Aperitivo da Palavra II

Como escrever bem sob uma rajada de tiros

Por Gustavo Rios

 

 

Ao falar sobre quadrinhos, música pop, televisão e outros expedientes que, em tese, existem fora dos limites da arte mais elevada, por assim dizer, seria legal de minha parte citar aqui um fragmento de uma entrevista que Umberto Eco deu ao jornalista Ben Naparstek. Quando instigado a falar sobre cultura pop, Eco, que possuía na época 34 doutorados honorários, disse: “muitos acadêmicos liam histórias de detetives e quadrinhos à noite, mas não falavam nisso porque era considerado uma masturbação”.

Ainda que eu não conheça nenhum dos acadêmicos citados pelo Umberto, e ainda que eu saiba que o Pornhub salvou muito escritor amigo meu em momentos difíceis, ao esconder a influência dos quadrinhos, da música chamada pop e da TV em nossa arte, negamos a outros conhecerem a fonte e a essência de uma boa fatia de nosso trabalho: a beleza do que produzimos como resultado de uma louca, inventiva e caótica junção.

A coisa não se resume a essa trinca, evidentemente. Quando se trata de livros, a literatura conhecida como Pulp também deu a muita gente boa lastro e fôlego pra seguir em frente – ou mesmo pra se despedir em grande estilo, vide Nick Belane e o seu criador, o nosso querido Charles Bukowski.

No caso dos livros Pulp, talvez uma das características mais legais seja o desprendimento de seus autores na criação de universos – coisa sem relação alguma com descuido, friso. Nesses livrinhos, dogmas travando os limites da fantasia parecem não existir. Tampouco o desejo de entrar na marra para a história da literatura através de hermetismos e outras traquinagens. Do pouco que li e gostei desse divertido quinhão literário, as questões psicológicas eram facilmente resolvidas e a pancadaria comia solta. Naquelas páginas a linguagem era simples e eficaz, no final das contas. E até hoje tento imaginar o que seria do Paul Auster e do Thomas Pynchon sem as histórias de detetive.

Bruno Ribeiro, autor do romance Bartolomeu, me parece o tipo do cara que curte um livrinho Pulp. Nas 122 páginas de sua “sátira burocrática e violenta” envolvendo “assassinatos encomendados”, nas palavras de Mateus Rodrigues no que parece ser um posfácio, o uso das estratégias comuns aos famosos livros de papel barato (pulp paper) abunda. Ou mesmo sobeja, se quisermos usar um termo à maneira do linguista e semiólogo italiano.

Com um enredo eficaz e interessante, mesmo para os que nunca curtiram a literatura “barata”, Bartolomeu salta aos olhos. Dono de uma linguagem rápida e multifacetada, que evolui de maneira alucinante, Bruno Ribeiro constrói a trama sem abrir mão de inovações.  E de alguns riscos. A forma que Ribeiro escolheu para seguir com seu livro foi muito feliz. E tal escolha deixou o trabalho acima da média de outros Pulps que conheci – se fizermos uma relação direta entre as opções e considerando meu conhecimento no tema.

Bartolomeu, o protagonista, é um assassino dos bons; um artista em seu ofício. Além de ser o eixo de todo o livro, esse anti-herói negro trabalha para uma empresa chamada Indústria. A Indústria é uma corporação regida por normas parecidas com as de qualquer grande firma – ou quase isso, já que ela dá a seus funcionários “(…) desconto em motel, cesta básica, restaurante, férias, décimo terceiro recheado, desconto em lojas de departamentos, roupas estilosas e a puta que pariu”. Afora ser uma corporação que tem “a puta que pariu” como benefício trabalhista, outro detalhe que a distingue das demais é o seu, digamos, ramo de negócio: a eliminação de pessoas sob encomenda, aqui conhecidas como Trabalhos.

A Indústria, que emprega hackers, snipers e assassinos, possui semelhanças com outra “empresa”: a Comissão, da HQ Umbrella Academy; quadrinho que virou série na Netflix e que foi magistralmente desenhado pelo brasileiro Gabriel Bá.

Com isso, diante das escolhas do Bruno, creio que posso assinalar dois pontos que me chamaram a atenção de imediato: a provável influência dos quadrinhos e o modo escolhido pelo autor para contar sua vibrante história

Grosso modo, a literatura Pulp transcorre de forma linear. A história é contada com começo meio e fim (com alguns flashbacks, é bem verdade), geralmente tendo uma voz narrativa firme durante o trajeto. Essa voz observa, pontua, muitas vezes ironiza e sacaneia, mas sempre se mantém estável, presa ao estilo e amarrada à personalidade do protagonista-narrador. No caso do Bruno a coisa funciona de forma diferente.

Mesmo que o livro não se resuma a um amontoado de relatos, tipo papo de divã ou algo parecido (tem muita ação, muita coisa rolando), as páginas de Bartolomeu são um apanhando de vozes distintas. E tal expediente enriquece muito a história, em minha opinião.

Colegas, inimigos (ou colegas que viraram inimigos), pessoas, figuras macabras e tantas outras, falam sobre Bartolomeu na primeira pessoa. Cada uma o descreve de forma pessoal e única. Todo o processo, entretanto, ocorre sem que Ribeiro perca o fio condutor: raramente o novo elemento confunde o leitor, já que enxergamos o mesmo Bartolomeu à nossa frente. Com suas manias, escolhas, habilidades e aspectos.

Criança Branca, Eraldo, Vegetal, Lobo Cego, entre outros, contam e vivenciam as mais variadas e perigosas situações. Assim sendo, a cada voz que surge (e incluo também Vegetal nessa onda, lá do seu jeito), fica óbvia a aptidão de Bruno em definir as características de cada personagem, mesmo que todos girem ao redor do protagonista. De Mona à Criança Branca, Bruno altera um pouco as regras do jogo Pulp, quando nos apresenta uma narrativa meio psicológica e individual. Indo além do uso atabalhoado de clichês.

Clichês são usados sempre que preciso, todavia. E esse procedimento em nada prejudica Bartolomeu – diante do fato de que tais clichês são o fundamento do estilo aparentemente escolhido por Bruno, ficamos bem em seguir com eles. Assim como cowboys devem usar chapéus e marcianos só conseguem invadir a terra se vierem de Marte, livros com a temática de Bartolomeu devem conter bebidas fortes, cigarros e charutos, drogas, quartos de hotel, socos, armas, tiros, conspirações, cadáveres, homens e mulheres ressentidos, tesão em suspenso, facadas, femme fatales, traições e gente esquisita.

Além disso, esse mineiro radicado na Paraíba traz para o livro uma série de questões pertinentes e atuais. Referências à Lava Jato, ao presidente do executivo e à nossa política apodrecida, surgem com ironia e até justificam o rumo da história – vide o trecho, “O troglodita chuta uma cadeira, ‘você é um dos maiores hackers do país, crioulo. Invadiu o celular do Moro e da galera da Lava Jato. Um gêniozinho (sic)’”, página 18; ou então: “O Brasil se tornou um paraíso para nós, mas os comunistas estão voltando. Povo brasileiro é besta. Não será uma eleição fácil, saca? Estão nos vigiando sem parar. Temos que nos manter mais discretos, pelo menos por enquanto.”

 

Lirismo, imagética, tiros e escopetas

 

Não é tão raro identificamos em Bartolomeu passagens dotadas de lirismo e até mesmo com um pouco de poesia, diria eu. Esse recurso, quando aparece, sempre surge no momento exato.

Bruno, autor de Febre de Enxofre, livro escrito em Buenos Aires sob a orientação do poeta Guillermo Saavedra, trabalho que serviu como parte do mestrado em Escrita Criativa na Universidad Nacional de Tres de Febrero, parece gostar do jeitão portenho de se resolver as coisas.

E é nessa mesma Buenos Aires que o lirismo e um pouco dessa poesia ficam evidentes pela primeira vez: “Sou conhecido como a Criança Branca e estou em Buenos Aires, hospedado em um quarto na Pousada Díaz, no bairro de San Telmo. Local apertado, cama com cheiro de mofo, aquecedor pequeno, poltrona com desenhos tribais e um abajur quebrado. Um paraíso às avessas” – destaco aqui a última frase.

Em outro instante o canto de uma coruja se converte em “(…) um assovio em forma de enterro.”, enquanto nas já citadas páginas iniciais, o tiro disparado por uma mulher surte efeito semelhante ao se transformar em  “(…) o assovio de um pássaro negro, o canto de uma flauta doce, tão doce quanto aquele cheiro que agora significava o meu fim.”

Ainda que pareça repetição, achei legal a definição literária que Bruno Ribeiro deu para a morte. Para mim, uma boa estratégia.

A ironia também é outro item presente em Bartolomeu. E isso não poderia faltar de qualquer forma. A começar pelos nomes e codinomes dos personagens, desembocando nas frases em que Bruno descreve, de forma macabra e ácida, situações e trejeitos do seu rol de personagens pra lá de excêntricos, me flagrei diversas vezes rindo alto.

Cito como exemplos os trechos: “Vegetal só verbaliza grunhidos através da sua máscara de gás surrada e acinzentada. Regata branca desbotada da banda Legião Urbana. Jeans preto e rasgado. Um corpo esquelético e meio morto. Os olhos azuis arregalados no vidro da máscara encaram Bartolomeu, que depois de alguns segundos, decidiu pedir uma água para o garçom.

“’Não precisa ter medo. O Vegetal aqui tem uma função nessa reunião.’”

No que Bartolomeu, tempos depois, retruca: “’Da próxima vez, não traga o psicólogo. Não confio em quem gosta de Legião Urbana.’”

Fundamental para o bom andamento da obra, a linguagem simples também dá o tom. Assim como a agilidade das frases e uma forte carga imagética na descrição de algumas cenas.

“Os meninos estão felizes. Eles insistem em perguntar sobre minhas armas e a resposta é sempre a mesma ‘papai gosta de colecionar’. Tão pequenos, sagazes, tão vivos. Deito na grama, enquanto a esposa cuida da janta. Digo que é tarde, devemos entrar. A janta está maravilhosa. Elogio minha esposa. Coloco os meninos na cama. Transo com minha esposa. Pego a cadeira de balanço e coloco do lado de fora. Em meus braços, a escopeta carregada. Três carteiras de cigarro no bolso da jaqueta preta: refeição para uma madrugada.”

“Se estivéssemos fora da sala eu já poderia prever os olhares mortos em nossa direção. A última marcha nessa enorme empresa, entre os corredores infinitos e largos, paredes nuas, sem janelas, portas distantes, fechadas e cheias de códigos, espectros de terno e sem terno, heróis e codinomes sem noção, e eu me perguntando se tudo isso faria sentido, e eu me perguntando: onde fica a Indústria? Até hoje não sabemos… Chegamos aqui e não sabemos como, mas chegamos. Em algum ponto entre São Paulo e Rio de Janeiro. Um ponto recôndito, eterno. E os homens e mulheres deste estabelecimento de morbidez e cifrão finado balançando a cabeça, falando em suas mentes ‘meus pêsames’ para o nosso Departamento, enquanto caminhamos rumo ao céu aberto, o exterior, o mundo real. E ali, a qualquer momento, nossas vidas seriam extraídas dos corpos, seja por Bartolomeu ou por qualquer um, o nome não importa.”

Digressões também são bem vindas, já que romances permitem isso com o manejo adequado. E no caso do Ribeiro as digressões me lembraram do Tarantino: personagens falando sobre Bolsa de Valores, sobre a obsolescência de produtos industrializados e sobre orgasmo feminino antecedem fatos novos, muita ação e rupturas.

A presença de raríssimos ecos, pleonasmos e assonâncias não prejudica tanto a leitura. Porém, como não captei a intenção do escritor em ser irônico ou mesmo poético nesses trechos, fato que permitiria mexer e brincar com a sonoridade sem derrapar, melhor seria se ele revisasse algumas frases, tais como: “Todos nós simulamos um luto. O silêncio não é absoluto, pois meus soluços (…)” e “ (…)um ruído sutil foi audível (…).”

 

A pressa: o inimigo mais perigoso para Bartolomeu

 

Na leitura que fiz de Bartolomeu, não pude deixar de perceber alguns erros simples de se resolver: se considerarmos o suporte em que o livro foi lançado (digital), é crível que Bruno os reveja.

Da grafia da palavra iPhone que surgiu por duas vezes como “iPHONE” e uma vez como “Iphone”, até o uso da palavra Nordeste – digitada como “nordeste” em outra página, sendo que ambas pareciam ter a mesma finalidade -, temos aí itens que merecem atenção. Outra coisa que pode melhorar é a formatação do texto que, no livro, parece ser aquela do tipo “justificada” (usem essa resenha como exemplo). Espaçamentos menores nos diálogos também ajudariam na leitura.

Certamente no afã de entregar um trabalho ao seu público, que não é dos menores e me parece bem qualificado, Bruno e os revisores devem ter se passado em tais questões. Esses vacilos, contudo, não diminuem o itinerário do Bruno nem o livro, com absoluta certeza.

Finalmente, diante de tudo que vi e li, indico com sobra Bartolomeu para todos aqueles que curtem uma boa história. Para a turma que gosta de uma escrita ágil e cheia de surpresas, o livro do mineiro-nordestino Bruno Ribeiro é uma excelente pedida. Um tiro certeiro, sem dúvida. Ou uma rajada de tiros, a depender do caso, do Trabalho e da encomenda.

 

Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), entre outros.

 

 

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