Marcus Groza
do rascunho pra trás
no princípio era traço era rascunho
desenhamos o homem à imagem
e semelhança dos bichos selvagens
caçamos com afinco o dia futuro
em que o rascunho ganharia lustro
e progredindo de forma gradativa
chegaria quem sabe enfim às franjas
da perfeição por ser ele mesmo
braço mão cinzel e obra-prima
porém o que críamos ser qual nenê
que inspira cuidados e pede teta
mas alegria e graça promete aos pais
logo se mostrou nada mais do que
uma tosca versão definitiva
do omi-nenê sub-espécie extinção
progresso nenhum não veio aliás
senão o temporal que se prenuncia
com gestos de velhice e finitude
e avanço só mesmo qual curupira
cujo rastro é tão enigmático
que sherlock nenhum elucida
se no caso retrocedemos pra frente
ou se a vida é do rascunho pra trás
***
vinho manga losna ou cacau
o apetite dos convidados de uma casa em festa Luís da Câmara Cascudo
é amarga a vida diz um sincero
que nem tanat no primeiro gole
no início são fiapos de manga
aguerridos choupos ao vento
é o que respondo pois já nem
praguejo o visgo que se adere
e empedra no vão dos dentes
é uma manga a vida eu digo
é amarga repete o sincero
feito losna no dia seguinte
sinceridade é ateísmo açucarado
mesmo entre os mais crédulos
primeiro é tanino que amarra na boca
um gosto forte que água não leva
me lembra quando tudo salgado
da língua à garganta marrenta
como durante o sexo oral
não é sede na boca sedenta
a mim lembra bílis diz o sincero
que sobe em refluxo fermentado
e o palatante por fim experimenta
assombrações dos antigos manjares
entre arrotos azia e sabor azedo
é amarga a vida então eu penso
verdade é mancha no fundo da taça
o roxo que nos colore os lábios
amargor é vida eu digo
língua travosa cacau 100%
***
vinagre da insistência
…………em toda mesa de trabalho
não só o café esfria
…….como cedo ou tarde
……………a ossatura ideal se rompe
……………………emulsão e textura coalham
…………..então resta nas mãos
…………………o vinagre da insistência
…………………….verter ali nossas lágrimas
………..chorar a linfa empoçada
………………os pés inchados
…………..se inda resultasse num afeto-feitiço
…………………..mas sequer materializa a prata
………….desaprender ………única tarefa
………………………………começa vertendo o método
…………………………em leito sinuoso quando sabemos
……………………..que nos cabe esperar
………………..da seiva extraviada
…..apenas uma poeira nos olhos
………um silêncio condensado
***
osso
dentre tudo Q descarna
o amor é a mão suja
dum açougueiro indo pra casa
quando prende o punho
na engrenagem da porta basculante
e os dedos não se magoam
de tão acostumados ao sangue
***
para raquel gaio
dentre tudo Q oxida
embolora e resseca
faço um semicírculo
de flores e folhagens
rejeitos e pedregulhos
Q você coleta
quando andamos
pelos arrebaldes
escombros e estrelas
Q despencam
e você coleciona
cacos informes
materiais imperfeitos
irmãos nossos
servem de pretexto
pra esquecermos
a respiração curta
os invisíveis desabamentos
escombros e estrelas
Q despencam
e você coleciona
***
suor e oração
dentre todos cuja
pele não formiga
e imolam remorsos
com fósforos molhados
Quem me dera
ser todo estômago
movimento peristáltico
bile e refluxo
pra poder vomitar tudo
vomitar nossa servidão voluntária
aos gritos sem delinquência
ao valor moral do trabalho
aos traumas produzidos
em banho maria
no seio das famílias
quisera ser todo estômago
pra vomitar os ritos insossos
vomitar a obediência
vomitar a hierarquia
as ordens cantadas
os papeis de leis escritas
mastigar como uma cabra
a tábua dos mandamentos
e cagar uma merda ungida
Marcus Groza é escritor, dramaturgo, performer e pesquisador. Autor dos livros “Uma pedra em cima disso” (no prelo), “Milésima demão nas paredes de estar perdido” (Ed. Urutau – 2019) e dos textos dramatúrgicos “Não Urine no Chão”, “Tambor de Couro Vivo”, “Maré Morta”, entre outros. Participou com oralização de poemas no programa “Manos e Minas” da TV Cultura (São Paulo-SP), no “Eco Performances Poéticas” (Juiz de Fora-MG), no “Inverno Cultural” da UFSJ (São João del Rey-MG), no “Tercer Jueves” (Buenos Aires) etc. O seu ensaio “Para uma poética do esquecimento” foi traduzido para o espanhol e saiu no livro Olvidar – Brumaria Works #9 (Madrid, 2018).
Groza tem uma sensibilidade que me encanta e espanta, tanta liberdade na escrita que nos conduz a muitas reflexões cotidianas, um refinamento no olhar que considero profundamente filosófico, és ‘humano’! Parabéns!