Janela Poética IV

José Pascoal

 

Foto: Adelmo Santos

 

LUTO ANTECIPADO

 

Reina suave tumulto
No meu cérebro cansado
De funerais adiados
E tenho medo dos mortos
Com longos avisos prévios
E abro os livros com facas
Em protesto piedoso,
Frágil e silencioso,
E vejo-me de fugida
No espelho dos teus olhos.

 

 

 

***

 

 

 

O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

 

Dai-me o benefício
Da dúvida
Metódica
E farei com ela
Uma certeza instável:
Casa desabitada,
A ruir
Lentamente,
Em silêncio,
Como um barco a afundar-se.

 

 

 

***

 

 

 

AS MÃOS DO VENTO

 

As mãos do vento agarram-me pelo pescoço
E obrigam-me a ver
O mar morto de fome,
A cidade incivil,
O campo infértil,
O fumo do fogo que não arde,
O fumo do forno crematório,
A cama onde me vou deitar
Para depois ficar acordado
Com medo do escuro.

 

 

 

***

 

 

 

EXCESSO DE VELOCIDADE

 

Corres para a desgraça dos mendigos,
Dos que vivem debaixo de lusíadas
Pontes, dos que vivem as ilíadas
A olhar para os seus pobres umbigos,
E vais rapidamente, como um atleta
Dos cem metros, desmedidos, tal a pressa
De chegares não sabes a que meta,
Sentes que vais cumprir uma promessa
A uma virgem louca sem altar
E vais, desalinhado, sem parar.

 

 

 

***

 

 

 

CONTAGEM DECRESCENTE

 

Não é da minha conta
O que acontece
Nos bairros periféricos,
Nos bares alternados,
Nos becos esotéricos,
Nos barcos encalhados;
Não é da minha conta
O sal rosa dos muros,
O sol rubro dos túneis,
O sul roxo dos túmulos.

 

 

 

***

 

 

 

SEM TIRAR NEM PÔR

 

Não tiro uma vírgula,
Não ponho um acento a mais,
Tenho de ter cuidado
Com as cordas vocais
Com que enforco
As palavras mais banais,
Vida, morte, amor,
E, acreditem-me,
Faço um esforço danado
Para sobreviver a tudo isto.

 

José Pascoal, 1953, Torres Vedras, Portugal. Bibliografia poética activa: Sob Este Título, 2017, Antídotos, 2018, Excertos Incertos, 2018, Ponto Infinito, 2018, todos na Editorial Minerva,Lisboa.Inéditos em várias revistas digitais e impressa. Mantém o blogue Gazeta de Poesia Inédita.

 

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