Por Guilherme Preger
Notturno. Itália/França/Alemanha. 2020.
Notturno (2020), de Gianfranco Rosi, é uma obra não-ficcional que aborda a guerra da Síria. O filme foi montado pelo diretor ítalo-americano com material recolhido durante três anos de gravação na região do Curdistão entre Turquia, Iraque, Líbano e Síria. A obra foi apresentada no festival de Veneza de 2020 e disponibilizada pela plataforma de vídeo sob demanda MUBI recentemente.
O tema de Notturno é o sofrimento das populações civis com o desastre humanitário da guerra da Síria, sobretudo em relação à ação bárbara e genocida do grupo extremista Estado Islâmico (conhecido pelo acrônimo ISIS). Mas também aborda os atingidos pelo extermínio étnico do governo de Saddam Hussein, que precedeu a guerra da Síria, sobretudo em relação à população curda, mas não apenas ela.
No entanto, Notturno não é realmente um documentário, como frisa seu diretor na entrevista com o diretor mexicano Alejandro Iñarritu que acompanha a versão do filme na plataforma MUBI. O diretor faz questão de dizer que não documenta, mas filma. Em boa parte de seu testemunho no making off ele enfatiza sua opção pelo registro direto da imagem contra a ideia de que faz um documentário.
E, de fato, não há roteiro aparente nesse filme. Apenas as cartelas de abertura nos situam no conflito que acontece numa região outrora ocupada pelo império Otomano e que, após a sua queda, passou por diversas guerras e conflitos de reclamação territorial. O povo Curdo, de imensa população, até hoje não tem um estado nacional, sendo uma região dividida entre pelo menos 5 países (Irã, Iraque, Turquia, Síria e Líbano). No restante do filme, no entanto, sem qualquer tipo de narração, somos apresentados a uma montagem disparatada de cenas cujo contexto e localização não conhecemos. Temos que nos localizar apenas pelos testemunhos (nos quais se incluem os de crianças órfãs). A deslocalização faz com que o Curdistão seja uma terra sem geografia e fronteiras e Notturno um filme fronteiriço, no qual o deslocamento é seu motivo cinematográfico principal.
A dificuldade do espectador de se localizar nas cenas vem justamente desse aspecto fronteiriço que formalmente (in)determina o filme. Pois a obra explora também a fronteira entre a ficção e a não ficção. Somos levados a refletir sobre a função da perspectiva nesse caso. No cinema ficcional, sobretudo nas produções mais comerciais, a câmera fica dissimulada como se não existisse. O que aparece na tela quer se impor como se não houvesse sido filmado, por mais inacreditável que apareça. Num certo sentido, a câmera é a própria tela e além dela não existe mais realidade. O espectador está diante da tela como se também ele não existisse. A câmera do cinema comercial aponta para o espectador a sua metralhadora de 24 ou 30 imagens por segundo para atingir sua sensibilidade. Mas no cinema não ficcional, a câmera invade a cena e é uma parte dela. A câmera é uma intrusa e traz junto com ela o olhar do espectador. É a técnica do “kino-eye”, da câmera-olho de Dziga Vertov, na qual a câmera não focaliza objetos, mas é ela mesma objetiva. Ela participa da cena, transformando-a. Por intrusa, a câmera deforma parte da cena, mas sabemos que além dela há mais imagem, imagens do mundo, que é mais “defletido” do que “refletido” pela câmera-objetiva.
Nas primeiras cenas de Notturno, acompanhamos um guarda-guerrilheiro por uma estrada em sua motocicleta. Depois ele entra num bote e vai para o meio de um lago. Anoitece e torres de petróleo no horizonte jorram fogo. O guarda age como se a câmera não estivesse ali próxima, em outro bote. Esse modo de operar se repete ao longo de todo o filme quando os não atores são filmados em suas atividades diárias, sem se importar com a câmera que está próxima deles os enfocando. Há uma espécie de pacto ficcional entre o diretor Giafranco Rosi e suas personagens. É assim que ele pode entrar na intimidade das guerrilheiras curdas, verdadeiras encarnações das amazonas guerreiras, não só nas suas atividades de vigilância constante, mas também na intimidade do dormitório. Esse pacto ficcional entre diretor e retratados mostra que esta obra recorta também ela uma fronteira, desta vez entre a ficção e a não ficção. É por isso que Notturno não é um documentário. Ele é, antes de tudo, como no cinema de Dziga Vertov, uma montagem de cenas. É também a prova que, da realidade mais crua e nua, a ficção pode se instalar não como uma obra de arte estética, mas como uma operação de dar sentido ao que não tem sentido, de organizar o absurdo da guerra civil, do genocídio, da tortura e do sofrimento extremo e desumano.
Por isso a gravação no sanatório psiquiátrico de Bagdá é tão importante. Lá há o registro da encenação de uma peça teatral entre os internos sobre a história do Oriente Médio. Esta peça no filme de Gianfranco é um verdadeiro “mise en abyme”, uma ficção dentro da ficção, mas que traz a verdade mais real. A terapia cênica é uma oportunidade aos internos do sanatório de se situarem em meio ao caos e à desordem extremos e é também a forma com que os espectadores de Notturno podem se situar na montagem aparentemente desconexa. A ficção é, nesse sentido, mais real do que a realidade, cuja destruição provoca traumas psíquicos e dissonâncias cognitivas.
Entre as cenas iniciais de Notturno, há duas bem contrastantes. Num primeiro momento, soldados, nas luzes iniciais da aurora, correm em círculo em torno de um pátio no meio de um quartel militar. A câmera está parada e registra a circulação em blocos dos soldados que a cada passada de seu treinamento gritam pausadamente “uh”, como um grito de guerra e de esforço. A circulação precisa como um relógio da marcha não se interrompe, como num circuito infernal. A seguir, o filme de Gianfranco acompanha mães islâmicas numa visita a um presídio no Iraque onde Saddam Hussein colocava seus inimigos para torturá-los. Saberemos que aquelas são mulheres que perderam seus filhos assassinados naquele presídio. Elas circulam aleatoriamente nas alas do presídio abandonado e se concentram afinal numa das salas onde ficou preso o filho de uma delas. Lá entoam um canto fúnebre. A cena nos emociona para o que tem de universal: a dor inconsolável das mães que perderam seus filhos numa guerra injusta e absurda. O que essas duas cenas têm de contrastante entre os soldados que se preparam para a guerra e as mães que lamentam suas mortes e desastres é a oposição entre o circuito infernal dos primeiros e a dança fúnebre das mães. Ou seja, a oposição entre a repetição e o irreparável. Assim, o título Notturno nos vem com sua carga metafórica concreta: não apenas a noite sombria da dor, mas também a exigência de um not-turno, a recusa do retorno ao conflito absurdo.
O filósofo Walter Benjamin dizia que a fotografia torna bela até a fome e a guerra. Não devemos ler isso como uma crítica necessariamente negativa do filósofo alemão que, como sabemos, era um amante da arte fotográfica. Notturno, de Gianfranco Rosi, também faz usos de filtros de cores tarkovskianos para tornar sublimes as paisagens desoladas e devastadas do Oriente Médio. Em vez de embelezar a guerra e o sofrimento, ou de dar sentido ao absurdo, a sublimidade das imagens opõe a vastidão cromática da paisagem à pequenez da irracionalidade humana. É um filme sobre a intimidade daqueles que sofrem a guerra, que fizeram um pacto ficcional com o diretor para permitir que a câmera percorra as linhas humanas da História. Essa História tem algo de absurdo, mas não de aleatório. Ela decorreu de escolhas e ações humanas. Suas consequências dramáticas também são humanas. A paisagem física é assim retratada como um horizonte de fuga do absurdo. A amplidão do horizonte é também a amplitude das alternativas humanas e das possibilidades da História, que deve se libertar dos seus ciclos infernais de repetição para enveredar por caminhos múltiplos de devires outros.
Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.