Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

Marte Um. Brasil. 2022.

 

 

Marte Um é um filme brasileiro dirigido e roteirizado por Gabriel Martins. Foi o vencedor do Festival de cinema brasileiro de Gramado de 2022, ganhando nas categorias de melhor filme de júri popular, júri oficial, direção e roteiro. A produção esteve indicada para representar o Brasil na premiação do Oscar de 2023, porém acabou cortado da seleção final. Gabriel Martins é um premiado diretor da cidade de Contagem, MG, diretor e roteirista dos excelentes Temporada (roteiro e parceria com André Novais, 2019) e No Coração do Mundo (como diretor), entre outros. Marte Um teve ampla repercussão e podemos dizer com tranquilidade que, na exclusão para a premiação do festival americano, quem saiu perdendo foi o próprio festival.

O roteiro aborda a vida de uma família de classe média baixa em Contagem. Há Wellington (vivido pelo ator Carlos Francisco), o pai de família, zelador de um condomínio de classe média alta, onde mora entre outros o ex-jogador argentino Sorín. Wellington é um ex-alcoólatra que frequenta o AAA. É torcedor apaixonado do time Cruzeiro (onde jogou Sorín) e sonha para seu filho Deivinho a carreira de jogador profissional no seu time preferido. Há Tércia (Rejane Faria), sua mulher, doméstica. Tércia fica traumatizada por ser vítima de uma pegadinha televisiva. Ela acredita que esse incidente lhe trouxe uma aura negativa que recai como infortúnio para aqueles com quem se relaciona; Há Eunice (Camilla Damião), a filha mais velha, que já tem um emprego de salário modesto numa escola e que sonha sair da casa dos pais para viver com seu súbito novo amor libertário, Joana, porém teme a reação preconceituosa de seus pais. E há finalmente o garoto Deivinho (Cícero Lucas), adolescente que se esforça no futebol para agradar seu pai, mas que sonha mesmo em participar da expedição Marte Um, projeto que pretende realizar a primeira viagem ao planeta vizinho. Deivinho é apaixonado por astrofísica e gosta de assistir pela internet os vídeos do divulgador negro Neil deGrasse Tyson.

 

Cena do filme Marte um / Foto: divulgação

 

A narrativa de Marte Um é toda tecida em torno dessa família de quatro personagens. Uma das grandes virtudes do filme é o equilíbrio de tratamento entre os quatro protagonistas. Cada um vive a sua vida de forma bastante autônoma, mas há um cruzamento complexo das expectativas e dos afetos. Assim, o sonho de Wellington em ver o filho como jogador profissional de seu time de coração se cruza contraditoriamente com o sonho do filho em estudar astrofísica. A busca de liberdade existencial e amorosa de Eunice se cruza com a luta de seu pai contra o alcoolismo. E há também uma conjugação entre os sonhos utópicos de Deivinho em participar de uma missão espacial e as suspeitas de mau agouro de Tércia, após o episódio da pegadinha.

O pano de fundo, o contexto histórico, é a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A história se passa nos meses entre a eleição e a posse presidencial. É justamente esse fato que surge como sendo de mau agouro sobre a vida dos personagens: a certeza que num regime de extrema-direita a situação dos moradores das periferias urbanas iria certamente piorar. Assim, a eleição de um presidente funesto é um sinal de azar e pesa sobre a vida de Tércia que, após a pegadinha, se acha vítima de poderes nefastos sobrenaturais. É assim que a Grande História recai sobre as pequenas estórias dos personagens. Como o poeta paraibano Augusto dos Anjos, os personagens de Marte Um também poderiam dizer que “Um urubu pousou sobre a minha sorte”. Tanto os personagens como todos os trabalhadores das regiões periféricas brasileiras tinham razões de sobra para preocuparem-se com a chegada do bolsonarismo ao poder.

 

Cena do filme Marte um / Foto: divulgação

 

Uma das curiosidades marcantes do filme é que ele foi filmado naqueles mesmos meses de 2018 e, no entanto, só está sendo lançado e apresentado ao grande público quatro anos depois, exatamente num momento histórico ao reverso daquele, com a derrota histórica do movimento de direita então vitorioso. Essa diferença temporal entre a produção do filme e sua recepção influi de sobremaneira na sua interpretação. Assim, se por um lado as marcas pessimistas do mau agouro estão presentes nos infortúnios e conflitos que se abatem sobre os personagens, também está presente um fio de sonho e de esperança que os conduz. Um elemento utópico se configura no sonho de Deivinho de participar da missão espacial marciana (projeto que existe de fato sob a direção de Elon Musk, o bilionário americano que comprou o Twitter). Mesmo que essa missão científica seja ela própria signo de uma grande catástrofe (a promessa de colonização de Marte se liga às condições cada vez mais inóspitas da existência no planeta Terra), ao se tornar objeto de desejo de um adolescente pobre da periferia capitalista seu lado negativo é invertido e o pesadelo se torna então sonho.

É este sonho que leva Deivinho a se colocar existencialmente e a construir, com seus próprios dotes de experimentador e com o material recolhido em ferro velho, um telescópio artesanal. Como disse seu diretor Gabriel Martins numa entrevista, Marte Um é sobre a “resiliência” do povo pobre e trabalhador das periferias brasileiras, colocados diante da severa adversidade histórica. É dessa resiliência que vem a força do sonho e do desejo. E é desta mesma resiliência que vem a força do cinema da cidade de Contagem, especialmente aqueles da produtora Filmes de Plástico. Já mencionei aqui em outro ensaio que o cinema de Contagem é um verdadeiro acontecimento, o maior da cinematografia brasileira desde o Cinema Novo. Contagem não produz filmes sobre a periferia com o olhar de fora. É periferia falando e retratando a periferia. Como diz Wellington ao final do filme: “a gente dá um jeito”. http://(https://diversosafins.com.br/diversos/dropsdasetimaarte-6/Os filmes de Contagem são também fruto da luta por sobrevivência periférica, e mesmo com o governo Bolsonaro, a produtora conseguiu produzir muitas obras. Marte Um é um desses “jeitos” estéticos que agora nos restitui o direito de sonhar com outro país.

 

 

Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor, doutor em Teoria Literária pela UERJ (2020). É autor de Capoeiragem (7Letras, 2013) e Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014). É organizador do Clube da Leitura, coletivo de prosa literária do Rio de Janeiro, atuante desde 2007 e foi editor das quatro coletâneas do Coletivo. É autor do blog Fabulação Especulativa e seus trabalhos acadêmicos podem ser visitados aqui.

 

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