Janela Poética V

Rafael de Oliveira Fernandes

 

Foto: Lu Brito

 

As horas

 

Uma trilha de formigas
sobe a parede
parecendo um ponteiro.
Sai de trás de um relógio
e cada uma
parece um segundo
em direção ao poço do prédio
onde só há o esquecimento.
Vão fugindo tão devagar
que é possível fechar a janela
para que o tempo
não escape do quarto
Para que as formigas deem voltas
e mais voltas ao redor da gente
como se o tempo parasse.
Ou para que retornem ao relógio
como se o tempo retrocedesse.
Voltasse ao ponto
em que instantes antes
uma formiga andava pelo chão
e você, numa cena linda
com um copo de plástico
retirou-a dali
colocando-a nas plantas
para que aquele pequeno segundo
jamais
se perdesse

 

 

 

***

 

 

 

Cena

 

Ver você através da janela
como se os limpadores de para-brisa
fossem os pincéis numa cena
que vai virando passado
à medida em que o ônibus
se aproxima.
Como uma pintura que vemos na sala
e imaginamos apenas
os movimentos do pincel
atrás das cores.
Ou uma música em que imaginamos
o que fazíamos e onde estávamos
ao ouvi-la da primeira vez.
Como se no ônibus eu estivesse
com fones de ouvido
e assim que chegasse,
a cena do encontro já estivesse
em um dos seus desenhos.
E tudo que parecia acontecer
pela primeira vez
os sons, as cores, as lembranças que teria
quando chegasse
fosse algo que eu apenas recordasse
pois você já teria me mostrado
no caminho
há muito tempo

 

 

 

***

 

 

 

Viagem dentro de um quadro

 

Ela olhava pra fora
do carro como se houvesse uma pintura
que ia se fazendo aos poucos.
Então passava os dedos no vidro
como se fosse ela
que pintasse a paisagem.
Primeiro pintava as árvores, contornando-as,
ou as rosas, cujas pétalas
pareciam sair da tintura vermelha das unhas,
e um lago aparecia conforme a respiração
embaçava o vidro e ela murmurava o barulho das águas.
Depois, era a paisagem que entrava pelo vidro aberto,
na luz que coloria a pele,
no vento que trazia os cheiros das flores
e desenhava seus cabelos
como se fosse ela que estivesse dentro do quadro.
Ela parecia dormir encostada no vidro,
sonhar com a paisagem
que aos poucos se formava.
Por isso, ao atravessar um longo túnel,
a lua aparecia como um olho brilhante que investigava
tudo. E quando uma montanha na forma de
menina enrolava toda a pintura,
parecia ser ela se preparando para dormir
do outro
lado

 

 

 

***

 

 

 

Caixa de sapatos

 

Ela guardava suas fotos
numa velha caixa de sapatos.
Mas o olhar que a câmera
capturava era o olhar que
eu via todos os dias.
Aquela doçura já lhe servia
quando criança.
E as olheiras lhe serviam
à medida em que o corpo crescia.
O olhar mais lindo que eu
vi era como uma roupa
que sempre a acompanhava
e através dele eu podia imaginá-la
ao meu lado mas também
no corpo de antigamente e nos vestidos
que usava naqueles dias.
Era como um tênis
cujo número nunca mudava.
Que ela guardava numa caixa
como se aquele tênis fosse também
uma espécie de fotografia

 

Rafael de Oliveira Fernandes nasceu em São Paulo, em 1981, é autor dos livros de poesia ”Menino no Telhado” e “Cadernos de Espiral” (ed. 7letras), e dos romances “Vista Parcial do Tejo” e “Baseado em Fantasmas Reais” (ed. Patuá).

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *