diáspora genérica presas da sexualidade sob o arbítrio das convenções, realizam-se ainda pela reflexão a ser reverberada no âmbito da consciência crítica.
É livro inquieto e inquietante, que convida ao debate e à inteligência não conformados ainda à inércia do pensar de calças curtas.
(Jorge de Souza Araújo é poeta, Mestre e Doutor em Letras pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-professor de Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Literatura Comparada na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Dentre suas publicações, estão: “Os becos do homem” (poesia – Rio de Janeiro: Antares, 1982), “Profecias morenas: discurso do eu e da pátria em Antônio Vieira” (Salvador – Assembleia Legislativa/Academia de Letras da Bahia, 1999), “Dioniso & Cia. na moqueca de dendê: desejo, revolução e prazer na obra de Jorge Amado” (Rio de Janeiro – Relume Dumará, 2003), Floração de imaginários – o romance baiano no século 20 (Itabuna: BA, Via Litterarum, 2008))