Dedos de Prosa II

Alessandra Barcelar

 

Ilustração: Marjorie Duarte

 

ABUSO

 

– Tire a roupa, sussurrou.

– Não, papai, por favor, não.

– Disse que tire. Agora!

– Papai, não quero, não me faça…

– Faça isso, tire. É uma ordem.

Envergonhada e com lágrimas nos olhos a menina livrou-se da roupa lentamente.

O homem ao ver a pele nua da filha, não pode fazer outra coisa que chorar. Sentiu-se miserável, impotente, desgraçado. Abraçou a filha e beijou-lhe a testa.

– Devemos denunciar a mamãe – disse o homem acariciando a pele da filha, enquanto suas lágrimas caíam sobre as queimaduras de cigarro em sua pele.

 

 

 

***

 

 

 

ELA

 

Observo uma foto em que aparecemos os dois.

Ela está feliz, me abraçando e sorrindo para a câmera.

Logo viro a cabeça e vejo seu cadáver no chão. O sangue segue escoando de sua cabeça. Penso que deixou de me amar, e que, de certo modo, sou culpado pelo que acaba de acontecer.

Me aproximo dela, gemendo de tristeza, me encosto a seu lado.

Depois de um tempo os vizinhos derrubaram a porta, me jogam de lado e apontam o revólver em suas mãos.

E enquanto tudo isso acontece, eu só posso latir e abanar o rabo com medo.

 

 

 

***

 

 

 

NOCTÂMBULOS

 

Os animais noturnos não se importam com a cor da lua, se ela está cheia ou é um quarto minguante, eles só procuram os efeitos de um raio de luz para mitigar seu pensamento.

Andam insatisfeitos à caça de sonhos e se infiltram nos aromas salgados das almas que parecem solitárias.

Com as letras não só o seu nome existe, também se escuta sua voz.

 

 

 

***

 

 

ALUCINAÇÃO

 

– Esquizofrenia – disse o psiquiatra – Na verdade o caso mais célebre dessa clínica.

– Se refere à essa criança? Parece-me tão inocente.

– Creia-me, não é! Assassinou a avó brutalmente com um machado.

– Sério? Ao menos disse o por quê?

– Bem, repetiu várias vezes que sua avó na realidade, era um lobo disfarçado.

 

 

 

***

 

 

 

UM HOTEL NUM QUADRO DE HOPPER

 

O amor é um hotel no meio da tempestade, que apagou as luzes assim que me viu se aproximando. A realidade se disfarçou de ficção, mas daqui posso ver o fechamento de seu traje. A felicidade me toca, mas sempre coloca luvas.

 

 

 

***

 

 

 

A SACOLA

 

A morte bateu na porta e a pequena Giovanna  foi quem abriu. -Onde está tua mãe? Perguntou a Morte, em seu vestido preto, seus cabelos ruivos e suas pupilas de fogo cinza.

A garota já a conhecia. Ela a vira há dois meses, no dia em que sua avó não se levantou mais. “Siga-me”, disse a pequena Giovanna.

Elas caminharam até o final do corredor e chegaram a uma porta, que a garota abriu para demonstrar boas maneiras. O interior estava completamente escuro. As cortinas fechadas e a janela trancada roubaram as cores da sala. “Obrigada”, disse a morte em sua voz rouca e sensual. Ela entrou e saiu um minuto depois, com um coração em uma sacola de pano.

Quando a morte foi embora, a pequena Giovanna foi até a cozinha, chegando ao exato momento em que uma mulher com o rosto machucado e ferido se jogou de uma cadeira. No entanto, a corda em seu pescoço, por algum motivo inexplicável, quebrou como se fosse borracha. “Mãe”, a menininha murmurou e a mulher virou-se imediatamente. Ela chorou envergonhada e abraçou sua filha como nunca antes. “Mamãe, lê um livro pra mim?” “Eu não posso Giovanna, eu devo cozinhar para quando seu pai acordar.” “Eu não me preocuparia com isso.” Eu não acho que ele se levanta – a garotinha disse antes de pegar um livro.

 

Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, atua na área de Economia da Saúde. Publicou contos em revistas literárias do Brasil, Portugal, Argentina e Alemanha. Participou em 2019 como jurada do prêmio VIP de Literatura (Categoria Contos); colaborou na coletânea Mitos Modernos I, que recebeu o prêmio Le Blanc de Literatura e Arte Sequencial, como melhor Antologia de 2018. Atualmente é organizadora de uma coletânea de contos sobre realismo mágico.

 

 

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2 Comentários

  1. São pequenas porradas que ela dá. Excelente

  2. Obrigada pela leitura!

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