Pequena Sabatina ao Artista

Por Jussara Azevedo

 

“Céu ausente” é o terceiro livro de contos de Gustavo Rios, autor revelado em 2007 na coleção Rocinante, da 7Letras, onde publicou “O Amor é uma coisa feia”, e fez parte de um time de jovens autores, surgido na internet, com o interesse comum em narrativas curtas.

A coleção foi inspirada no selo “Cantadas Literárias”, da Brasiliense, e dava vazão a uma geração com vigor criativo, habituada aos computadores e ao universo dos blogs e revistas virtuais. Clarah Averbuck, Julián Fucks, Carola Saavedra, José Rezende Jr. e Veronica Stigger são alguns dos nomes que, ao lado de Rios, se destacavam neste cenário e continuam fazendo literatura até hoje.

Se uma canção do grupo punk rock paulistana Kleiderman batizaria o seu livro de estreia, o interesse de Gustavo Rio pela música não se resumiria a simples homenagens e citações textuais. Durante os anos de 2008 e 2009, junto com os escritores Wladimir Cazé, Lima Trindade e Sandro Ornellas, ele participou do coletivo C.O.R.T.E., realizando diversos “rockcitais” (algumas dessas apresentações estão disponíveis no YouTube) ao lado da Pastel de Miolos, banda icônica da cena punk e hardcore soteropolitana, e escritores convidados (Kátia Borges, Paulo Scott, Katherine Funke, Nelson Magalhães Filho e Leonardo Panço).

Em seguida, pela Mariposa Cartonera, publicou “Allen mora no térreo” (2015) e, “Rapsódia Bruta – poemas e outras brutalidades” (2016).

Sobre “Céu Ausente”, uma coletânea de 13 impactantes histórias onde Rios aborda temas como casamentos fracassados, solidão, delírios amorosos, medo e tédio, o crítico Maurício Melo Júnior, em uma resenha publicada recentemente no jornal Rascunho, disse: “Enfim, a literatura é a causa primordial de Gustavo Rios. Há denúncias? Sim. Aponta injustiças, também, mas não lamenta a condição inferior de quase todos seus personagens. Descreve a vida, e ponto. Sem beletrismos parnasianos fez literatura. Tudo é literatura em suas narrativas. E certamente aí está sua mais perfeita qualidade como escritor.”

 

Gustavo Rios / Foto: Solange Valladão

 

DA – O título do seu novo livro, “Céu ausente”, sugere uma perspectiva em que o destino humano está imune a soluções transcendentes para os seus problemas e impasses. A que se deve essa visão? Há nela alguma influência do pensamento de filósofos como Camus?

GUSTAVO RIOS – O título surgiu de algo mais simples: um poema de minha autoria. Ao final dele, escrevi “(…) a beleza passa longe / desse céu ausente / de gaivotas.

O estado de espírito do cara que escreveu o poema era bem semelhante ao do protagonista do conto que intitula o livro: um garoto de bairro tentando se firmar num mundo hostil. Esse cara amava os beatniks, andava lendo Bakunin e sonhava em cair fora num navio. No conto, ele conversa com o pai numa noite de outono, depois de ter levado uns socos na rua sem motivo. E entre cigarros sem filtro, divagações, um livro do Artaud e a janela do seu apartamento, ele percebe que não terá muitas chances.

E aí vem a beleza de sua observação, pois o título diz muito mais do que eu mesmo pensei. Ele vai além da cena do conto; da força contida nele. “Céu ausente” significa, sim, que em alguns momentos nada poderá nos salvar. Que estamos à mercê e que andamos imunes a quaisquer transcendências ou redenções. Por aí.

Gostaria apenas de frisar que todos os outros contos não possuem a mesma intenção. Nem o mesmo estilo. E que os protagonistas que aparecem ao longo das páginas passam longe do tal garoto de bairro. Isso seria maçante para mim e para o leitor.

Temos o filho pródigo, o marido entediado, mulheres que amam acima de tudo e casamentos fracassados; temos um homem que encontra o amor de sua vida num parque e James Brown tentando decifrar um pesadelo. Temos também um sujeito se descobrindo numa noite de chuva e um casal que se reencontra no Japão.

O livro é uma tentativa de enxergar a vida partindo de vários pontos. Com isso, cheguei aos treze textos. Cada um com seu universo, sua estrutura e suas mensagens involuntárias, pois não acho que a literatura deva ter esse tipo de obrigação.

Em resumo, posso afirmar que “Céu ausente” é um belo título e diz tudo isso aí que você bem pontuou. Mas não é o único mote para o conjunto que surgiu.

Quanto ao Camus, creio que suas ideias atravessaram o tempo. E por serem poderosas, contemplam e contaminam parte da literatura feita ainda hoje, a gente goste ou não.

Não foi diferente comigo. Sua filosofia pode ter vindo até mim de forma indireta ou enviesada, e está tudo bem. “O estrangeiro” me marcou profundamente, assim como “O muro”, do Sartre — e ambos meio que jogam no mesmo time, sendo o argelino um excelente goleiro. Contudo, não me recordo de ter ouvido a sua “voz” durante meu trabalho. Não conheço profundamente os seus textos, o que é um grande vacilo de minha parte.

 

DA – Quando você adota o título do conto para o livro, demonstra o quanto essa imagem é potente, ultrapassando em muito o verso do poema. São novos contextos e significados a partir desses deslocamentos. Penso que, para além das mudanças de estilo, temas e perspectivas das histórias, “Céu ausente” também confere responsabilidade (consciente ou não) às escolhas de suas personagens. Estou errada?

GUSTAVO RIOS – Está certa. Falei sobre algo parecido em outras entrevistas. Sobre os meus personagens se encontrarem em situações limite e tendo de fazer escolhas, incluindo a de desistir. Essa ideia do limite é uma das características em “Céu ausente”. Não a única.

Meus personagens podem optar por nada fazer, pois escolher nem sempre significa agir, ou podem desejar mudar a vida drasticamente. Colocar o ser humano cara a cara com situações extremas é o tipo de recurso que admiro na literatura. Para mim, boas histórias possuem esse atributo.

Fugir de casa usando os olhos do Borges recortados de uma foto, ou colocar uma armadura para encontrar seu grande amor numa manhã de sol? Ficar na praia dos primeiros encontros e aguardar seus ossos virarem pó sob o efeito do salitre, ou se entregar a alguém numa noite de luxúria com “o azul mais puro represado nos olhos”? São escolhas feitas por cada um. Conscientes ou não.

E para cada um, uma falta, uma ausência; até mesmo do céu, das tais gaivotas. Dessa falta vem o deslocamento. Desse movimento para fora, o tal deslocamento, surge a impossibilidade que pode se converter num tipo de liberdade ou numa prisão.

Ao perderem qualquer tipo de esperança, meus protagonistas fazem escolhas. Sempre pungentes e irrevogáveis. Coube a mim trabalhar arduamente a linguagem e mostrar isso ao leitor.

 

DA – Essa condição limite, que você alude com precisão, também se faz presente nos seus dois livros de contos anteriores, “O amor é uma coisa feia” e “Allen mora no térreo”. Neles, você equilibra o peso dramático com doses de humor e muita ironia. Já em “Céu ausente”, eu sinto que o acerto da balança se dá pelo lirismo, um olhar menos judicioso em relação às vidas ali apresentadas. Você sente uma evolução ou amadurecimento no seu modo de narrar?

GUSTAVO RIOS – Com certeza. Essa maturidade deriva de diversos fatores. Uns óbvios e outros nem tanto. Dos óbvios, listo o mergulho em novos autores. Além das vivências pessoais em geral. Dos nem tão óbvios, acho que, com o passar dos anos, eu perdi a fé na ideia de que escrever é um processo “mediúnico”.

É uma ideia engraçadinha, mas explicável: durante muito tempo, acreditei que a escrita era um processo totalmente baseado em inspiração, nada mais. Acreditava que qualquer tipo de intervenção nesse contato com o “plano astral” arrancaria a carga emocional e vital de meus textos.

Nada disso! A linguagem é o veículo, digamos. É com ela que devemos trabalhar. Tratá-la com dignidade. Entender que o leitor é um outro. Diria até um objetivo, pois queremos ser lidos — algo diferente disso é ser um mentiroso patológico ou um louco; não cola esse papo de escrever para si mesmo. Precisamos encantar essa pessoa sem nome nem rosto. Fazer que ele nos siga e se comova.

Ao acreditar nessa mediunidade, o temor era perder o “caráter intenso e sufocantemente humano” de minhas histórias, usando aqui uma ideia do britânico E. M. Forster quando fala sobre o romance. Entretanto, aprendi que devemos “sacrificar o papagaio” algumas vezes. Coisa que o Poe fez lá atrás, ao trocar o papagaio pelo corvo (imaginem!).

Essa busca, que passa pelo trabalho com a linguagem, não deve nos ferir, todavia. Não aceito qualquer coisa pra agradar essa figura mítica, necessária, cruel e silenciosa. Temos de ter um limite, um acordo. Meus contos têm de estar encharcados de vida. Não negocio nada menos. Fora disso, escreveria coisas e as enfiaria na gaveta, numa boa. É preciso acreditar num tipo de harmonia, manter a vitalidade do conto e da história que é o motivo único dele surgir.

“O amor é uma coisa feia”, por exemplo, é de 2007. É enxuto, franco e menos lírico. Mas foi o meu melhor na ocasião, nada mais. Já o “Allen mora no térreo” tende a ser mais longo. Corri alguns riscos na busca de uma voz lírica adequada. E, bem, nem sei se consegui o que desejei em todos os seus contos, sendo bem franco. Mesmo assim, amo os dois. Assim como o de poesia, “Rapsódia bruta: poemas e outras brutalidades” e as participações nas coletâneas – falo dos contos “Ernest”, presente na coletânea “Tempo bom”, e “A noivinha do Cabula”, da coletânea “As baianas”. Todos eles são etapas de minha busca. Que só está começando.

 

DA – Acredita na máxima “é fácil escrever difícil e vice-versa”?

GUSTAVO RIOS – Para um escritor, será sempre difícil, ainda que ele deseje facilidades. E não me entenda mal; não se trata de dramatizar a coisa toda. Quero apenas lembrar que, onde há intenção e certo grau de transcendência, há trabalho a ser feito. Dificuldade, portanto.

Todo escritor nasce vocacionado, está sujeito a epifanias e tem seu olhar mais aguçado para o que supostamente é banal. Se ele irá converter esse poder em ofício e se denominar escritor, é outra conversa. Para ele, a literatura deve ser resultado de sua intenção. Sem intenção, nada feito.

Sou filho dos quadrinhos, da coleção “Vaga Lume”, da televisão, dos beats, dos fanzines, da música e do cinema. E tudo isso me levou a buscar a literatura. Em algum momento, entendi que escrever era maior.

Parte dessa escolha foi enxergar o real alcance da minha vocação. Foi quando comecei a escrever poemas, textos, roteiros de HQ nunca publicados e bobagens para, em seguida, tentar vencer alguns cânones, numa tentativa de aprimoramento. Lembro agora de quatro: António Lobo Antunes, Faulkner, Joyce e Cervantes.

O primeiro é fabuloso; parece reinventar a literatura a seu modo. É denso e inigualável. O segundo não foi tão complicado quanto parecia. Precisei, sim, de concentração e de entrega. Levei tempo, mas o admiro demais pela força de sua obra.

O terceiro, Joyce, ainda hoje luto com empenho — no caso do “Ulysses”; os outros foram devidamente lidos e admirados —, mas tento encontrar um caminho para chegar ao real motivo que faz essa obra repercutir até hoje. Já Cervantes, consegui vencer suas mil e tantas páginas, da tradução do Sérgio Molina, sempre curtindo e tentando captar a essência.

E, bem, por que eu lhe falo isso, mesmo correndo o risco de parecer um boçal? Digo pelo fato de que eu desejo enxergar o que cada um deles realmente buscava. Quais eram as suas intenções e como foi que eles conseguiram.

Então, respondendo a sua pergunta, creio que escrever será sempre difícil, no sentido de ser trabalhoso e árduo. Mas não enxergo isso como flagelo.

 

DA – Outro ponto curioso está no uso que você faz do tempo e do espaço da narrativa. A maioria dos seus contos dispensa a intriga, o enredo mirabolante e um efeito surpresa, concentrando-se na carga dramática das situações limites que já falamos. Há momentos que me remetem ao teatro. Você aprecia o gênero? É leitor de dramaturgia?

GUSTAVO RIOS – Aprecio o gênero e já li algo dos grandes dramaturgos e poucos contemporâneos, como o Artaud, citado no conto que dá nome ao livro, o Nelson Rodrigues, fabulosamente obrigatório para escritores, tudo da Hilda Hilst e o Matei Visniec. Quanto ao tempo e ao espaço da narrativa, fiquei intrigado com sua observação. Pois não me passou pela cabeça que eu poderia estar me aproximando de qualquer técnica de dramaturgia, seja ela clássica ou mais arrojada. Achei curiosa sua observação, por não enxergar muito de teatro no que faço.

 

DA – Quanto à matéria-prima de seus contos, a maneira como você descreve a vida e o cotidiano pequeno burguês, evoca para mim muito de Nelson Rodrigues. Em sua opinião, o que mais mudou na vida privada brasileira do século 20 para cá?

GUSTAVO RIOS – Na essência, quase nada. Continuamos hipócritas, temerosos, crédulos, esperançosos e egoístas. Traímos, buscamos a felicidade e sonhamos com dias melhores. Parte de nós deseja a Revolução Bolchevique — contanto que não invadam nosso quintal num belo domingo de sol e “churras” —, enquanto a outra espera que Jesus resolva finalmente voltar e, num singelo movimento de mãos, arranque todo o mal desse mundo, menos o praticado por nós.

Em resumo: a vida privada é uma fonte sem fim para escritores. Pode ser para um enredo, uma cena, um personagem. E o Nelson sabia se aproveitar disso. Devo muito a ele, sem dúvida.

O ambiente familiar do menino Cipriano, do conto “O encontro”, foi fácil de construir. Assim como a angústia do esposo em “Margherita”: quantos homens e mulheres não passaram por aquilo, e “ainda, ainda, ainda…” seguem casados? “Céu ausente” é meu pai, obviamente reconstruído para o leitor, enquanto “Cadelinha” poderia ter sido algum vizinho meu. Por sua vez, “Chuva para dois” é um apanhado de amigas e mulheres que conheci. E “O menino dança” tenta falar sobre a morte do garoto João Pedro no ano de 2020, no Rio de Janeiro, o único conto baseado numa notícia.

A vida privada me interessa na medida em que, por ser um tanto secreta, permite que nosso verdadeiro sujeito venha à tona.

Quanto a nossa evolução, acho que do século passado para cá evoluímos. Mas não o suficiente para nos tornarmos seres isentos de brutais contradições. Como falei acima: somos seres humanos. Continuemos!

 

DA – Como foi a experiência de estrear pela Rocinante, coleção da Sete Letras onde passaram diversos autores hoje badalados como Carola Saavedra, Julián Fuks e Ana Paula Maia, dentre tantos?

GUSTAVO RIOS – Foi minha primeira relação com uma editora. Até então, eu publicava em sites, blogues e em fanzines. E foi uma experiência bacana, um aprendizado. Parte da postura citada na outra pergunta veio desse momento: entender a importância de se editar, de selecionar, do corte, dos tais sacrifícios. Tive uma liberdade imensa no resultado final. Mas era algo discutido e proposto. O “bater do martelo” era meu, incluindo a ideia da capa.

Além do mais, foi um salto; o que chamam “furar a bolha”. O livro saiu nacionalmente, tendo sido divulgado em diversos jornais. Algumas resenhas surgiram, resultando em convites para publicação de outros textos meus. A Rocinante foi um marco. Tanto para mim, quanto para vários escritores, incluindo os que você citou. Tenho certeza que eles concordariam.

 

Gustavo Rios / Foto: Solange Valladão

 

DA – Você (e uma boa parte desses autores) migrou dos blogues, onde reinava total liberdade criativa, para as páginas impressas. Como avalia o papel das redes sociais como incremento para a independência do pensamento artístico na contemporaneidade? A internet foi domesticada aos interesses do capital ou ainda possibilita a rebeldia?

GUSTAVO RIOS – De fato, havia uma grande liberdade ali. Porém, como antes eu publicara fanzines, essa liberdade já me era comum. A gente podia roubar citações do Nietzsche, fotos do Duchamp e do Dali, bem como poemas do Murilo Mendes e do Chacal. Ao lado colocávamos nossos escritos, tirávamos cópias e isso era vendido a um real na Praça da Piedade; ou menos que isso, não lembro. O que o blogue nos deu foi um alcance infinitamente maior.

Quanto às redes sociais, digo que elas são ferramentas importantes. E pelo mesmo motivo dos blogues: alcance para qualquer artista, não só os escritores. No aspecto da independência, creio que as redes ajudam bastante, apesar de serem espaço para todo tipo de baboseira. Mas são meras ferramentas. Nada mais. E assim devem ser tratadas, iguais ao papel, as máquinas Olivetti, os fotocopiadoras, as impressoras offset, o lápis e a caneta. Só acho que não devemos acreditar piamente que esses suportes não sofrem vigilância e censura.  Daí essa liberdade pode estar comprometida.

 

DA – E depois, com a Mariposa Cartonera, como foi? Você já conhecia a proposta do movimento cartonero antes do convite? Alinha-se com as causas verde e ambiental? Nutre algum tipo de filiação política?

GUSTAVO RIOS – Filiação política, sim. Nunca a partidária. Aprendi com os anarquistas. Meu conhecimento dos ideais “anarco” me ensinou sobre essa estrutura de poder que muda a cara, mas não a essência. Mesmo assim, não acho que votar nulo seja um caminho. Ainda…

Fui contrário ao antigo governo, uma canalhada sem tamanho. E tenho votado na esquerda há décadas, esperando que ela aja como tal, apesar das evidentes melhoras de uma maneira geral.

No movimento cartonero, cada livro é verdadeiramente único. Pequenas obras de arte. Não só pelo conceito, mas pelo resultado final. “Rapsódia bruta: poemas e outras brutalidades” e “Allen mora no térreo” possuem capas fantásticas. Uma nunca sendo igual à outra; e isso é incrível – fora a encadernação e a proposta. Fiquei realmente lisonjeado com a chance de publicar dessa forma.

Sobre a causa ambiental, obviamente me alinho com suas pautas, por entender que, sem nenhum tipo de atitude, teremos um futuro terrível em todos os aspectos. E gostaria de ser mais atuante nessa luta.

 

DA – Você sente que seu trabalho tem alguma marca geracional? Identifica-se com alguma vertente da literatura brasileira realizada hoje?

GUSTAVO RIOS – Gostaria muito de dizer que não carrego marca alguma, e isso seria o máximo. Caso fosse verdade, eu seria uma bela exceção, quiçá um gênio – dois ou três degraus acima do restante do mundo, olhando já para o futuro, ou pra um espaço além do tempo.

Os anos, os fatos, a política e a vida em si: como fugir desse poderoso conjunto? Como negar que produzo e me comporto sob, e não sobre, a força dos fatos da história que não para de nos surpreender em seus repetidos erros? Seria prepotente e falso.

Uma geração pode compartilhar angústias, mas a resposta sempre carrega algo de pessoal. Dessa forma, creio que eu possa ter algo comum com outros escritores; não vejo problemas nisso. Contudo, e francamente, não consigo identificar padrões de trabalho com algum grupo. Ao menos na forma, pois as temáticas tendem a se repetir, independente da geração.

Toco no assunto da temática porque suspeito que todas as histórias já foram contadas. Do amor. Das viagens. Das guerras. Porém, pela forma de dizer, eu posso dar uma resposta particular. E com isso pretendo cravar algo meu na literatura. Sei que essa marca também é resultado de influências, de outros antecedentes. Mas não estou inventando a roda. Estou tentando embelezá-la mais um pouco, quem sabe.

 

DA – No conto “O menino dança”, você faz de James Brown personagem. Já em “Caso você fique”, a música de Jimi Hendrix serve como exemplo para uma vida ideal. Em seus livros, as referências musicais são constantes e nada gratuitas. Qual a importância da música pop na sua formação de escritor?

GUSTAVO RIOS – Em 18 de maio de 2020, o garoto João Pedro foi morto numa operação policial no Complexo do Salgueiro, no Rio. Os familiares só encontraram o corpo 17 horas depois. Por essa época, George Floyd morria asfixiado por um policial que colocou o joelho em seu pescoço, em Minesotta. Certa noite, enquanto eu escutava as duas notícias na televisão, por acaso rolava numa playlist “My Thang”, do James Brown. Assim surgiu a ideia do conto “O menino dança”.

“Caso você fique”, escrito há mais de uma década, foi resultado do término de um relacionamento conturbado.  Ela havia acabado de sair de meu apartamento. Resolvi que “Spanish Castel Magic”, do Hendrix, ajudaria a melhorar o meu estado. Sentei e escrevi a primeira versão. Os vizinhos não gostaram daquilo às sete da manhã de um domingo.

“Japão” foi totalmente inspirado numa música chamada “Polaroid”, da banda baiana “A Flauta Vértebra” (por sinal, título de um poema do Maiakovski). Depois do primeiro rascunho, foi só arrumar. “The Day After” surgiu depois de ter assistido “Amacord”; escutei Nino Rota, que não é pop, durante as primeiras versões.

Em resumo: dentre outras fontes de inspiração, a música pop é uma das mais importantes para mim. Mas não só ela: já escrevi poemas ouvindo Piazzolla, já criei contos ao som do Ravel, e o meu primeiro livro tem como título o nome de uma música, “O amor é uma coisa feia”. Uma pancada “roquenrol” de poucos minutos.

 

DA – E como se deu sua descoberta da arte? Recebeu algum estímulo na infância?

GUSTAVO RIOS – Não sei te dizer, com franqueza. Eu acho realmente que escritores nascem com a vocação. E que a seguem, com maior ou menor intensidade. Ou as ignoram e seguem suas vidas. Plantando tomates ou vendendo seguro de vida. Quanto aos estímulos, poderia citar aqui as revistas em quadrinhos que ganhava sempre de meus pais. Além de um punhado de amigos de infância que adoravam desenhar super-heróis tentando salvar o mundo em ruínas.

 

DA – Pra finalizar, conte-nos quais são seus projetos futuros. Está trabalhando num novo livro?

GUSTAVO RIOS – Sempre tenho contos para arrumar, além do esboço de uma novela que vai levar bastante tempo para ficar pronta. Preciso rever, cortar, essas coisas. Enquanto isso, continuo trabalhando duro na divulgação de “Céu ausente”, que é, sem sombra de dúvida, o meu melhor livro. Até agora.

 

 

Jussara Azevedo é carioca, graduada pela Escola de Belas Artes da UFRJ e cursa mestrado em Letras na USP.

 

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *