NOTAS SOBRE UM POVOADO MÁGICO
Por Gustavo Rios
São evidentes os elementos que vinculam o livro Rio das Almas, do escritor baiano Pawlo Cidade, à tradição do Realismo Fantástico. Das famílias que atravessam o tempo da narrativa com suas histórias e idiossincrasias, às situações inusitadas envolvendo determinado rol de personagens, Pawlo nos traz uma obra interessante. E parece bem à vontade nesse universo.
Publicado pela portuguesa Chiado Editora, o romance Rio das Almas conta a trajetória de um povoado de mesmo nome que viveu seu apogeu com a extração de carvão (fato importante na trama) e com as ferrovias. Em suas 304 páginas, somos convidados a conhecer esse lugar mágico, que aos poucos vai se mostrando a alegoria perfeita para as ambições do seu criador.
No primeiro capítulo nos deparamos com o hidrólogo Pedro Parigot. Pedro, movido por uma espécie de milagre (uma cura que o personagem tenta entender com o olhar da ciência), viaja até o povoado na busca de respostas. O ano é 1968, período marcante para a história brasileira – e não é raro encontramos laços entre o mundo proposto pelo autor e o real, historicamente falando.
Dentro desse enredo inicial e aparentemente simples, e entre observações precisas e competentes do ambiente e da situação em si (o encontro entre dois desconhecidos, Pedro e o andarilho de nome Miguel Cervantes, num cenário que tenta fugir do trivial tão comum nos livros “regionais”), Pawlo dá início à sua jornada. E o que poderia ser o “núcleo duro” do livro, no caso a busca de Pedro Parigot por respostas, acaba por se converter numa parte. Fundamental no todo, mas nunca limitadora do muito.
E não demora nada para que outros personagens, com suas histórias inusitadas e bem construídas, surjam, ampliando o escopo do autor e nos mostrando o tamanho exato de suas ambições.
A mudança de cenário, por assim dizer, já começa no segundo capítulo. Nele, embarcamos com Pawlo Cidade, enxergando cada vez mais seus propósitos e a força de sua escrita.
O “povoado dos Santos”
Seguindo a linha de trabalho escolhida pelo artista ilheense, é importante destacar algo que prende o leitor e terá certamente a capacidade de mantê-lo no prumo: a história dos Santos.
Em minha opinião, as páginas em que ele descreve as peculiaridades dessa família (para usar um termo bem comportado) são umas das melhores partes do romance – talvez pela lembrança que me trouxe dos tipos que habitam Macondo.
Da família que “(…) todos os sábados, no lombo de burros, iam à feira de Rio das Almas negociar os alimentos que produziam na fazenda: leite, batatas, alface, mandioca, inhame, gabiroba e algumas peças artesanais como embornais (…)”, avançamos entre belas representações (lembro que a crueldade apresentada é parte do jogo; parte da necessária construção literária: aqui, então, justifico o termo “belo”), envolvidos por um ambiente mítico.
Para exemplificar parte dessa ideia inicial, e mostrar como Cidade trabalha tais questões, cito o trecho abaixo:
“A cada meia hora, Jairo Santos, arrastando os pés nas tábuas aparelhadas do piso da sala, saía na varanda e olhava para o céu, anunciando a chegada de uma chuva que nunca vinha. Com o dedo em riste, dava ordens à mulher e às filhas, apontando a direção, sem precisar dar uma palavra. De tanto apontar o dedo na direção das coisas e dos acontecimentos, o indicador da mão direita endureceu. A mulher, que era espichada, achou engraçado. Disse que o dedo duro foi castigo de Deus pelas vezes que ele a fez crescer, forçada, mas ‘por amor’, até ficar do tamanho dele. Dona Santaninha dos Santos cedera ao desejo desvairado e esdrúxulo do marido de fazê-la se esticar até ficar de sua estatura, para que os filhos, quando nascessem, tivessem o mesmo tamanho dos pais”.
Então, usando o “amor” como justificativa, “(…) antes mesmo do sol cobrir todo o Vale dos Absurdos, Jairo Santos deitava a mulher sobre o ‘estirador’, um instrumento que inventou para alongar a estatura do corpo, embora um aparelho similar tenha estado em uso durante toda a Idade Média, sobretudo por padres inquisidores que o utilizavam para extrair confissões e que ficara conhecido com a alcunha de ‘cavalete’”.
Pawlo Cidade, pseudônimo do escritor João Paulo Couto Santos, prossegue com firmeza no uso dos ingredientes comuns a essa literatura chamada de fantástica: a família que “conversa animadamente” com os animais do pasto; a família que cria gatos selvagens em coleiras para torná-los mais mansos; os Santos, que devem aprender a viver como raposas e corujas que se escondem em buracos no chão, pois “(…) lá será o destino de toda vida na face da Terra.”, já que, segundo o velho Jairo Santos, “um dia o sol cresceria tanto que queimaria quase toda a terra e só depois de tanto crescer ele explodiria. ‘Toda a luz se tornará em trevas para sempre’”.
Ainda que eu destaque o uso de tais elementos, que vão muito além da família Santos no decorrer das páginas, devo lembrar que essa escolha não restringe as ideias do autor. Ou seja: não existe cópia, apenas inspirações certamente assumidas (a citação do livro Incidente em Antares, por exemplo), e outras talvez mais sutis (o cheiro dos grãos de mamona num copo de metal me lembrou das amêndoas amargas que deram fim às “inquietações da memória” de um tal refugiado antilhano; mas isso é pura especulação de minha parte). Para fechar a questão, digo que nada é deliberado nem confuso, apesar de nos parecer muitas vezes que a cronologia e o enredo se perdem.
A verdade é que Pawlo também joga com isso, e joga bem. Ele nos traz novos personagens, novas vidas que se mostram ao longo da obra. Em seu romance, o tempo pode dar um salto entre um capítulo e o outro (anos, às vezes décadas), mas essa escolha tem o efeito de nos manter interessados em seus desfechos, na promessa de algo mais.
E essa diversidade de personagens, de casos, de tempos que saltam e de vidas distintas, acaba sendo a grandeza do livro. E o enredo ganha com isso.
Ressurreição e Bíblia
Deocleciano, um velho que após perder o grande amor de sua vida está “determinado a morrer”, sem conseguir finalizar o ato, é o primeiro a perceber que a morte talvez tenha abandonado o povoado. E para um livro que tem como epígrafe um trecho da Bíblia (“’E naqueles dias os homens buscarão a morte, e não a acharão; e desejarão morrer, e a morte fugirá deles’”), não à toa do famoso Apocalipse (que também significa Revelação), é interessante analisar o romance na tentativa de ligar os pontos. Tentar associar uma ideia bíblica com a vida da localidade em si.
O livro sagrado (ao menos para algumas religiões) vez por outra é citado na história, seja pelos personagens ou mesmo pelo autor-narrador. Quando Deocleciano grita na página 35 que “A morte morreu, Céo!”, ou mesmo quando ele escuta sua amiga, Céo, repetir o mesmo trecho da epígrafe, “(…) meio absorta, olhando através da janela, os malditos redemoinhos que se formavam no Vale dos Absurdos”, podemos inferir a ideia de Pawlo em colocar na obra uma ideia comum, mas bastante aceitável e apropriada: a religiosidade característica em diversas regiões do país. Na literatura brasileira os exemplos são fartos. E, para não ficar no vazio, cito Dias Gomes e Hermilo B. Filho, entre tantos outros.
O cotidiano do povoado merece destaque, visto que é o arcabouço do romance, obviamente. Todavia, aqui a gente também enxerga o fabuloso na medida certa, no detalhe e no comezinho, não somente no evento que pode mudar de alguma forma o destino da trama.
Além disso, suspeito que nesse fabuloso “miúdo” exista um pouco de cinematográfico, do tipo cinema-que-devaneia-e-amplia: parte do trecho citado acima (“malditos redemoinhos que se formavam no Vale dos Absurdos”) deve me ajudar a explicar a ideia, na medida em que surge como algo trivial. Como se “malditos redemoinhos” não fossem acontecimentos tão incomuns para aquela gente.
Do Conselho de Anciãos que “(…) se reunia para tratar dos assuntos mais complexos do povoado.”, podendo ser convocado por qualquer cidadão, à uma rotina que envolvia um Deocleciano que às “(…) 15h, lia sobre os grandes filósofos da humanidade: Sócrates, Descartes, Aristóteles, Platão; às 16h, compartilhava o que havia lido com os jovens que o esperavam na praça do Chafariz, induzindo-os à busca de si mesmos e à solução dos problemas mais simples da humanidade, sempre com base na filosofia e nos seus questionamentos pertinentes (…)”, o leitor vai construindo em sua mente Rio das Almas. Suas ruas, seus habitantes, os acontecimentos e a magia que cabe dentro dele. Assim, esse mesmo leitor vai se tornando algo além de um mero espectador. Seu olhar vai se igualando em essência aos dos moradores do lugar.
Também a forma escolhida pelo escritor para pôr no livro tamanha variedade de situações se mostra acertada, na proporção em que ele resolve os dilemas propostos, e faz as devidas ligações ao longo do texto: a falsa impressão de que, em parte da obra, estamos diante de cenas descontinuadas, não impede de vermos a beleza do conjunto (o capítulo 17 pode ser um bom exemplo, e não só pela questão da cronologia, mas pela inventividade). No final das contas, esse método valoriza o trabalho, na justaposição de situações curiosas, belíssimas, engraçadas, incríveis e literárias, no sentido lato da palavra.
Usando como base o Realismo Fantástico, Cidade nos agrada com os mais diferentes acontecimentos, tendo como pano de fundo aquilo que chamamos realidade. Mas que podem muito bem subverter essa mesma realidade amuada e sem graça, extraindo dela o encantamento, o pomposo, a picardia e o mundano. Tudo que esperamos para combater essa vida que insiste num cinza duradouro e sufocante.
O protagonista que interessa: o ser humano
É um erro pensar, todavia, que Rio das Almas não passa de um amontoado de histórias absurdas, com personagens marcantes e loucuras no atacado e no varejo. Ainda que Pawlo tenha optado por uma narrativa não linear em parte do livro – como já dito e recontado acima, às vezes um detalhe só é explicado alguns capítulos depois (vide o momento em que Chico Rola ressuscita “sem mastro e sem bandeira”, fato explicado várias páginas depois) -, o que prevalece mesmo é a história do humano em si. O verdadeiro eixo de tudo. Para o autor, o que importa é o que cada indivíduo sente e como ele age diante do mundo que se apresenta, ainda que esse mundo seja do tipo que acolhe, sem sustos, uma Mulher Pisadeira que esmagava o peito das pessoas que dormiam de barriga cheia.
Rio das Almas, povoado, é uma potente metáfora sobre as tais idiossincrasias do ser humano. Tornando-se uma espécie de síntese criativa e instigante que coloca o homem no protagonismo, à frente e acima.
Em Rio das Almas, livro, o que salta aos olhos de verdade são as pessoas. Os amores, as amizades, as crenças e os rancores. O que releva nas 304 páginas são as fronteiras e as nuances. As buscas e as perdas. Tudo bem estruturado num cenário fascinante, que não confunde o leitor com enganações.
Não é a ressurreição ocorrida na história que se destaca no final das contas, mas os motivos e as causas da morte que não acontece. Da traição nunca perdoada, à velhice que deixa o Chico Rola impotente (“deixou de ser cavalo para ser égua”), passando pela dor da viuvez, onde Deocleciano vê a interrupção dolorosa de uma rotina em que ele “(…) às 17h, voltava correndo para casa, pegava a esposa, e regressava outra vez para a praça, onde podiam contemplar, às 17h45, carinhosamente abraçados, o pôr do sol, a hora mais espetacular do povoado, em que o céu tingia-se de tons azul-violáceos, rosa choque, roxo, tons alaranjados e uma infinidade de tons vermelhos que se distribuíam em degradê pelo Monte Marrom.”, o que enxergamos é o personagem no centro de tudo.
A injustiça social causada pelo lucro e pela ganância também é assunto presente no livro, tendo como mote a existência da Betânia and San Francisco Railway Company, empresa de mineração de carvão. Desse modo, além de conter os tais elementos fantásticos (forma, labor e estilo), o livro traz também a lembrança de quanto os humanos são absorvidos e devorados pela ganância, pela desumanização e pela fome de lucro (realidade e conteúdo).
A voz narrativa e as escolhas
Um ponto que talvez incomode a quem vai ler a obra é o jeitão por vezes empolado com que o artista prossegue no romance. Mesmo em cenas engraçadas, provavelmente ao se deparar com trechos tais como “(…) inalar, involuntariamente, os odores nada agradáveis de suas flatulências” o leitor vai achar algo exagerado.
Outros exemplos reforçam tal impressão: “chorou copiosamente”; “Cria nisso. Como creu naquela noite”; “nitidamente absorto”; “assaz eufóricos”; “desmesuradamente perplexos”, entre outros.
Todavia, diante do que li (a obra em seu conjunto), consigo entrar em defesa do Cidade com alguns argumentos que talvez consigam explicar o caso: para mim, é outra voz que nos narra Rio das Almas; além disso, Pawlo trabalha no livro com um tipo de narrador que conversa diretamente com quem o lê.
Sobre a primeira hipótese, posso resumir da seguinte forma: a voz do livro pode não ser a do João Paulo ou mesmo a do Pawlo Cidade. Mas a de alguém criado por ele (ou eles) para tal.
Deixando de lado a questão do pseudônimo para não confundir, e sendo o autor do livro um dramaturgo, acredito na capacidade dele em “dar voz” a outros – como um “item de série”, digamos, para um bom homem de teatro. Com isso, e considerando sua experiência, acho que Cidade optou por criar uma persona que deve falar desse jeito “assaz” presunçoso.
Um narrador que precisa explicar o que é bronha (“o ato de se masturbar”), por exemplo, é o mesmo que pode nos deixar um pouco confusos quando fala sobre os telômeros que não conseguem mais se dividir (outros trechos me fazem suspeitar que a voz do livro seria a de um médico aposentado, meio sábio, bom de copo e de prato, chegado numa picardia e um grande observador; mas isso é especulação minha, um jogo interessante para o Gustavo leitor).
Sobre a voz ser a do tipo narrador que conversa com o leitor, diferentes momentos podem comprovar essa ideia. Na medida em que ele opina e compartilha experiências.
Como exemplo, cito os trechos a seguir (com grifos meus):
“Se fôssemos enumerar as coisas absurdas (e incríveis!) que povoavam o Vale, como o fato de uma vez por ano o sol brilhar em plena meia-noite, seria preciso escrever outro livro.”
“Vamos ver se consigo explicar. Quando completou sete décadas de vida, o filósofo professor leigo e funcionário da Estação de Tratamento de Água de Rio das Almas (…)”
Enfim, Rio das Almas é um livro que merece ser lido. Com atenção e prazer, se permitindo entrar no jogo proposto por seu criador.
E entre coveiros gêmeos bivitelinos de pais diferentes, burros alados, olhos violetas e assombrações, acredito valer muito a pena entrar, sim, no jogo. Na deliciosa leitura desse mundo-povoado. Lá, onde bar se chama taverna. E onde “A fragrância das gardênias só era abandonada quando as flores da Praça da Matriz desabrochavam com grande intensidade e magnificência”. Um lugar que eu gostaria muito de passar uns dias. Ou mesmo passar uma vida inteira, quem sabe.
Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), entre outros.