Dedos de Prosa I

Fernanda Paz

 

Foto: Lu Brito

 

Moro numa cidade de bonecos

 

Moro numa cidade de bonecos.

Nem sei como isso começou, sei que sempre gostei muito de bonecas.

É como se eu tivesse acordado de repente nesse lugar, ou no mesmo lugar de antes, e as pessoas é que foram substituídas. Sabe quando a gente para e tenta lembrar o que aconteceu do nosso nascimento até cerca de uns três ou cinco anos de idade? Parece que simplesmente a gente acordou de repente. É isso que sinto agora.

As moradias são do tamanho das humanas, com móveis de verdade. Só que estes são programados. A TV passa quase o dia inteiro ligada. Existem coisinhas parecidas com trilhos dentro da casa que fazem os bonecos se mover por ali bem como na rua.

Na casa que eu vivo, existem dois bonecos. Um feminino e outro masculino. De manhãzinha o boneco se levanta e se direciona para fora de casa, e passa o dia por lá mesmo. Acredito que seja uma espécie de trabalho, já que esporadicamente ele chega com coisas novas, as coisas que vemos na TV. A boneca vai para a cozinha. Eu fico por ali observando o movimento. Também aproveito pra ler. Há muitos livros, mas não são tocados. Acho que não existe ainda mecanismo de leitura nesses bonecos, apesar de se alimentarem e fazerem outras coisas dignas de humano.

Sinto-me estranha. Eles não conversam, nada de sentimento, nada de afeto. Sinto falta dos afagos de família, de beijos de mãe, cócegas no sofá, risos pela casa. Eles se reúnem sempre à noite, em frente à televisão. Em algumas ocasiões me põem nos trilhos e sou obrigada a fazer certas coisas e ir a lugares dos quais não gosto. É complicado porque os meus pés não se adequam nunca e doem. Quando vou a esses lugares realizo trabalho chato. Lá não posso cantar que é algo que gosto bastante.

Acho que meu canto é de certa forma inútil pelo fato de não conseguir enxergar nenhum tipo de vibração por parte dos bonecos. Deduzo que eles não apreciam música. O rádio nunca é ligado, só por mim. Mas a música que existe na cidade dos bonecos é de uma péssima qualidade: rimas pobres, ritmos chatos, melodia irritante aos ouvidos. Então, logo desligo. E canto.

Lembro-me da criatividade humana quanto à música e começo a cantá-las. Meu coração se entristece um pouco por não poder mais tê-las. Se fosse boa o suficiente eu comporia, mas apenas canto. Há dificuldades de relacionamento entre mim e os instrumentos musicais. Contudo, do que acontece na cidade dos bonecos, esse é o fato que mais me entristece.

Vivo aqui e espero o dia em que os bonecos se transformem em seres humanos para que tudo se torne completo. Nas minhas reflexões penso se isso há de ser um tipo de praga que contamina o mundo aos pouco. Penso no dia em que eu serei contaminada e me tornarei uma boneca. Choro, depois acalmo, acreditando que se me transformar certamente entenderei a lógica deles e terei felicidade em viver de tal modo. Não há espaço aos que no mundo estão diferentes.

 

 

 

***

 

 

 

Envelope

 

Começamos a namorar.

Enlouquecida, deixei que tudo acontecesse muito rápido.

Primeiro, se foram os olhos.

Ele me arrancou um de cada vez. Comecei a poder ver menos, devagar fui me acostumando, e quando me arrancou o segundo eu já não senti tanta dificuldade de adequação. Não pude mais ver nem mesmo a ele mesmo, o que fazia, com quem convivia.

Mas eu o amava e deixei.

Da outra vez foi minha boca. Deixei de opinar. Na hora não vi necessidade porque certas coisas que saíam dela visavam nosso próprio bem-estar.

Mas eu o amava, e podia aprender a viver sem falar.

Arrancou-me um dos ouvidos. Poucas coisas eu podia ouvir dele antes de me arrancar o outro. Do que conversava com os amigos, do que lhe diziam as outras garotas.

Mas eu o amava e não me importei.

Quando me arrancou um braço, ainda consegui dirigir por um tempo. Eu queria estar nos lugares. Mas sem os dois braços, passei a ficar mais tempo em casa. Sequer podia fazer o que eu mais gostava: escrever.

Mas eu o amava e acreditei que faria bem.

Um dia me arrancou as pernas, ambas ao mesmo tempo.

Nosso relacionamento se resumiu a cama, pois era o lugar onde eu conseguia passar todo o tempo, sem queixas. Confesso que foi difícil essa vida.

Mas eu o amava, e me contentei com suas visitas e frases de amor.

Muito tempo de cama me fazia ter certas reflexões.

Quando ele apareceu para mais uma visita de amor, eu estava pronta.

Entreguei-lhe um envelope numa pulsão risonha.

Ele abriu e pôde ver.

Lá dentro estava todo o meu amor. Eu o estava devolvendo em troca de mim.

Com dificuldade ele aceitou, e me devolveu tudo de uma vez só: olhos, pernas, braços, ouvidos.

Agora ali estava eu, com tudo que precisaria para recomeçar.

E ali estava ele, com o meu e o seu amor nas mãos.

 

Fernanda Paz é Artista Visual e Especialista em educação infantil pela UFPI. Professora, escritora e produtora no FragmentadoLab. Estudou Teatro e participou de curtas metragens, performances e montagens teatrais. Tem dois livros publicados “O Buraco e Outras Histórias”(Multifoco, RJ) e “Olhos de Vidro”(Quimera, PI), participou de antologias de contos e poemas e publicações em revistas virtuais.

 

 

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