Por Fabrício Brandão
MILTON NASCIMENTO E ESPERANZA SPALDING – MILTON + ESPERANZA
A passagem do tempo vai revelando em nós camadas difusas através das quais a vida se dilui e transcorre. E se já não somos mais os mesmos de outrora, talvez consigamos preservar acesa em nós a chama de certos sonhos, estes que foram arroubos de juventude ou que ainda representam algo significativo no campo da contemplação, bastando apenas que consigamos conceder-lhes sentidos ativos.
De todo modo, a coleção de vivências que experimentamos pode estar inscrita em nós até os ossos, delineando reminiscências, o gosto de uma pretérita existência desfrutada com intensidade ou certa dose de romantismo. Pode ser também expressa num desejo de futuro a ser construído não como mera condição de espera, mas como movimento dinâmico de busca.
Imagino que as linhas acima possam traduzir um pouco do que a escuta do álbum Milton + esperanza demonstra sugerir. Se a voz já não empresta aquele vigor do passado, Milton Nascimento deixa impregnada nesse mais recente disco a sua alma, uma esfera da existência importante que, apesar das investidas limitadoras do tempo rei, não subtrai desse momento o amor pela música, senhora esta que povoa as paisagens da vida do artista desde sempre, oferecendo-lhe um manancial de imagens sensíveis e provocadoras.
A produção desse disco deveras especial é de Esperanza Spalding que, convidada pelo filho do compositor numa conversa informal quando da turnê de despedida de Milton dos palcos, topou a missão. Mas o ingrediente que se soma a essa tarefa é o fato de que a artista tem uma enorme admiração pela obra dele, tendo já gravado coisas do músico, dividido palcos, estreitando uma relação de amizade que sabidamente já dura alguns bons anos. O resultado dessa parceria materializa agora um projeto cujo apuro está tanto no esmero com a produção e arranjos, mas sobretudo pela condução vocal que os dois parceiros de jornada souberam fazer nas 16 faixas.
Os caminhos iniciais do disco sinalizam para a importância transformadora da música. Que o diga a primeira faixa, “the music was there”, que, funcionando como uma espécie de intro, mostra um Milton a revelar o quanto a sua veia compositora se vale daquilo que emana das imagens que o povoam por dentro e por fora. Esse gesto confessional é testemunhado como o registro de um diálogo em que as reações de Esperanza são marcadas por sonoras e suaves risadas e suspiros de concordância. Vale ressaltar que esse clima de conversa entre os dois artistas também se estende a outros momentos do disco, como é o caso das trocas que aparecem em “outro planeta”, parte em que Milton enaltece tudo o que o motiva a compor: amizade, amor, crianças, o mar, a vida.
Logo na sequência, difícil não se emocionar com a roupagem dada à majestosa “Cais”, cujo arranjo consegue preservar a essência definidora da canção. Na curta “Late September”, visualizamos a assinatura artística de Esperanza como se representasse uma pequena demonstração da verve jazzística contemporânea virtuosa da musicista.
“Outubro”, originalmente gravada no belíssimo Courage (1968), segundo disco da carreira de Milton Nascimento, atravessa as dobras do tempo com um ânimo novo, mas sem abrir mão da ambiência poética que lhe é característica. Ao lado de Esperanza, Milton preserva a intensidade existencial que torna a canção uma das composições mais representativas de sua obra. Trata-se de um olhar profundo sobre o lugar do sujeito no mundo, a coleção de lembranças, ações e imagens que o permitem esboçar a partida rumo a um porvir envolto em mistério, quiçá aquilo que denominamos por morte sem ter certeza de absolutamente nada. A faixa, com seus belos requintes jazzísticos regados ao marcante contrabaixo acústico de Esperanza, bem como piano e flauta, nos lembra que, antes de mais nada, estamos ocupados mesmo é de viver.
“A Day In The Life”, icônica composição dos Beatles, vem embalada pelo suave diálogo entre violão e piano, harmonizando as vozes de Milton e Esperanza à atmosfera central da canção. Nesse sentido, a proposta original da música permanece, divisando o arranjo em esferas distintas de intensidade. E tal gesto é deveras necessário, pois as subidas e descidas da música são sua marca inalienável, como um mosaico de cenários difusos agora ainda mais recheados pela escolha de sua base instrumental.
Há um sentimento pueril rondando “Saci”, cujas gargalhadas de Milton ao final da faixa marcam o espaço brincante da canção. Diga-se de passagem, tal emblema de espontaneidade parece mostrar uma intenção deliberada de captar a atmosfera descontraída e leve que povoou a feitura do disco.
Em “Wings for the Thought Bird”, mais uma vez a marca pessoal de Esperanza, com sua potencialidade instrumental confere tons especiais ao trabalho. E o destaque aqui está principalmente nos vocalizes com os quais a cantora atravessa toda a faixa.
Mas vejamos que “Earth Song”, emotiva e, por que não dizer, filosófica letra de Michael Jackson, ganha uma roupagem mais lenta, jazzística e povoada pela interpretação de Diane Reeves cujo potencial dota a música de um lirismo especial. Assim, do ímpeto original da gravação do rei do pop, o crescendo da canção permanece até que tudo se resolva em leveza ao fim. Uma delicadeza sem par com a participação de Milton nos vocais.
Cabe lembrar que tanto a composição de Michael quanto a dos Beatles foram escolhas especiais de Milton. De resto, Esperanza teve a liberdade de selecionar o repertório do disco, imprimindo nesse rol de opções os reflexos de seu enorme apreço pelo universo sonoro do artista, atitude confessadamente amorosa da musicista.
Sem dúvida uma das maiores composições de Milton, “Morro Velho” surge revisitada com todo o requinte de piano e da luxuosa contribuição da Orquestra Ouro Preto. Nela, a voz de Milton ganha beleza e dialoga com a de Esperanza com toda a pulsação de uma entrega recheada de sutilezas sonoras. E é isso que o arranjo escolhido imprime à canção, agora contemplada com uma atmosfera marcada pela leveza.
“Saudade Dos Aviões Da Panair (Conversando no Bar)” é uma rica reunião das vozes de Milton, Esperanza, Maria Gadú, Tim Bernardes e Lianne La Havas, todos irmanados num tom que reforça a alma fundante da composição. Aqui, a opção pela inserção dos vocalizes em coro logo no início da canção, além de subverter a ordem original da música, gravada em 1975 no brilhante álbum Minas, trouxe uma atmosfera diferenciada como se antecipasse o apogeu que se consolida no fim da música.
E que tal um Paul Simon cantando em português junto com Milton? Assim o é em “Um vento passou (para Paul Simon)”, faixa que evoca a fortuna da amizade como um legado que concede valor à vida marcada pelo impacto das memórias. “Coração se aqueceu/Agora ao lembrar de você/Amizade é um dom/Que precisa merecer/Nesta vida, nesta história/Não esquecer/O silêncio é o som/Que não cabe mais no ar/(…), diz um dos trechos.
No começo deste texto, falei um pouco sobre sonhos, essa perspectiva que todos trazemos de algum modo como sendo a ponta de um iceberg em sua quase totalidade inexplorado. E mais do que meras aspirações e preces ao porvir, eles talvez possam se configurar como o anseio de uma entrega ao oceano do desconhecido, corpos e mentes velejando pela imensidão dos mistérios humanos. E faz jus a esse complexo de sensações a última faixa do disco, a requintada e jazzística “When You Dream”, composição que prima pela abundância sonora, cujas intensidades vocais e instrumentais encerram bem a jornada aqui proposta.
Milton + esperanza é um disco muito bem cuidado, soma de energias que se integram pelo propósito mais genuíno da música, qual seja o de provocar em cada ouvinte esferas múltiplas e também singulares de percepção. Acima de tudo, é um álbum construído pela força dos encontros entre gente que tem apreço por gente, colocando no ponto mais alto das apreciações o amor e a amizade.
Fabrício Brandão é editor da Diversos Afins, sonhador, míope, baterista amador, gosta de labutar com as palavras e de construir enredos para os espantos existenciais.