Janela Poética IV

Camila Passatuto

 

Arte: Zô

 

Enquanto recolho o que é real e apinho esquissos de corpos incovenientes, a ronda cinza do alheamento contabiliza as dores.
Apesar da infame fuga ministrada a cada conjunto vil de tempo, entendo os meios poéticos dos dias.
Trancam meu eu.
Libertam, dizem,
O que me é espírito.
Café, clozapina, saliva e mulher.
Envolvo verbos por aliterações travadas e ninguém se importa.
E tudo faz sentido
Quando os pulsos
Doem
No apertar
Das cordas.
Recolho o que é real e turvo, amor. Socorro.

 

 

***

 

 

Rupturas, cores quentes, risos hiperbólicos, pálpebras arrancadas.

E continuavam a galopar pela cidade, sem objetivo de ser. Dedos mornos, pele azul, olhos secos, crianças fatiadas.

E a cerveja descia travada, a malandragem apoiada em solavancos de grades-janelas, nada tinha rumo, rima, remo ou graça.

Alguns diziam sábado
Eu gemia quarta
Foi-se dia de fim
Gritou a moça.

Mais um dia.

 

 

 

***

 

 

 

Você disse que meus olhos de exu danam as vielas dos que passam por mim.
Eu recolhi o troco que espalhava um prateado tímido no balcão estreito de um bar caro. Retruquei em dar o último gole no drink exagerado e pueril para meu paladar.
Escorri as mãos para o alto, no percalço de matar a gravidade em ti.
Você, beata dos cálculos imaturos de fim de mês, vênus assustada na cela dos cães raivosos, imaculada na nudez dos seios firmes. Disse que meus freios falham sempre na última curva, no verso exato de salvação.
Os tiros, que nascem no crânio de alguém, longe daqui, batucam em meus tiques nervosos na perna esquerda. E ninguém abençoa os filhos do medo em noites mal cultuadas.
Você insiste em imprecar os maldizeres ao meu olhar.
Das culpas vermelhas que estendo na varanda, os véus que cobrem o descontrole matinal é o que me alinha ao mundo.
Desculpa.
Abandono o lugar que me entedia.
Atravesso ruas avulsas, como quem desbrava o próprio peito à procura de alma.
– Meus fantasmas se afogam na minha bebida. Versam dos meus gritos o gênesis de uma nova era. Ninguém escuta. –
Você disse que meus olhos de exu enxergam a morte em tudo, minha linda.
Ela. Morta em 1937, La Paz. Ainda não sabe do desencarne.
E diz, ao desviar dos carros, que sou sua guia.
Somos a literatura do caos
No ventre das pontes
E gosto de chão
Na boca quebrada.
Na paz
Ralada
Na fuga
Dos torturadores.
Extremos e roucos.
Laroiê,
Meu amor.

 

 

 

***

 

 

 

O zimbro inocente dos quereres, por maviosidade do caos, fez germinar, no antro da civilização seca, um olho em broto, um encabeçamento de era.
E as crianças despertaram mais cedo, os dentes rasgaram a fome de pão, pés tortos marcharam liberdade e senhoras se tocaram rubras em praças públicas.
Um olho em broto, um encabeçamento de era.
E ela fumou um último cigarro, afastou as cortinas como se fossem mechas de moça, adentrou um fino espasmo de nós e foi correnteza por toda cidade.
Meu olho em broto, meu encabeçamento de paz.
E as crianças abriram caminho
E meus poemas ruíram o mal
E tudo era ritmo, aliteração,
desculpa pra mar.

Flufenazina e um tanto
de Rhapsody in Blue.
E tudo começa, amor.

 

 

 

***

 

 

 

Lama

 

Não quero escovar tempo
ou mesmo injuriar
tuas pernas
alguém tacou fogo
na lixeira da esquina
e vi deus
comburente
afetado
descalço entre as moscas
agitadas pelo calor.
– é outono –
Não quero bravejar
sou cria à toa
de condoimento
exagerado
e quebro os dentes
amarro os dedos.
Ontem
alguém lambeu
minha ira
e vi o diabo
exaltado
colostomizado
aformoseado no brilho
dos destituídos.
Hoje
fodo a testa
no barranco
– é outono –
minhas meninas,
no sustentáculo
de choro, miudam
acalmo o tempo.
escovo palavras frias.
é dia
após dia.
Alguém tacou fogo
na lixeira da esquina…

 

 

 

***

 

 

 

O monstro corre no tosco riso salivado, nos olhares de homens afervorados pela maldade infértil do comum e por vapores de ideias abortadas em assembleia geral.
Oremos.
O monstro instala seu verde ruído em vozes metálicas, nas vagas salinas do bairro médio de uma cidade média capada à miséria de capital lúcido.
Compremos.
O monstro fode a lógica dos desavisados no ritmo de um roteiro aborrecível no ato lânguido de poder.
Morremos.

Postula o que te é rebelde
No verso seguinte
Da escrita
Laica
E mata
O ignavo
Da língua cortada
Pelo homem histérico
Liberta-te
O verbo
Morto
Na manhã
Do teu fim.

Voltemos.

 

Camila Passatuto (1988) nasceu em São Paulo. Autora dos livro “TW: Para ler com a cabeça entre o poste e a calçada” (Ed. Penalux, 2017) e “Nequice: Lapso na Função  Supressora”. Escreve desde os 11 anos e desde 2007 participa de diversas antologias e revistas culturais com seus poemas e textos.

 

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