Aperitivo da Palavra II

Paulo e seu “Lirismo de Chorume”

Por Gustavo Rios

 

 

É legal quando eu me deparo com um escritor fino, talentoso e sincero – quase um refrão do Lulu. Aquele tipo de pessoa que sabe aonde quer chegar. Que não se envergonha de suas influências, as usando com talento e sagacidade. Tudo em prol de um bom livro.

Paulo Bono é desses. Não se intimida se é Bukowski quem sopra melodias em seu ouvido. Ou se algo de Hammet desliza no teclado de seu computador. Ele segue na boa. Na busca de uma boa história.

Lançado em 2019, Sexy Ugly é um livro de 133 páginas editado pela baiana Mondrongo. Livro que me surpreendeu por vários motivos. Dos diálogos certeiros que dizem mais do que mostram, ao humor sem assepsias, esse escritor baiano, além de publicitário e flamenguista, mostrou ser um daqueles que respeitam o leitor.

E por que digo que fiquei surpreso? Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que a “surpresa” em questão não tem a ver com a suposição de que Paulo fosse um escritor meia boca. É bem verdade que, antes de Sexy Ugly, havia lido pouca coisa dele – e isso tem mais a ver com minhas limitações. E também é fato que eu andava desconfiado de autores que assumiam o risco que Bono assumiu: transpor para uma realidade verossímil (e bem tacanha) aquela pegada forte e densa comum ao tipo de literatura que gente como nós admira.

O lance é que esse flamenguista assumiu o risco e vendeu o peixe. Desde a capa sensacional até cada palavra escrita, o que vi foi um autor com domínio total de suas intenções. Do começo ao fim.

De cara, posso dizer que Paulo é daqueles que curtem os escritores de “pegada forte”. Além dos já citados acima, identifiquei no livro coisas do Fante, por exemplo, mesmo com todo o humor inserido. Todavia, não falo aqui de imitações toscas, um tipo de literatura que simplesmente copia para um universo próximo – a realidade do autor, “por supuesto” – o estilo sem firulas dos gringos. Ao ser franco com suas certezas e ter em mente exatamente o que desejava, ainda que isso demandasse um trabalho de “levantar e derrubar pilastras”, Bono soube escolher o tom de sua obra. E tais autores serviram justamente pra isso: dar o tom; lastrear a história do Deco Ramone, o protagonista.

Os personagens são caricatos, mas não falsos. E nos lembram outras grandes figuras literárias e cinematográficas da mesma estirpe. A linguagem é crua e suja, sem desculpas nem receios. Algo louvável, principalmente em tempos de álcool gel e outras assepsias – ou, como bem disse o capixaba Saulo Ribeiro na orelha do livro: “lirismo de chorume”. De sujeitos com chapéus de cowboy, a femme fatales, temos um desfile genial, divertido e convincente (dentro da proposta do escritor) de pessoas que nos prendem e nos cativam. Pouco importando se elas conhecem o Conjunto Habitacional Feira VI ou se tomam umas no Rio Vermelho.

Daí o primeiro risco: ao escolher trabalhar com indivíduos tão marcantes, os colocando em “cenários” tão próximos – Salvador e Feira de Santana -, Bono poderia ter errado feio a mão. Ou a demão. Não foram poucos os livros que li onde o artista, preso ao sedutor “complexo de Factótum”, apenas copiou, de forma deliberada, ideias centrais e batidas dos escritores pertencentes a essa linhagem. Ainda que suas influências fossem claras, e aparentemente pensadas, Paulo soube dosar bem o uso de tais “personas”. Ele foi muito hábil ao mesclar tais escolhas com suas próprias experiências. E nada sobra no desenrolar da narrativa.

Assim como Paulo Bono, Deco Ramone, protagonista do romance, é um publicitário à beira de algum abismo. Sem grana, sem escolhas, e prestes a ficar longe da filha, ele é contratado para um estranho “job”: criar um roteiro para uma casa de tolerância que atende somente aleijados e párias em geral, incluindo os de “pau pequeno”.

A partir desse ponto, o que vemos é uma obra deliciosamente maldosa, ácida, direta, sedutora, curta e instigante. Em resumo: arriscada.

E isso se deve não somente às inspirações vindas da literatura. Ao ler Sexy Ugly, coisa que fiz em duas tardes (e isso não é demérito), percebi que o também roteirista Paulo bebeu (e fumou) em outras fontes artisticamente válidas: falo dos grandes seriados que, nas últimas décadas, vêm mudando nossa maneira de entender e perceber a linguagem televisiva e/ou cinematográfica.

De Breaking Bad à série A Sete Palmos, desconfio que Bono captou algo escrito pelo jornalista Brett Martin em seu livro Homens Difíceis. Além disso, suspeito que ele também compartilha, de certa forma, alguma coisa das ideias defendidas pelo Enrique Vila-Matas, num artigo onde o espanhol cita Mad Men e sua reconciliação com o que ele chamou de “formas breves”.

Isso sem falar no Tarantino ou no lendário Lebowski, presentes diretamente em Sexy Ugly.

Existe muito de cinematográfico no andamento de sua escrita, bem como na elaboração dos diálogos, outro ponto fundamental na obra: os diálogos são o seu “parque de diversões”, como ele mesmo chegou a dizer numa entrevista aqui mesmo. As conversas, por si só, conseguem preencher boa parte do livro, sem travar a leitura nem trazer confusão. Capítulos inteiros (apesar de curtos) são “só” isso. E “tudo“ isso é feito de forma tão direta e ritmada, que até as reticências se tornam menos reticentes.

Paulo põe na boca (sem malícia, por enquanto) dos personagens falas que refletem o que ele realmente deseja mostrar: se profundidade ou escracho, tanto faz. Entretanto, mesmo que a ideia seja filosofar ou sacanear (coisas bem parecidas às vezes), tudo é feito com destreza e humor, umas das melhores formas de entender, enxergar e suportar esse mundinho que precisa lavar as mãos, inclusive entre os dedos.

 

– Sério, pai? Você deu em cima da Cássia Eller?

– Só pra descolar uns ingressos.

– E aí?

– Ela preferiu minha namorada.

– Eu queria muito ter ido num show dela.

– É, mas só pagodeiro que não morre.

 

Isso é Deco e sua linguagem suja. Para que possamos lavar a alma…

Quanto à profundidade, elemento tão buscado no fazer literário, não posso afirmar que Bono teve isso em mente durante o processo. Acho até que não foi sua intenção: continuo acreditando que ele buscava uma boa história. O que já vale muito a pena.

Contudo, e nem sei bem por qual motivo, em alguns momentos consegui perceber e enxergar algo mais, digamos, “cabeça”. Como uma mensagem subliminar e escondida, meio de bobeira. E isso tem muito a ver com o humor, elemento chave em Sexy Ugly.

“Comerciais de presunto. Nada mais distante da realidade. Ninguém ostenta tantas fatias de presunto dentro do pão. Lembro de quando garoto. Era preciso dividir uma fatia entre quatro irmãos. É uma das poucas vantagens de alcançar a vida adulta. Comer quantas fatias de presunto o rabo aguentar.”

Tudo bem, tudo bem, já até posso enxergar um ou outro torcendo a boca. Perguntando-se como Gustavo enxergou profundidade nisso. E não vou elencar as possíveis mensagens contidas nesse trecho ácido e bem humorado. Entretanto, creio que não podemos também esvaziar por completo o fragmento acima. Defendo a ideia de que o leitor faz o livro. E costumo exercitar isso com frequência.

Além do mais, podemos enxergar críticas ao que somos nesses dias terríveis em outras páginas: do racismo na publicidade à necessidade de gourmetizar tudo que é bom e vital, incluindo sorvetes e churros. Numa vidinha morna e sem lactose.

Na base do humor (sempre ele), e de um cinismo bem articulado, Deco Ramone nos atiça com questões que geralmente deixamos pra lá, enquanto ele mesmo luta para sobreviver. Todavia, o cara faz isso sem forçar a barra. Sem querer voltar no tempo, e viver sob o mesmo teto que a Simone de Beauvoir.

Bem sei que toda resenha é tendenciosa. E, sempre que faço uma, pareço exagerado nos elogios – e provavelmente não muito retórico nas justificativas. Porém, ao ler Sexy Ugly, realmente enxerguei um bom livro. Sincero, bem contado, engraçado e direto.

E pouco me importa se ele será criticado pela suposta imitação de um estilo “maldito”, o tal clubinho Factótum (nada a ver com a moçada boa que divide com Paulo inspirações e viagens literárias). Quando o autor, ao trabalhar em sua obra, se sente conciliado com as próprias escolhas, tudo dá certo. Na medida em que ele também se insere nela.

O fato é que Bono é um cara de talento. E, ainda que algumas figuras presentes no livro nos pareçam a priori estereótipos, como o sujeito com pinta de cowboy num bar do Rio Vermelho, a dúvida sobre o artista e suas capacidades acaba se diluindo no caminho. Ao vermos que o desejo do mesmo é o de nos contar uma história. Sabendo como nos conduzir em sua ideia.

Ao trazer aquele tipo meio caricato de pária e marginal, essencial para que Sexy Ugly funcione, Paulo bem que poderia ter caído no ridículo. Se a gente pensar nos autores sem talento que costumam replicar suas influências, reescrevendo um bando de figuras deslocadas e sem brio.

Para mim, entretanto, de nada vai adiantar reduzir o valor da obra com teorias vazias e rancorosas. Se um cara resolve tocar um bom blues, Howlin’ Woolf deve ser lembrado.  O mesmo pra Gonzagão.

Com isso, pensar em criticar Bono pelas escolhas, é meio que reforçar a ideia de que, enquanto nordestinos, somos eternamente responsáveis por um tipo de reserva estilística. Aquele regionalismo arrastado e chato, ou aquela urbanidade estereotipada, multicolorida e batuqueira (não sejam mesquinhos ao interpretar essa ideia, por favor).

Acredito que devemos ser livres. E devemos confiar em nossos passos cada vez mais longe desse “comportamento de Nonada”. Se tal comportamento resultar em bons livros, obviamente.

Foi o caso de Paulo. E é por isso que digo: confiem nele. Nele, no livro e no Deco Ramone. A viagem será boa, eu mesmo garanto.

 

Gustavo Rios é baiano. Autor de “Rapsódia Bruta”, entre outros.

 

 

Clique para imprimir.

1 comentário

  1. Excelente texto. Deu uma boa luz sobre Sexy Ugly, livrão de Paulo Bono.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *