Marlos Degani
PLACEBO
Incomodado no seio da tarde morna,
entre o arquivo em branco e a encosta
do morro, mesclada de cinza e ardósia,
caio novamente na ilusão de uma rota
imaginária, no enredo que me transporta
às curvas da sua neve quente que alojam
a inédita encarnação deste corpo utópico
parindo a perfeição no sal dos meus suores.
Mesmo aqui de longe, posso ouvir as notas
da água contra os seus ombros sem ossos
e fotografo todos os leitos que ela percorre
durante o banho que invento antes da morte.
Por que o poema? Sua ausência é mais forte.
***
RANGIDOS
É seu o que restou da minha fogueira e da fumaça
que entoa a dor e a música das dobradiças da casa.
Irei assisti-la entre intimidades… E sobre os lados,
abrirei os meus cadeados enferrujados que faltam.
Antes de despertar, serei o seu dia, o chá, a torrada
Petrópolis, o vento de fora e a nuvem almiscarada
das seis; serei a sua folha de outono, o seu mágico
no final da manhã, no beijo das onze: o seu atraso
claro; um grito silencioso ou aquele vapor abafado
ao deitar na sua rua e me asfaltar no seu passado.
E virá a tarde: e serei seu; a noite e a madrugada,
e serei seu, todo, enquanto for a nossa temporada.
***
CHORUME
Quando, por fim, acharem entre os meus destroços A caixa-preta, saberão que mais trágico que a minha Própria morte, foram os poemas Que morreram comigo João Dinato
E quando acharem os meus destroços,
a caixa-preta não dirá apenas
da tragédia que são os não poemas
ou filigranas que foram a óbito,
dirá dos truques, das obsolescências
— do desdém, do medo e desses códigos
salientes, rasos e mentirosos
em que pus o amor, entre correntes.
Haverá sinais de entorpecentes,
do corpo e alma fantasmagóricos,
de quem nunca teve fé e enforca
a poesia desde a nascente.
E quando acharem os meus destroços,
serei o fedor que sobe dos ossos.
***
Sou aquela chuva muito intensa
Caio no mar, não faço diferença.
Esse sem sombra, não marca presença,
Insosso, não esfria, nem esquenta.
Cézar disse: só uso um esquema.
Eu respondi: é a mesma sentença,
Desde quando fui preso na algema
Do mundo feito de papel e pena,
Da sinfonia muda de nascença,
Do ofício que não pede licença.
Ser poeta é a antiessência
Da cor onde a luz se movimenta.
A palavra, meu reino, em mim reina
No verso que nunca será poema.
***
INSUFICIÊNCIAS
— 23h15 —
Ensina-me um grito. Ou um suspiro
que reconduza à corrente da janela,
a paleta de escuros do meu espírito,
este voo solo permitido para o poeta.
Repara: em tudo o que reza equilíbrio,
há, entre os lados da linha, o convívio.
E às altas horas desta noite, e à espera
do milagre improvável de algum verso,
defloro a folha de poeiras e de fuligem
(mas sempre será pura e intrometida).
O morro é musgo. O céu não sei ainda.
***
OUTRA HISTÓRIA NATURAL
I.
Cinomolgos usam cabelos feito fio dental.
Há tubarões que navegam pelas estrelas.
O Louva-a-deus orquídea é quase branco.
E o tal do poeta não é o que pensamos.
II.
Há primatas exclusivamente carnívoros.
Colmeias sem rainha não produzem mel.
Adolf Hitler pertencia à raça dos humanos.
E o tal do verso não é o que pensamos.
III.
Tiranossauros Rex não eram solitários.
Golfinhos diferentes não são sociáveis.
Cobras e lagartos planam no pântano.
E o tal do poema não é o que pensamos.
Marlos Degani, Nova Iguaçu/RJ, é jornalista. Lançou o seu primeiro livro de poemas chamado Sangue da Palavra em 2006 e que conta com a apresentação do poeta Ivan Junqueira, imortal da Academia Brasileira de Letras, falecido em 2014. Em setembro/14 lançou o segundo volume de poemas chamado INTERNADO, também pelo formato e-book, disponível nas melhores livrarias virtuais do planeta. Em 2021, pela Editora Patuá, lançou o seu terceiro volume, chamado UNIPLURAL. Participa como poeta convidado da edição número 104 da Revista Brasileira, editada pela Academia Brasileira de Letras, lançada em janeiro/21, ao lado de grandes nomes da literatura brasileira.