Janela Poética I

Angel Cabeza

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

BARRO

 

Deus criou nas trevas
os vinte dedos do homem
e sua caligrafia cinzenta.
Cego, imaginou
o som do sangue.
Num súbito lampejo,
investiu no sujo da têmpora;
teceu chumbo nas escápulas
da criação.
Impedido de voar,
o homem consumiu o céu
com olhos vitralizados;
expeliu todo o fogo herdado.
Inferno abaixo da terra nunca existiu.
Esse peso de Sísifo…
Esse vislumbre do voo…
Desde então o homem
segue agradecendo diariamente
a falha nas asas.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

SACRAMENTO

 

Abandonar o pó
e esquecer a terra,
quebrar o corpo
e esconder espinhos:
somos o sal
de um deus barroco
temperando intervalos
entre pedras.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

ALONGAMENTO

 

Alongo os olhos
nesta manhã
e curvo a mão
sobre o teu peito:
frêmito de asas
que toma a forma
do chumbo
da cidade.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

CAVIDADE

 

Coloca meu nome entre dentes
e trinca.
Amacia o escuro
que nele mora e rememora
o gosto acetoso:
uma manhã envernizada
e virgem devorando
a extensa e já vazia noite.

 

 

 

 

***

 

 

 

 

MILAGRES

 

Os céticos anunciam não existir milagres
que comprovem uma santidade ou fé.
Tudo é matéria oca e sem divinização.
Somos duros e ácidos e inventivos
em nossas brumas.
Construímos uma religião
para o desespero do pão.
Entretanto, abrimos diariamente um mar
ao observar nossa rasteira plenitude
de extremos — fuligem na carne.

O silêncio atravessa o raso
à procura de novas terras.
Não seria milagre
o som dessas salgadas águas?

 

 

 

 

***

 

 

 

 

SOBRE FICAR

 

Lacerar a pele
e manter as
sensações expostas.

Fender a epiderme
e ferir a cicatriz
do tempo.

 

Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. Cursou Letras e Jornalismo. É poeta, cronista, coordenador editorial e produtor gráfico. Autor de ”Canção para os seus olhos e outros castanhos” (Urutau, 2019), participou das antologias “O Casulo” (Patuá), 29 de abril, o verso da violência (Patuá), Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina (Patuá) e das revistas Odara, Escrita Droide, Vício Velho, Literatura e Fechadura, Gueto, Germina, Zunái, Subversa, Cuarto Propio (Porto Rico), Verso Destierro (México), Generación Espontánea (Madri), entre outras.

 

 

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1 comentário

  1. Excelentes poemas!!

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