Por Fabrício Brandão
É impossível não carregar os sintomas do mundo. A frase, dita assim num arremedo inicial das ideias, não é algo leviana na medida em que todos nós, de algum modo, estamos amalgamados ao que se chama de vida real. E pronunciar a palavra mundo, como um complexo e vasto território de apreensões da experiência humana, pode aclarar a compreensão dos fenômenos que dizem respeito ao coletivo. Nesse sentido, enxergar-se como sujeito é jamais negar a afetação dos temas engendrados no tecido social, na contraposição de ideias e sentimentos com os demais semelhantes, no conflito que emana das relações entre as mais distintas correntes do pensar.
Não basta a mera constatação de que somos seres políticos por natureza, pois é necessário dar o passo adiante. Reconhecer-se político é mover as forças que vão do pensamento à ação, catalisar revoluções internas e pessoais no sentido de que estas estejam a serviço de uma manifestação de implicações práticas no conjunto da sociedade. No mister da Literatura, por exemplo, a palavra é epifania, gozo, partilha e comunhão de ideais que segue ao encontro de um Leitor, por vezes desconhecido, quiçá ensimesmado nas suas convicções íntimas, mas que pode ser convidado a reagir diante daquilo que lhe é apresentado. Obviamente, no jogo das naturais tensões entre emissão e recepção, há que se considerar a aparição plausível de uma plataforma crítica que pode apresentar consequências imprevistas originalmente. E a virtude de todo esse processo de enfrentamento pode também estar na faísca da provocação e da dúvida.
Falar de uma consciência aguçada de mundo é falar de uma escritora como Clarissa Macedo, poeta investida no percurso lúcido da vida. Na confluência de sensações, a autora é porta-voz de um olhar que se nega a fazer concessões diante do avanço atual e permanente da barbárie que intenta nos devassar. Seu livro mais recente, o instigante “O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição” (Ed. Ofícios Terrestres, 2019), é tributário de um painel de sentimentos que se afiguram revestidos de uma expressão política e filosófica capaz de posicionar os versos na condição de pujante interpelação do mundo.
Clarissa, que também é revisora, pesquisadora e doutora em Literatura e Cultura, faz de sua poesia um instrumento de ação, demandando de seus leitores uma atitude jamais passiva quando o tema é pensar as questões que afetam sobejamente nossas humanidades. E não há, no ofício da poeta, verso algum que corra solto, dizendo algo por dizer, sem a correspondência com uma habilidade de manejar tanto os domínios formais da palavra quanto as ideias e sensações em curso. Dito isso, não é demais considerar que a autora é uma das importantes vozes da literatura brasileira contemporânea, qualificação que também pode ser aferida pela leitura das suas outras obras: a plaquete “O trem vermelho que partiu das cinzas” (Ed. Pedra Palavra, 2014) e o livro “Na pata do cavalo há sete abismos” (Ed. 7Letras, 2014), que obteve o Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, tendo, em 2019, sua 3ª reimpressão pela Penalux, além de ser traduzido ao espanhol por Verónica Aranda (editorial Polibea, Madrid, 2017).
Atenta às indagações que lhe foram ofertadas, Clarissa Macedo concedeu gentilmente uma entrevista para a Diversos Afins. No transcurso da conversa, a obra da poeta esteve em evidência, demarcando de modo especial a visão de mundo dotada de uma dicção intelectual que harmoniza inteligência e sensibilidade, ferramentas indispensáveis inclusive na reflexão sobre alguns dilemas da contemporaneidade.
DA – Não é possível falar do seu novo livro sem primeiro ressaltar essa verdadeira cartografia dos afetos que foi construída ao longo de sua trajetória, sobretudo em cima dos laços estabelecidos através da grande rede. Some-se a isso o fato de você também dedicar a obra a expoentes da resistência feminina e negra, tais como Carolina Maria de Jesus e Elza Soares. O que dizer desse conjunto inicial de sentimentos?
CLARISSA MACEDO – Michel Maffesoli fala que é preciso voltarmos ao coração. Ideia esta, acredito, alojada sob uma episteme que demanda à humanidade reinventar-se, através do amor, para existir. Eu compartilho desta noção. A literatura é meu modo de estar e me reconhecer no mundo; sempre foi assim e o é cada vez mais. Nesta existência por meio do literário tenho colhido mais alegrias do que qualquer outra coisa. Nesse sentido, minha palavra, que em “O nome do mapa…” é empregada, sobretudo, como artefato bélico contra os desmandos destes tempos, abre-se à celebração do amor. Todas as pessoas que ali estão mencionadas contribuíram de distintas maneiras para a feitura do volume e, assim, para minha existência. Não podia deixar de levá-las comigo, de agradecer pelas contribuições afetuosas. Esse conjunto de poemas foi tecido a partir do gesto da inquietação que anseia por uma mudança efetiva, que caminha pela sobriedade e que acredita na capacidade da consciência como forma de revolução. Por isso Carolina, símbolo de resistência e amor à escrita; Elza, maga da música de todos os tempos; e Irina Henríquez, poeta e cineasta da Colômbia, país irmão com o qual temos muito que aprender – vozes negras e indígenas que precisam ser lidas, ouvidas, respeitadas. Então, apesar dos tempos de angústia que o livro aborda, o chão dele é arado pelo movimento do afeto. É necessário guerrear com flores nas mãos.
DA – É emblemática sua última frase sobre guerrear com flores nas mãos, ainda mais no estado de coisas atual em que vivemos. Diante de um país e mundo cada vez mais distópicos, o que representa a sua assunção de praticar uma literatura marginal?
CLARISSA MACEDO – A literatura é, por si só, marginal. Por isso cumprir este caminho como tenho feito – estudando, pensando e optando por uma carreira profissional (a de revisora) que está ligada à palavra – requer coragem. Escrever é contornar o mundo com uma faca que grafa sentidos e dissidências; às vezes dói, quase sempre sangra, pois na Terra o capitalismo domina todas as esferas: social, econômica, afetiva, política. Coisa mais esquisita é a expressão “capital humano”, que me recorda Antonio Candido quando este diz que “O capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro. Dizer que tempo é dinheiro é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”. Acessar a literatura é manejar a descoberta, a separação entre Tânatos e Cronos, é celebrar a vida em sua dimensão mais profunda, a dimensão humana, rejeitando o projeto perverso de capitalizar a humanidade. “O nome do mapa…” é, nesses termos, o resultado de minha obsessão em cartografar a palavra poética como resistência à necropolítica – algo totalmente descentrado. Mas quem se importa? Como este livro escrito por uma mulher baiana com cheiro de fábrica pode incomodar o deus mercado? Eu poderia falar sobre o meio editorial e tantas outras coisas, mas só digo que se meu livro puder oferecer a alguém uma alternativa ao “capital humano”, algum tipo de devassamento de fronteiras, tudo valerá a pena.
DA – Fazendo alusão ao sentimento que atravessa um poema como “Desconhecida”, a constatação do tempo com status de aflição é verdadeiro desabafo. Acredita na ruptura de nossa inércia estrutural a ponto de podermos mudar as coisas?
CLARISSA MACEDO – No poema, “as utopias acabaram em nome da televisão”, entrecruzadas pelo desencantamento, anunciado por Weber como resultado do avanço do capital para todas as relações – e destaco a esfera religiosa institucionalizada, que seria responsável, a princípio, pela perpetuação da espiritualidade. No sistema regido pelo financeiro, o sagrado, o sonho, o rito, a poesia, em seu sentido mais pleno, não têm lugar. Esvaziar estas categorias é roubar do ser humano a sua identidade, deixando-o à mercê do consumo da matéria como forma de preenchimento, forma esta incompleta e desabitada e, por isso mesmo, mantenedora do sistema, pois se nunca encontra verdade e razão, nunca se satisfaz, comprando e comprando para aliviar uma dor que nem sabe que sente. Ruir com toda essa arquitetura bem projetada é um desafio sem precedentes, sobretudo quando vemos partidos de extrema-direita, defensores do ultracapital, ressurgirem, ganhando espaço no mundo. Por outro lado, isto é reflexo de um maquinário que se sabe prestes a ruir, já que o planeta não poderá seguir caso a exploração continue do modo como está. Para que possamos sobreviver, precisaremos nos reinventar, e para isto a humanidade é qualificada. É frustrante que não mudemos pelas razões certas, por uma ética ecológica e do amor. Mas, talvez, a sobrevivência nos ensine, além de sua própria função básica, a sermos mais solidárixs.
DA – Em seu livro “O Amanhã não está à venda”, o escritor e líder indígena Ailton Krenak nos lança uma importante provocação, fazendo-nos questionar a nós mesmos se somos realmente uma humanidade diante dos maus tratos impostos à natureza e da ampliação atroz das desigualdades sociais. Acredita que estamos experimentando um largo processo de desumanização em escala global?
CLARISSA MACEDO – Desde sempre nos desumanizamos (ou nos humanizamos?) através da barbárie. Entretanto, com a noção de propriedade, que se estende à mulher, ao outro e à natureza como objetos manejáveis e subservientes, que perdem o status de ser, o processo de desumanizar-se foi intensificado. E são estas noções/práticas que fundamentam o imperialismo e o capital. Portanto, o que vivemos hoje é um processo há muito iniciado, mas potencializado agora porque quanto mais se aprimoram a tecnologia e as ciências mais estas escapam de uma bioética para serem empregadas em nome da dominação. Os povos indígenas vivenciam isso desde que suas terras foram invadidas por navegadores. Hodiernamente, tudo isso espanta porque, após duas severas Guerras Mundiais e tantas outras de independência, além da criação dos Direitos Humanos, dentre outras questões, supôs-se que havíamos aprendido algo; enquanto não descobrirmos a verdadeira matriz do hibridismo cultural, vendido como cosmopolita, mas que, ao fim e ao cabo, serve para a manutenção da colonização (mental, e por isso simbólica e factual ao mesmo tempo), e nos centrarmos numa visão de mundo ecocrítica, geopoética, inclusiva, caminharemos rumo à devastação, ao desumanizado porque extinto.
DA – Estarmos imersos hoje num contexto de pandemia expôs mais ainda nosso fracasso civilizatório?
CLARISSA MACEDO – O que direi agora soará como contrassenso se comparado às respostas anteriores: não posso admitir que fracassamos, ao menos não totalmente. A pandemia tem exposto, sim, especialmente no caso “Brazil”, uma feição genocida que parecia irremeável pós-Constituição Cidadã de 1988 e tantos outros avanços globais significativos. Mas cá estamos, sob um governo preocupado com a abertura de shoppings centers (templo-ícone do capital) em detrimento da preservação da vida. Mesmo assim, creio ser possível sacarmos uma lição valiosa disso tudo – e para tanto temos a arte, que, além de grande manifesto sobre esta era (seja no viés político mais imediato, seja na pungência que debilita o humano, seja, ainda, como reino-refúgio), propicia a criação de dimensões imaginárias que podem instituir uma nova cidadania. Permita-me trazer à baila um pequeno poema de “O nome do mapa…”:
Prece
Na vida,
aprendi os salmos perdidos;
são eles que me pegam
quando o continente
cobre os meus olhos
de deserto.
E a literatura é, também, isso, uma acolhida quando o inóspito parece ser o único plano sondável.
DA – Em que nível você carrega em si o atributo do otimismo?
CLARISSA MACEDO – Deleuze alerta que migramos da sociedade disciplinar para uma de controle. E, apesar de a engrenagem do capital ser uma obra-prima do ponto de vista propagandista e como sistema de dominação, o pan-óptico não transita imune. Há, nesse aspecto, uma reação, um retorno ao sagrado, ao simbólico, a um estado de poesia, ou seja, uma rejeição ao numerário como forma predominante da existência, delineando a urgência de um reencantamento. Concepções como o veganismo e a crescente de religiões, em linhas gerais, de matriz panteísta demonstram uma demanda pelo telúrico, o seio original de tudo o que pulsa no planeta. Reencantar-se entrecruza, desse modo, a natureza, a arte e a reapropriação do tempo, não mais a serviço do acúmulo monetário e exploração. A vida, em sua definição concreta e inteira, passa a ser prioridade. O reencantamento é esperança: “Às vezes, / fabricamos finais do mundo / sonhando com o próximo passo.”.
DA – Qual a diferença da Clarissa de “Na pata do cavalo há sete abismos” para a Clarissa de “O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição”?
CLARISSA MACEDO – Toda a diferença (risos) – embora eu mantenha certa identidade de escrita. “Na pata do cavalo…” me parece um livro político; não apenas na acepção de que toda literatura é, em si, um ato político-revolucionário, mas pela abordagem de temas como a dureza vivida na minha infância – e na de tantas pessoas -, o preconceito e o abandono das instituições. E nisto ambas produções comungam. Contudo, estas discussões no livro anterior estão sob a pele de uma metáfora mais incisiva e sob o signo da palavra em uma cariz mais velada. Hoje, sou capaz de reconhecer estes traços, incompreensíveis à época de feitura – uma composição na qual eclodiram várias centelhas que há muito se resguardavam em meu peito. Agora sou outra poeta. Em “O nome do mapa…” optei (inconscientemente, talvez, do ponto de vista estético) por um discurso mais direto, mas não menos imagético, e por um debate imediatamente político. Desde o golpe de 2016, coroado pelo machismo consentido nas instalações governamentais, passando pela ocupação da extrema-direita e desembocando numa ferida quase que total das estruturas democráticas nacionais, tenho sido atravessada pela indignação. E este foi o motor da poética dos mapas. Mesmo nos poemas mais líricos e amenos, por assim dizer, é o traje da tentativa de escape e sobrevivência que me veste. A condição da classe economicamente desfavorecida no Brasil, minha origem, está devassada no livro. Vou costurando os impostos abusivos, a fome, as injustiças, a derrocada da democracia… até chegar ao ímpeto de recontar a história brasileira – é necessário voltar ao início para entender os entre-meios. Admiro autorias que se diferenciam em cada obra mas mantêm uma unidade poético-vocal. Isto é algo que almejo obstinadamente ao construir um trabalho. O próximo livro de poemas que estou tecendo apresenta uma voz completamente distinta da presente nos anteriores.
DA – Seria insuportável conceber a realidade sem a Arte?
CLARISSA MACEDO – Primeiro, é necessário pensar no que “aparta” a realidade da ficção. Muitxs autorxs versaram sobre o tema. Umberto Eco, dentre outros, questiona o que diferencia o universo ficcional (artístico) da verdade histórica. Isto me conduz a refletir sobre o conceito de verdade. Nietzsche me toma pela mão em sua “Segunda consideração intempestiva” para questionar a história e sua definição ao longo do tempo. São diversos pontos de diálogo e indagação. Marcia Tiburi, no prefácio de “O nome do mapa…”, escreveu: “Eu vou me permitir dar livremente esse nome simples e conhecido ao sentimento que emana dos poemas de Clarissa: Luz. Alguma coisa em nós pede essa luz, a luz da poesia como um voo de vagalume no meio do breu.” (Grifos meus). Para mim, não só a poesia, mas toda a arte constitui algo que redimensiona e potencializa o que chamamos de realidade – este fio tênue entre a dita razão e a dita loucura -, guiando-nos com um facho em meio à desesperança. A física quântica indica que o tempo e o espaço como timidamente conhecemos são mais expansivos e enigmáticos. O ponto, para não me alongar, é: estamos longe de saber o que são, ao certo, realidade e ficção. O que sei, contudo, é que a arte, enquanto aparato estético-narrativo…, por fomentar um suprafactual e por dar significado à vida e à história de maneira ampla e surpreendente, torna a existência mais sensível e instigante. Seria insuportável um tipo de realidade sem arte porque esta confunde-se com a própria vida.
DA – Afinal, por que escrever?
CLARISSA MACEDO – Afinal, por que viver?
Fabrício Brandão é caótico, sonhador e aprendiz de gente. Se disfarça no mundo como editor, poeta, baterista amador, mestre e, atualmente, doutorando em Letras.