Marize Castro
[…]
De aço e seixos são meus lábios.
Misturo-os com os lábios do homem-mulher
e da mulher-homem
Giramos na mesma rotação até rompermos
o que de mais precioso possuímos
Então a miséria nos suspende
O amor se espalha em nosso sangue
e segreda: não se imobilizem
Daí a luz entra e já somos outros:
subterrâneos para os subterrâneos
translúcidos para a ternura
A coragem se mostra entre plátanos e feras
(na estranheza a bondade ancora)
[…]
A verdade é mesmo só um grão nunca visto?
[…]
Sonhei com o céu azul em meu ombro
e nele o meu rei estava
Suas árvores e seus segredos agora são meus
Tudo dele irradia e sobrevive em mim
Aonde ele foi?
Aonde irei?
Nenhum e todo lugar te espera
diz o meu coração enquanto se entrega
ao enigma mais distante
[…]
À luz de spots pavões esperam, o desejo lateja
Seivas de dríades deslocam-se
Na ilha de Circe, redefino-me
Em páginas secretas escrevo o que me golpeia:
terra e céu clareiam quando me esqueço
terra e céu agonizam quando te esqueço
Ouço os olhos do silêncio:
aquela mulher te ama porque te quer míssil
aquele homem te ama porque te quer pântano
Mãos imperfeitas libertam sépalas
Mulheres mancas e macias espraiam-se em areias remotas
Elas sabem: nada terá tido lugar senão o lugar
Em amor, território primeiro e último, vigio a morte
Ergo-me queimada entre campânulas
e restos de êxtase trazem-me de volta
(aprendi a deixar nascer as coisas)
[…]
Depois procurar o céu e exigir uma saída
para este país de sol e morte
Eis que com a tempestade a delicadeza surge
e guarda em cântaros de aço palavras como
pélago, guirlanda, alabastro
À noite lembro que a poeta Liu Xia
continua presa e seu homem amado está morto
lembro que Marielle está morta
e permanece sendo assassinada
– nove balas não são suficientes –
Monstros nos gabinetes ordenam:
destruam o êxtase e a verdade
São eles os inimigos, gritam os atrozes
[…]
À margem e sempre abismada, pergunto:
quem ouve e beija minha alma neste tempo
de enorme gravidade?
o garoto que no trânsito se banha em cristais?
a amiga que no alto da colina sorri, estratosférica?
o menino despido na casa que alcança o céu?
a outra miga que se afoga no mar?
o rapaz trans que me oferta o sexo?
Busco a lanterna mágica de Tsvetáieva
Aquela que amou loucamente as palavras
seu aspecto
seu som
sua inconstância
sua imutabilidade
Sim e sim: amar com o mesmo amor
– nossa bênção e nosso anátema –
(tudo suave e ácido, cintilação e sombra)
Em mútuo desamparo, amantes sussurram:
…………………………………………Tânatos é puro
Um claustro se abre
e línguas de argila e ardor são arremessadas
na superfície do mundo
Seu coração em minha boca, minha boca em seu coração:
sorvo e ascendo
Marize Castro (Natal-RN, 1962) é autora dos livros de poemas Marrons Crepons Marfins (1984); Rito (1993); poço. festim. mosaico (1996); Esperado ouro (2005); Lábios-espelhos (2009); Habitar teu nome (2011) e A mesma fome (2016). É graduada em Jornalismo, tem mestrado em Educação e doutorado em Estudos da Linguagem. Editou nos anos 1980 o jornal O Galo e, nos anos 1990, a revista Odisseia. Edita seus livros por sua própria editora, a Una, que define como deliciosa e desamparada viagem.