Janela Poética III

Wesley Peres

 

Foto: Magali Abreu

 

NA ORIGEM, SABIA-SE O NADA,
e saber era nada, e não havia véus,
e, por isso, tudo estava oculto.

E ocultuava-se o corpo com o corpo,
e o corpo, enrolado em papiro,
sendo o papiro feito do corpo.

Sendo o corpo feito papiro:

planura de inscrição de coisas,
das coisas, das fímbrias oscilações
constantes
da textura das águas
dos corpos, seus extratos de ares
ásperos.

Dizem que, na origem,
o corpo era todo línguas e lábios,
e havia matérias espécies, especiarias
cortantes, capazes de gravuras
sobre superfícies águas do corpo
e suas abismas quedas d’aves
estroçadas de tal modo que
até mesmo os antepassados
d’águas se arrepiavam
qual nuvem desaba do oitavo
andar d’algum sol há muito
nem servindo mais
a título de ocidentações
nem de orientações.

Na origem, sabia-se o nada,
e o destino é o outro nome para origem,
e origem é o outro nome para o destino.

 

E origem e destino são nomes outros
para esse imenso outro da palavra: o corpo.

 

 

 

***

 

 

 

ERMO DE UMA VOZ SOMENTE, O CORPO.

Inscrita no corpo
a palavra erra
os enormes abismos,
os entres do corpo:
aqueles que sim,
aqueles não
— são bocas.

Mesmo no beijo, há ínsulas,
mandíbulas sereias,
ruínas ruidosas,
pedaços, areias
de civilizações inteiras.

…….Anômalo orifício no silêncio do corpo, a boca

 

 

 

***

 

 

 

POR MAIS QUE PULSE,
a palavra,
trêmula pedra,
pulsa embaraçada na lei mosaica,
a que proíbe o derramar-se dos olhos.

A imagem denuncia o tempo no corpo,
enquanto, na palavra,
o tempo se redime,
conserva-se,
neste resinífero reino humano,
conserva-se palavra, apenas.

 

 

 

***

 

 

 

NO ENTANTO, HÁ MORTIFICAÇÃO
também na boca e na língua,
a palavra, quando preserva,
preserva porque mumifica.
Adivinha-se isso entrando
num estranho quarto
em que corpo e palavra frequentam-se
e frequenciam-se, imperativamente,
desde o final dos tempos.

Neste quarto, a lógica das paredes
— símile ao que um arquivo morto
sabe do mar —
pensa as papilas dos corpos,
pensando-as, sonha o sonho
de torná-las recortes de um sistema
nervural de conexões entre estrelas
e os ambíguos lábios do chão e da chuva.

 

 

 

***

 

 

 

AS PAPILAS DAS COXAS:
trilhamentos de vozes
chamando e soprando chamas
da carne, tremeluzindo,
como tremeu e luziu a carne
quando nela a vida soprada
qual a vela soprada pelo vento,
movendo os traços traçados
pela madeira riscando
a moura musculatura dos mares.

 

 

 

***

 

 

 

MORREMO-NOS, IMPERATIVAMENTE,
com nossas impérios de bolso,
com nossos deuses enrodilhados nos cabelos,
ou em pequenos códigos sensórios
qual um marinheiro suspenso
em dúvida
quanto a existência de céu e mar,
qual um homem indeciso
quanto a qual primeira parte olhar
do corpo da mulher que lhe
desloca a retina e as vértebras dos lábios.

 

Wesley Peres é psicanalista e escritor. Autor do romances Cartografias de um Doente dos Nervos (7letras, 2022), publicado com apoio financeiro do Itaú Cultural; Casa entre vértebras, (Record, 2007), vencedor do Prêmio Sesc de Literatura e finalista do Prêmio São Paulo – 2008, e As pequenas mortes (Rocco, 2013). E dos livros de poesia: Palimpsestos, vencedor do Prêmio Coleção Vertentes em 2007; Rio revoando (ECA- USP, 2003); Água anônima, vencedor do Prêmio Cora Coralina 2002 e O Corpo de uma Voz Despedaçada (Martelo, 2019).

 

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