Samara Belchior
aos ecos há ecos. você os ouve? tranque-se no banheiro, escreva nos azulejos o que ouvir. há mais eco agora, o seu. nós escrevemos para nos ouvir, para tatear nossas experiências de dentro e de fora, para te entregar o convite de ser bicho, ficar com as unhas sujas, lembrar de terra molhada, rodar, plantar lantejoulas, evaporar no chuveiro, sangrar, desenhar camaleões, passar as mãos na ossatura do tórax, deixar-se marcar com tinta vermelha, aportar em silêncio depois de sentir arquipélagos nos cabelos.*
* texto produzido a partir de alguns poemas do primeiro livro do coletivo bidê, do qual sou integrante.
***
la cruz
o vento
colar na areia um nome santo
a pachamama
o vento nos seios
os continentes
colarem as areias
os capitães
o vento nos veleiros
os pés
dançarem a pachamama
a dança e um veleiro
o santo e um ventre
a pachamama
engravidar de petrolato
a gravidez
um capitão solto no vento
o santo
ser homem na areia
o batismo e o aborto
da pachamama
***
silêncio!
a vida como ela é
um arrastão pelo asfalto
porque não há mais terra
……………………………….não há mais pétalas de rosa nem para se bater numa mulher
é tudo plástico
a língua seca
não chove, nunca mais choveu
………………nunca ficamos em silêncio
deixamos
as árvores com troncos deficientes
comemos as omoplatas uns dos outros.
corcundas, nos arrastamos nas calçadas
em fileiras
nosso olhar em cascas
se deus nunca, nunca tivesse existido
no interior dos nossos peitos mancos
………………nunca nos calamos
matamos a semente de mato do nosso parto
estamos à deriva
…..se nunca tivéssemos sido os deuses do nosso peito
…..fomos deuses humanos
…..nosso banho é cinza, pixe
………………nunca fomos peixe e alga
………………nunca nos calamos
…..não chove, nossa voz cobriu o som dos tambores
………………nunca fomos pássaro
…..nossas moléculas endureceram
nem pele, nem pena
…..nem leito escasso nos quer
…..nossas moléculas empalharam a correnteza
………………nunca estivemos tão secos
***
dissecação
conhecer um corpo por dent
ro t
er um corp
o a ser conhecid
o por dentro separar as part
es para encon
trar a fisiolog
ia exig
e a mort
e e a mort
e não é bon
ita bonito é o c
orpo desmontad
o
***
australopithecus
isto não é uma dança
é o ringue dos tempos
mesmo meus pés com meias
porque você não dá seu
céu?
quando subi
me sustentei nas linhas
pra não te ferir
…..fiz bailarina
tentando equilibrar
meu ponto
você luta
com o quadril
até quando o ponto é meu
quando você subiu
desviei
mordi teus beiços
segurei de novo
de novo
na selva da língua
contra língua
foi um nocaute
você por cima
eu morangos
***
mata
à noite
cheira e sua
nome de mulher
na cachoeira
os bichos
não vou
…..vou lá
lisa
no pegajoso
…..a água leva
banha
os meus bichos
na falta do sol um céu
na falta…..o som
não há silêncio na selva
na
…..pedra ensebada
no
…..cabelo córrego
na
…..escama
no
…..musgo de iara
***
desnome
"As coisas perdidas ou inalcançadas foram as únicas que possuí" Maura Lopes Cançado
eu sou uma data
vasculho o interior dos tempos
em busca desse calendário
eu sou……………………….stella do patrocínio
clarice lispector
maura lopes cançado
sou uma terra…………..a pá
e a escavante
o artefato
a semente
regada das minhas mães
sou solo e indecisão
sou a reta que encurvou na batida
o trauma do acidente
…………………………………………a desorientação
eu sou a gagueira e a palavra nova que sibila
o defeito e ………………………………………… o espelho
Samara Belchior (1987) mora na Zona Leste de São Paulo, onde leciona na rede municipal de ensino. Foi aluna do CLIPE poesia (2021) e do poesia expandida (2022) na Casa das Rosas onde atualmente é aluna do CLIPE prosa. Cursou licenciatura em história pelo Prouni, licenciatura e bacharelado em filosofia na Universidade Federal de São Paulo. É autora de “bruxismo e outras automutilações” (Ed. Urutau) e “pra não ser de plástico quero ser bruxa” (Ed. Primata). Compõe o coletivo de poesia “bidê”. Se interessa por bruxaria, anatomia e coisas invisíveis. Tem dois gatos.