Aperitivo da Palavra I

TESTEMUNHO DO LABIRINTO

 Por Sandro Ornellas

 

 

Assim na terra como no selfie (2021) é o sexto livro de poemas de Alex Simões, contando o segundo, uma plaquete com versos e fotos, e o quinto, um livro artesanal de poemas visuais criados (livro e poemas) em colaboração com outros artistas. Quem acompanha o trabalho de Alex sabe como ele tem caminhado do exercício do soneto para o verso livre, que se percebe no seu caso dever muito à prática daquele. Refiro-me ao ritmo do fraseado nos versos de Alex e, por extensão, à construção sintática, àquilo que alguém famosamente disse tratar-se da hesitação entre o som e o sentido. Pois é por aí que começo a falar desse novo livro de Alex. Da hesitação. Até porque ele, à semelhança de Trans formas são (2018), reúne sonetos, versos livres, poemetos e brincadeiras espaciais – embora em menor incidência do que naquele.

O título faz trocadilho com um famoso princípio hermético contido também no “Pai nosso” católico e, junto com a leitura de muitos poemas, deixam claro tratar-se de um livro escrito (ao menos boa parte de seus poemas) durante o período mais tenso do primeiro isolamento social na pandemia da Covid-19. Nesse período, foi comum ver pelas redes a classe média trocar o selfie em sorridentes festas e viagens turísticas pelos selfies das cantorias com vizinhos, aprendizados culinários e rotinas de isolamento. Tudo sempre acompanhado da indefectível hashtag “#ficaemcasa” – com seu tom imperativo. Hoje, um ano e meio após a deflagração do isolamento no Brasil, tudo mudou. Ou nada, talvez. Mas o livro de Alex me chega às mãos como testemunho dessa viagem. E o que leio nesse testemunho?

Leio a hesitação entre o som e o sentido dos versos nos sonetos de Alex se disseminarem por outros fraseados oracionais e certas posições do sujeito da enunciação, embora também permaneçam lá, nos sonetos. O “43”, em que o sujeito circula em casa por rotinas que sobrepõem trabalho e laser, movimento e tédio, idas e vindas: “tapioca e café todos os dias / cedo pela manhã antes da escrita / que precede a visita à toalete / para depois as redes, as notícias / e revisar e planejar e cozer / e irrigar as plantas e dar aulas / às vezes viajar às vezes não”. Há nesse e em outros poemas qualquer coisa de pacificação no sentimento do poeta diante da circularidade doméstica dos dias e afazeres durante o isolamento. Ou mesmo antes dele. Mas uma pacificação cuja respiração às vezes hesita com certa ansiedade.

A melhor imagem para figurar essa paz ansiosa vivida por muitos durante a pandemia me parece o labirinto. Há alguns deles nesse livro de Alex, mas a “Cama de gato”, misto de brincadeira e passatempo, me parece exemplar. Ainda mais como analogia criada pelo poeta para a própria poesia de quem coloca a vida em suspensão no gesto de escrever: “eu faço versos como quem / faz uma cama / de gato”. Mas não somos apenas nós que jogamos com a poesia e a cama de gato. Somos também jogados pela rede do acaso que insistimos em ignorar com o mesmo prometeísmo que disseminou o atual e outros vírus. Chamamos “cama de gato” e “poesia” nossas ferramentas lúdicas; mas, ao que não temos nome e tememos, Alex nomeia “traquitanas”: “não consigo pôr ordem na casa / porque não há nenhum sentido em pôr ordem / menos ainda em progresso. / […] / o caos não é meu, / é nosso”. Pois é mais ou menos assim que o poeta segue hesitante entre o desejo de ordem (“tapetum lucidum”, “haikai não cai”, “Soneto do isolamento social”, “no ferry”, “o amor ao mar em meio à pandemia”, “aquela a esperar”, “um poema para Oxóssi”) e o sentimento de desordem (“47”, “45”, “A educação pela pedrada”, “assim na terra como no selfie”, “o que me resta de uma casa”, “volver”, “sessão de poesia para a tropa”). Talvez por isso o título soe como uma irônica oração dirigida aos que acreditam que haja salvação, embora só vivamos como condenação.

Mas essa ironia de Alex também resvala para algo de autoironia, quando leio “daqui da torre”, onde o poeta diferencia a torre em que se encontra isolado (“vendo tudo daqui, da torre”) da clássica e classista “turris eburnea”: “não é numa turris eburnea / indiferente aos fatos”. Mas eu diria que apesar da atenção, consciência, informação, altivez e lucidez que o poeta diz ter diante dos “fatos”, há um limite para tudo isso diante da realidade concreta que é arremessada para o alto de seus olhos na torre: há um espaço intransponível e causador de “vertigem”. Uma hora, não basta “mesmo estando bem no alto / saber bem muito bem ao chão”. Esse olhar desde a torre, desde o alto, é o que testemunha o labirinto em que poeta, posto no alto, e mundo, cá embaixo, se meteram. E Alex sabe “bem muito bem” disso, já que após o túnel, segundo ele, sempre vem outro túnel: “sei bem de tatear e atravessar o túnel / até chegar a luz que me anuncia, / em forma de cegueira temporária, / que logo outro túnel há de vir, / vivendo nesse eterno entre-e-sai / do mito da caverna redivivo. / se eu fico dando voltas, é que a vida / é feita de volutas pros que ficam / com as vistas treinadas pra enxergá-las”. Ou seja: o título do livro soa também como um enigma que o poeta coloca para ele próprio tentar resolver (ou apenas se divertir, quem sabe?): estar na terra, estar no chão e estar no túnel, tanto quanto ele se sabe selfie, na torre e na lúcida luz. Testemunho da hesitação labiríntica entre o som e o sentido, ou divertimento lúdico com que o poeta ironiza a si mesmo na persona de modesto: “modéstia, / aparte o que me cabe / neste latifúndio. / dê-me um canto qualquer / do tamanho do mundo, / nem que seja este / canto / mudo, / mundo / meu”.

Onde mais percebo esse labirinto no livro de Alex é na sintaxe de alguns poemas, como em “não há mal”, que lembra qualquer coisa da tópica do “desconcerto do mundo”, por ser um ajuste de contas com a moral – antes, moral em desconcerto; cá, moral como acerto de contas. Escreve Alex: “não há mal / nenhum em desejar / o mal a quem / mal desejou / e o já realizou / o mal a quem / se mal lhe fez / foi tão somente / o de encarnar o mal / […]”. Nesse jogo moral de soma zero entre ação e reação, a terra e o selfie, a tela e o mundo, o eu e o outro se fundem na mesma oração de Alex Simões. Oração maldita.

Sim, há qualquer coisa de maldição neste livro de Alex. Mesmo que a contrapelo. Justamente por isso. Como todo maldito, Alex se contradiz em grande parte de Assim na terra como no selfie. Não de modo evidente e convencional. Não basta ironizar Baudelaire, Drummond e Cabral para ser um maldito contemporâneo. Não basta posar de rebelde insubmisso para ser um maldito contemporâneo. Não basta tacar pedras para ser um maldito contemporâneo (a “lacração” tornou essa “maldição” também convencional). Não bastam muitas outras coisas que Alex diz e faz em seu último livro. É preciso se contradizer. E poesia pode ser tudo, principalmente escapar do controle de qualquer que venha a ser dita: poeta só vale essa designação se for contraditório contra a sua própria vontade. Talvez, nesse livro, com uma única exceção (“aí peguei meu rumo na exceção”, escreve ele em “o amo ao mar em meio à pandemia”), que não é o mar – mas a mãe, no belíssimo soneto “44”, que se fecha lindamente com “minha vida é um baile entre seus braços”.

Os braços da mãe são o que há de mais preciso nesse livro de hesitações labirínticas de Alex Simões. Quase como o contraponto inicial ao anúncio de que “poesia / para quem / precisa / de coisas sem precisão”: o que se realizará ao longo de todo o livro e que ao fim é a enunciação possível de Alex, seu testemunho poético, o mais fiel que pode às incertezas que hoje estão arremessadas à nossa cara (para quem quiser ver). Nesse livro, Alex abre a porta do labirinto, entra nele e joga fora (ou perde intencionalmente) a chave para escrever poemas por seus corredores sem saída. E sem precisão.

 

Sandro Ornellas é poeta, escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Bahia. Autor de Em obras (poesia, Editora Cousa, 2019), Linhas escritas, corpos sujeitos (estudos, Editora LiberArs, 2015), dentre outros.

 

 

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