Clarissa Macedo
Rejeição
Teu olhar ginecológico
habita o meu aquário
de usuras e medos.
Profissional, asséptico e vidrado
o deslocar dos teus olhos
ofende o meu útero,
cansado da espera.
Enquanto me curo da tua ausência
da tua face clínica e distante,
que jamais arranca o chamado do meu apelo,
bordo a falsa flor,
laureada de armadilha,
clandestina
como a agulha que não soube usar
e que espetei na casa mais alta do teu coração.
***
Surpresa
Não fui a garota que todos esperavam
[porque a mim nada foi creditado]
— “Será igual ao pai”, diziam
[aquele que me foi(-se) tirado].
Não fui a boa menina,
mas uma paisagem caricaturada:
por fora, o avesso, a penúria, uma linguagem muda
por dentro, um cacto de selênio e violência.
(Uma poesia autoafirmativa como esta não pode valer a pena).
Uma menina, inesperada;
uma mulher, horizonte irrecuperável.
***
Endereço
Minha casa é uma ilha
Um mar que secou há tanto
Onde os pássaros bebem a bile dos meus sonhos.
***
Cenáculo
para Lílian Almeida
Ao pé das Oliveiras,
um alaúde queimava
e ele via as cordas.
Sob a árvore do deserto,
uma lágrima de pudor
e a fuga ao coração do incerto.
Judas, o mais amado,
sem prata, um sopro,
um engano à mercê
do medo –
do Senhor, um olho.
***
Perpétuo
Uma encosta
um leme de celas
que sobrevive
à interrupção do tempo.
Um salário de medos
veste a carapaça,
tigre de oito metros.
No infinito,
um relógio esquivo permanece.
Na intermitência,
o cortejo dos solos que deixaram
dos deuses que temeram.
***
Espículo
Onde eu estava?
Quem era quando, desavisada,
olhava de longe o percurso dos anos?
Todos sabem da morte,
e dizem dela com intimidade.
Hoje eu a topo de frente,
como um cão olha a tarde
como um pássaro que, sísmico,
pousa nas remotas asas.
***
Do abrupto
Molhar as plantas
Comprar sabão
Depenar as frutas
Saudar os óculos
Amarrar sapatos
Limpar os poros
Minha mãe é morta.
Clarissa Macedo (Salvador – BA), doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, agente cultural, pesquisadora e professora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior. Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou “O trem vermelho que partiu das cinzas”, “Na pata do cavalo há sete abismos” (Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia; traduzido ao espanhol), “O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição” e “A casa mais alta do teu coração” (Prêmio Biblioteca Digital do Paraná). É a idealizadora do “Encontro de Autoras Baianas” e do “Sarau Cartografias”.