Julia Sereno
teste
meu corpo faz perguntas o tempo todo
mesmo sabendo que as respostas estão escondidas
debaixo do tapete que meu coração esqueceu
na sala de espera.
a visita não veio mais uma vez
***
espelho
juntou todos os caquinhos
um
por
um
e com eles cortou o silêncio dos dias
que calados não faziam mais sentido
***
rota
suspiro de medo
e alívio
ou será apenas meu ar
comprimido
que escolhe
em silêncio
deixar meu peito doído
e levar um pouco
do tempo perdido
para onde eu consiga
respirar
***
ano-novo
fincou os pés molhados no passado.
levantou os braços dormentes de aperto.
abriu as mãos secas de carinho.
fechou os olhos cansados do ruído
***
meio
desloco-me e
atravesso
do avesso
retorno e
parto
mas não preciso
chegar a lugar nenhum
o entre-lugar é meu
***
ela
a dor escreve o texto
e logo se desespera
desalinhando os cabelos
descamando a pele
a dor exige ser lida, recitada,
engolida
e depois reescrita
pela autora do não
***
pressa
hoje a minha espera acordou inquieta.
saiu apressada sem se olhar no espelho.
até o café esqueceu de fazer.
queria encontrar as pistas antes do fim do dia.
mas elas estavam cansadas e não disseram nada.
seguiram caladas sem olhar para os lados.
pois o caminho de casa mudara outra vez
Julia Sereno é natural do Rio de Janeiro, mas vive em Lisboa desde 2020. Doutora em Literaturas de Língua Inglesa pela UERJ, é professora e tradutora. Publicou o seu primeiro livro de poemas, “As Outras em Mim”, em 2022.