Dedos de Prosa III

Paulo Zan

 

Arte: Zô

 

Um verdadeiro Dupin

 

Todas as coisas indicavam para a conclusão óbvia: o mordomo era o culpado!

Como eu sei disso?

Olha, vou lhe contar, caro leitor, como surgiram em mim as primeiras suspeitas e como essa conclusão pareceu-me tão óbvia que não precisei agenciar grandes esforços para chegar até ela. E pensar que o safado tentou colocar a culpa em mim, por conta da minha condição… vocês sabem, não é mesmo?, essa corja de pernudos sempre tenta colocar a culpa em quem tem pernas curtas.

O mordomo atende por nome Jerônimo e trabalhava na nossa casa desde que me entendo… enfim, há muito tempo ele trabalhava na casa, mesmo antes da minha chegada, e vocês sabem como esse tipo de coisa, me refiro a questão temporal e de convivência com os donos da casa etc., é levada em consideração quando de repente aparece um vaso quebrado e o safado aponta logo para quem é supostamente mais frágil e não tem condições de arguir em sua própria defesa.

Jerônimo era afobado, percebi logo. Mesmo ele sendo mais velho do que eu na casa, ele se sentia menos à vontade, pois estava em posição de subserviência, enquanto eu… eu já cheguei em uma posição que só era inferior a dos donos da casa, o doutor Omar e a sua senhora, a dona Matilda. Os dois, já velhinhos e sem filhos naturais, ambos aposentados e morando numa mansão enorme no Corredor da Vitória, decidiram-se por adotar-me. Foram, numa terça-feira de julho, até o… e assim que me viram não aguentaram. Disseram que eu olhava para eles feito quem pedia colo, como quem, abandonado pelo destino, encontrou a sorte nos braços de dois velhinhos. E me levaram, mesmo eu não podendo falar, sabiam bem disso, mesmo eu tendo pernas curtas… talvez eles até gostassem desse fato, posso supor porque não tiveram filhos… não queriam crianças correndo pela casa. Eu era do formato e do tamanho que eles queriam. A criatura ideal para preencher o vazio de dois velhinhos desfilhados. Sim, fiquei sabendo depois que já haviam tentado ter filhos, mas a dona Matilda perdera três bebês e resolveram não tentar uma quarta vez, seria uma grande dor, mesmo que previsível. Jerônimo passou por tudo isso com eles. O mordomo, quase tão velho quanto os dois aposentados, estava naquela casa há pelo menos três décadas. Eu só tinha doze anos na época, um menino na beira dele… perto dos meus: já quase um idoso. Segundo pensavam: minha memória já não era das melhores, talvez também minha atenção, por isso a conclusão precipitada de que o mordomo realmente estava certo e que, muito provavelmente, num vacilo, eu tenha derrubado o vaso. Cheguei a crer também nisso. Duvidei das minhas próprias faculdades, duvidei das coisas que eu via, mesmo minha visão estando em condições perfeitas.

Que covarde! Estou me eximindo das minhas responsabilidades por um simples orgulho felino. Martirizei-me por todos os cantos da casa e, na falta de ter com quem conversar, decidi investigar o caso. Falta talvez dizer a você, desocupado leitor, que se investiguei não foi só pela dor de talvez ser o culpado do crime… talvez você esteja pensando: ora, mas tudo isso por um simples vaso? No entanto, não era qualquer vaso, nele estavam contidos os resquícios de muitas vidas. Seu Omar e dona Matilda poderiam até inferir juízos sobre o assunto, mas a única coisa que faziam era lamentar. Poderiam muito bem, numa hipótese até justificada pelas ocasiões, dizer que o pobre do gato sentia ciúmes, que, sabendo haver dentro do vaso chinês de porcelana azul as cinzas dos fetos abortados, cogitava os mundos possíveis em que ele, desgraçado felino, não fazia parte dessa família. Pobre gato caduco, diziam ambos.

Passei a vigiar a rotina de Jerônimo, eu sabia que ele escondia algo. Seus olhos sempre baixos, como quem tentava se desviar dos próprios pés. Sua gola desajeitada… sorte dele que não era eu o patrão. Meus tutores não se importavam mais com essas coisas de aparências dos empregados. Bem lembrado! Eu não havia situado o leitor de que na casa, além do seu Omar, dona Matilda, Jerônimo e eu (que me reservo ao direito de anonimato, já que eu, cá de onde falo, também não posso saber as graças de quem me lê), também estava na casa e, noutra ocasião, talvez pudesse ser uma suspeita, a cozinheira Cida. Lá fora ainda tinha, na garagem, o motorista Dirceu e, no jardim, o jardineiro Alfredo. Todos os nomes são falsos, é claro, dado que não quero expor os dois velhinhos que me acolheram em todas as minhas necessidades. E por que não coloco também um nome falso para a minha persona?, você pode se questionar. Eu poderia deixar o meu impaciente leitor gastar suas unhas… mas isso é um pormenor que talvez valha mencionar. É simples, o meu anonimato é por pura força do drama, senão este que narra não seria eu, mas outro.

Jerônimo, como eu ia dizendo, andava sarrabieiro. Ele suava de nervoso perto de mim, e isso me deu ainda mais fortes indícios de que de fato ele teria sido o culpado. Eu, como não sou bobo, provocava-o. A todo canto que ele ia, eu seguia atrás como um gato sorrateiro, com o perdão da ironia… Calculei que estava próximo de encontrar uma brecha nas evasivas do sujeito, pois, com todo aquele nervosismo, ele vacilaria.

Ainda restava buscar por uma prova e, talvez a coisa mais importante, saber se o crime fora fruto de puro descuido ou se ele havia premeditado. Se premeditado, restava saber as motivações que moviam o mordomo ao ato nefasto.

Era já fim de tarde quando, diante do pôr do sol, ou das poucas frestas visíveis em meio a tantos prédios que surgiram ao redor de nossa casa nos últimos dez anos, quando fui atingido por um relampejar de sensatez detetivesca. As roupas!

Eu tinha noção de que o mordomo não lavava suas roupas de serviço, era Cida quem fazia isso no sábado. Ainda era sexta e resolvi investigar mais de perto. Assim que Cida descuidou-se, distraindo-se com um café que estava no fogo, avancei por detrás dela em sentido da lavanderia, supunha encontrar lá as roupas do malandro. Para minha fortuna, ele havia deixado na lavanderia as roupas do dia do crime. Logo me pus a investigar mais de perto. Dito e feito! Encontrei um caco na lapela do safado e tratei de planejar como faria para levar as roupas até meus tutores.

Depois de falhar ao tentar enganchar com minhas garras, abocanhei a lapela, que tinha gosto de suor, e arrastei até a sala. Antes tive que passar por Cida novamente, que, para minha felicidade, estava concentrada nas xícaras… Quando cheguei na sala e arranjei a cena para que fosse de fácil constatação que o culpado era na verdade Jerônimo, me senti um verdadeiro Dupin.

Os velhos ficaram chocados com a situação e, após alguns elogios acerca da minha esperteza na arte de desvelar as injustiças, me pediram os mais grandiosos perdões que eu já tinha ouvido em toda minha vida de gato. Não se enganem, tenho só uma vida e ainda dura em média só a idade de um reles adolescente. Por isso não posso gastar minha beleza explicando pormenores. Mas, indo direto ao ponto, eu tinha certeza que o canalha confessaria tudo e diria os motivos assim que chegasse, no outro dia de manhã.

Passou-se a noite. E quando Jerônimo chegou a arapuca já estava armada.

Primeiro ele chorou, de praxe. Essa gente chora por tudo, afinal. Depois, tratou de pedir desculpas por ter colocado a culpa no “gato”. Canalha duas vezes! Podia me tratar diretamente, mas preferiu ser indireto e ainda me chamou pela espécie. Eu não fico chamando os outros pela espécie…

Porém, até eu me senti um pouco mal quando o sujeito passou a narrar os ocorridos.

Ele disse que naquela noite o seu netinho de dois anos morrera de febre amarela, doença que estava atingindo muitos miúdos da região. Acabou que não dormiu bem, mas, como nunca em trinta anos tinha jamais faltado um único dia sequer, resolveu trabalhar assim mesmo. No vaivém pela sala, depois de algumas xícaras de café, vacilou e esbarrou no vaso. Como a primeira criatura que passou pela sua mente foi eu, ele resolveu me acusar do mal feito. Entretanto, andava se remoendo desde então e estava decidido a se desculpar e revelar os pormenores, disse isso passando a mão pelo meu corpo, em sentido de desculpa.

Depois disso, ele suspirou e disse que estava tudo bem se quisessem despedi-lo. Os velhinhos se entreolharam e não disseram nada por um bom tempo. A situação estava estranha. Senti que talvez realmente cogitassem despedir o sujeito. Resolvi também agir.

Pulei no colo de Jerônimo, que agora estava sentado aos prantos e eu, mesmo sem ter mãos e com minhas pernas curtas, rocei em seu corpo buscando acalentar a sua dor, ser para ele, por um momento, o que eu havia sido toda a minha vida para aqueles dois velhinhos. Depois olhei para meus tutores diante de nós e dei um miado, como que dizendo: vejam este homem chorando a morte do neto e o peso da responsabilidade de ter derrubado o objeto mais importante da vida de dois velhinhos.

Dona Matilda foi a primeira a sorrir, depois o seu Omar.

Eu, ainda no colo do mordomo, dizia a mim mesmo: não pode ser mal sujeito este homem tão emocionado.

 

* Publicado originalmente no livro “Linha tênue” (Margem, 2022).

 

Paulo Zan é o nome artístico de Paulo Alexandre Trindade Freire, (Rio de Contas-BA, 1999), graduado em Filosofia e mestrando em Literatura e Cultura  pela Universidade Federal da Bahia. Já publicou os livros de contos Linha tênue (Margem, 2022) e  Trapaças (Caravana, 2023). Participou das antologias “Pacote de Textos” (Org. Rafael Caneca, 2021) e “Acaso literário Vol. 1” (Org. Simone Campos, 2021).  É apresentador do podcast Orgulhoso Cast.

 

 

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