Aleilton Fonseca
O SORRISO DA ESTRELA
Estava morta a minha irmã, ali entre jasmins e rosas, minha mãe à cabeceira chorava. Era uma noite inquieta, essa do velório em vigília e prantos por Estelinha, de quando em quando se rezavam benditos. O enterro iria seguir no outro dia, no meio da manhã de sol.
Estela estava morta, aos treze anos. E eu sentia dentro de mim esta morte. Era um pouco também eu morto, sem tempo de me redimir e poder amar minha irmã, como — só agora! — eu sabia ser capaz. Ela não morresse, eu iria brincar com ela, nunca mais uma zombaria, nem desprezo, nunquíssimo a chamaria de “sua doida”.
Pois agora eu começava a compreender sua linguagem; logo agora, desde que ela se fora para o hospital, eu comecei a entender seus diálogos compridos com as pedras, com os tocos de pau, com as folhagens ao vento. O silêncio de sua ausência no quintal se mostrou dentro de mim em tons de uma saudade estranha. Mas, ainda ali, eu não suspeitava do que me vinha na alma.
Tudo fora a ordem do tempo. Ela nascera primeiro, três anos antes de mim. Agora a diferença encurtava, mas justo quando eu me afogava nesse deserto de lágrimas. Pela primeira vez, eu dialogava com a minha irmã:
— Estela, acorde, vamos conversar com as pedras — sussurrei no seu ouvido, ninguém me escutasse.
A madrinha veio me consolar, eu tivesse paciência, fora a vontade de Deus, o melhor para ela, tão doentinha, coitada. Tive raiva de madrinha, no meu mais íntimo sofrimento. Continuei a conversa, até que me puxaram pelo braço, pois minha mãe redobrava-se no pranto.
— Estela, acredite em mim agora. Vamos correr picula.
O corpo dela suava, dormindo sem ressonar. Um pano envolvia seus cabelos castanhos e descia para sustentar seu queixo — talvez para conter o sorriso? Minha mãe enxugava o suor da morta com o mesmo lenço em que depositava as próprias lágrimas. O tempo voltasse, meu Deus! Eu só implorava um único milagre. As imagens desfilavam na minha memória, eu a escutava como se fosse agora:
— Vamos brincar, Dindinho.
— Não me chame de Dindinho! Meu nome é Pedro — respondia áspero, sem sequer olhar, e ia saindo.
Eu pensava odiar o fato de ter uma irmã assim. Ela insistia, amorosa, que me dava um constrangimento.
— Não, ninguém sabe, mas é Dindinho, seu nome bonito, eu chamo — dizia, como se eu continuasse presente.
Eu fugia de ter essa irmã. Os meninos me abusavam. Várias vezes briguei por me chamarem de Dindinho, o irmão da doida. Dindinho, eu mesmo não! Minha mãe já ia pegando o costume de me chamar assim, nas vontades de sempre agradar a filha. No contra, eu me rebelei, fugi de casa um dia inteiro. Minha Mãe me deu uma surra, depois, mas nunca mais me chamou daquele nome.
Por que ela existia? Eu não me dirigia a Estela. Mudava de rumo, baixava os olhos para não dar com ela. Eu a considerava um estrago na minha vida. Quis muito que morresse.
Ela me surpreendia, às vezes, antes que me mostrasse irritado, como quase sempre acontecia:
— Quando você morrer, Dindinho, de que cor você quer suas asas no céu?
Uma coisa tão sem sentido, que eu sequer respondia. Apenas fazia uma careta de enfado, balançava a cabeça negativamente. Ela me cercava os olhos, inventava brincadeiras cada vez mais estranhas, para conquistar minha atenção. Isso tudo mais me afastava. Os meninos, meus amigos, considerassem que eu não tinha irmã, pois mencioná-la era já motivo de desavenças. Fiquei de mal com alguns dos melhores, tempos e tempos, por essas causas.
Diante de minha repulsa, Estela intentava uns modos de me sensibilizar, sem o menor sucesso. Um dia, posto que eu a estivesse atentando muito, ela imaginou uma proposta das mais descabidas. No começo da noite, ela, depois de tanto silêncio, me propôs com a maior certeza do mundo:
— Eu lhe dou uma coisa para sempre, aquela estrela grande será só sua a vida toda e depois, Dindinho.
— Ora, quem pode ter uma estrela, “sua doida”? — desdenhei.
— Pois pode, porque é minha e eu lhe dou só pra você, Dindinho. Mas só se você sorrir para mim, todo dia, uma vez… Só uma… Você quer?
Nunca soube sorrir para você, Estela, me perdoe. Quando eu tomava posse de mim mesmo em mais profundo, quando um sorriso germinava no fundo de minha alma — e seria seu! —, você já não estava aqui. Até hoje só me vêm as lágrimas que nunca tive antes, quando você vivia em seu mundo de imagens, que só percebi depois. Eu era mesmo um Pedro, o coração tinindo na dureza, você foi me amaciando. Você, aos quase quatro anos, me carregou no colo. Eu era seu neném, como a nossa mãe me contou, depois de tudo, tardiamente. Estela… Tudo podia ser tão diferente!
A noite ia avançando, em horas que eu não conhecia, os meus olhos já desistentes. Eu me debruçava sobre a morta, o sono me empurrava para ela, nos movimentos bruscos dos cochilos. Minha mãe me mandou dormir, e eu, depois de insistir negativo, enfim saí cabisbaixo da sala, a solidão me completava. Não me dirigi ao meu quarto, mas ao que ficava ao lado. E examinei os ângulos daquele lugar, tudo tão limpo e arrumado numa ordem que eu não conhecia. Ali, enxerguei os contornos deste vazio que até hoje carrego. Fiz meia-volta e caminhei para o meu leito, mas não consegui me acomodar. O sono me apertava os olhos, uma agonia no peito teimava-me pela vigília. Quis retornar à sala, mas nossa mãe me suplicou que não, com um olhar terno, tão raro aquele olhar… Eu voltei, mas não para o meu quarto. E me deitei na cama de Estela, deixando na alfazema do travesseiro o sal dos meus olhos.
Eu me vi vivendo o melhor que nossa realidade. Estela me sorria, corria de mim, eu não tinha pressa de apanhá-la, era talvez picula. O nosso quintal se alargava, o caminho de plantas, paus e pedras ia-se margeando em nuvens sem um fim que se avistasse. Eu tinha o saber de tudo, mas não me importava, o sorriso de Estela me preenchia e me fazia leve, que então voávamos. Eu queria alcançar minha irmã, mas não podia lhe pedir que parasse. Estela tinha um voo firme e certo, e eu, me parece que só voava no seu vácuo. Mas eu a queria, buscava-a para um abraço que faltava em mim, um toque que me transmitisse os seus modos de sorrir. Eu queria conversar com as nuvens, e as pedras lá embaixo já me sorriam, as folhas acenavam para mim. Estela ia-se distanciando, eu me surpreendi no cansaço desse voo, as nuvens perdendo sua leveza. Estela! Estelinha, me dê a mão! Me leve com você! Mas o seu sorriso já me abandonava. Ela se foi fazendo em cor de nuvem, aos poucos me vi sem olhos para tê-la. E era tarde, muito tarde: tive um sobressalto, e tudo que agora eu via eram as telhas vãs do nosso quarto.
A manhã se ia acesa como as velas, numa rapidez que doía em nós. Vi que minha mãe não dormira, velara nessa noite toda uma vida ao lado da filha. Era um olhar cansado, dela para mim, com um desencanto mudo, enxergando o nosso vazio. Acerquei-me dela, os seus braços me tatearam. E logo me acariciava os cabelos com a mão direita, com a outra acariciava os cabelos de Estela. Inesquecível aquele gesto de nossa mãe, em toda a nossa vida, por seu corpo passando a nossa última sintonia.
As pessoas iam chegando, a hora do enterro se aproximava. Madrinha apagou os quatro tocos de vela acesos ao redor de Estela. Começaram a distribuir os ramos de flores para o acompanhamento. Eu reparava nos meninos e nas meninas que se acotovelavam para ver a morta. Alguns que sempre zombavam dela. Uns me pareciam tristes, outros apenas viviam uma aventura. Eu me sentia completamente afastado de todos.
Iam fechar o caixão. Minha mãe despejou mais lágrimas e inquiria Deus pela morte da filha. E até madrinha, pela vez primeira, soltou as rédeas do seu pranto. Eu me guardei no silêncio, peguei um ramo de rosas que estava próximo ao rosto de Estela. Não me pareceu que eu pudesse beijar o seu rosto agora, já que nunca o fizera em vida. Então beijei as flores e pus de volta no caixão.
Era hora, o enterro ia seguir. Quando me mandaram olhar minha irmã pela última vez, não chorei, pois me pareceu que ela sorria um sorriso longe só para eu sentir. Então percebi que ela agora se tornava como nuvens. Eu quis seguir com ela, mas não me deixaram. E me levaram Estela de mim.
O cortejo dobrou a primeira curva de nossa rua. Os meus olhos continuaram buscando, até hoje parados naquela curva sem nome. Madrinha varreu a casa, dos fundos para a porta da frente, juntando as folhas e restos de flores e tocos de velas. Deixou o montinho no pé de jambo que Estela chamava de “meu segundo amor”. Era onde minha irmã costumava ficar à sombra, enfeitando-se com as flores rubras de jambo. Ali eu derramei as minhas derradeiras lágrimas.
Minha irmã, ainda hoje eu contemplo a tua estrela e tenho uma vontade enorme de que fosse minha. Eu vejo tua imagem se projetando de lá, num sorriso longe que não me deixa desamparado. Era essa luz que você me oferecia, por apenas um sorriso, que já era seu sem que eu soubesse. Quantas estrelas no céu — e eu não possuo uma sequer!
O tempo me deu estes cabelos brancos, mas a minha memória guarda os sinais do semblante de Estela, com suas alegrias sem nenhum motivo. Em nosso quintal, as pedras, os tocos de pau, as folhagens ao vento puxam conversa comigo, mas eu continuo mudo. No entanto, agora sinto: eu sou Dindinho.
*Conto integrante do livro “O desterro dos mortos” (Caramurê, 2018)
Aleilton Fonseca é ilheense de adoção, nasceu em 1959, em Firmino Alves-Bahia, viveu e cresceu em Ilhéus, dos 4 aos 19 anos, e reside em Salvador. Escreve poesia, conto, romance e ensaios. É doutor em Letras pela USP e professor de Literatura da UEFS. Estreou em 1981, com o livro de poemas Movimento de Sondagem. Tem textos traduzidos para francês, espanhol, inglês, italiano, neerlandês e alemão. Publicou diversos livros, como: As formas do barro e Um rio nos olhos (poesia), O desterro dos mortos, O canto de Alvorada e As marcas da cidade (contos), Nhô Guimarães e O pêndulo de Euclides (romances) e O arlequim da Pauliceia (ensaio). Pertence à Academia de Letras da Bahia e à Academia de Letras de Ilhéus.
Lindo conto!!!! Lindo.