Aperitivo da Palavra II

Desventuras de uma alpinista social         

Por Roberto dos Santos

 

 

Estas linhas tratarão sobre Quem falou?, de 2023, lançado pela Editora Penalux, romance de André Cunha, experiente romancista, novelista e cronista brasiliense, indicado por esta obra como semifinalista da modalidade romance literário do Prêmio Jabuti de 2024. Quem falou? é descrita pelo autor como uma “comédia romântica inteligente”, o que nos parece fazer jus a uma parcela de filmes do gênero. De fato, sua história se revela uma narrativa despretensiosa, mas competente na pesquisa que se vê por trás do mudo apresentado, sejam as locações e vernáculo catarinenses ou o mundo de negócios na área sanitária.

O romance é escrito em primeira pessoa, uma história com “altas doses de cinismo e uma franqueza brutal”, como bem define Francyne França, na orelha da primeira capa. O enredo é ambientado em Santa Catarina, alternando os cenários entre Jurerê Internacional, Balneário Camboriú e a periferia de Florianópolis. Nele acompanhamos Rebeca Witzack, que está mais para uma anti-heroína do que para simples mocinha caracterizada pela ênfase em virtudes. A protagonista é levemente detestável e, na medida em que é apresentada, vai nos cativando com sua humanidade. De personalidade inconstante ao longo do romance, passa por uma montanha-russa de acontecimentos, flutuações de humor e vício em ansiolíticos.

A maré dos acontecimentos e veredas abertas pelas escolhas da protagonista nos conduzem a uma busca por autoconhecimento, algo que ela não faz conscientemente, já que na maior parte da trama apenas se satisfaz com sua beleza padrão e com relações nos círculos de elite e da fama. A heroína assim é humanizada por sua personalidade ambígua e saúde mental volátil em tempos de adoecimento coletivo – sim, a história se passa em meio à pandemia de Covid-19 –, além de uma severa endometriose.

Rebeca inicia sua jornada “comprometida com um e grávida de outro”. Depois de ser exposta em um vídeo erótico vazado na rede, transforma esse revés em oportunidade, aproveitando a fama para se tornar colunista de um portal de notícias. Mergulha então numa vida de futilidades como seu El Dorado existencial, negligenciando camadas mais profundas de si mesma. A protagonista usa de expedientes escusos para colher vingança, projetando uma imagem de mulher empoderada. Contudo, acaba por não cuidar das feridas que o episódio da exposição lhe causou.

Justamente no período pandêmico, durante o qual fica encastelada numa cobertura em um dos cenários mais paradisíacos e elitistas do país, usufruindo da la dolce vita, mais ela se afasta do autoconhecimento e autocuidado, apesar do suporte financeiro, da segurança privada e dos testes rápidos de Covid à disposição. O leitor e leitora são convidados a acompanhá-la em tudo, a observar os atos mais inconfessáveis que a protagonista leva a cabo, mas a esta parece sempre faltar o olhar sobre o que realmente está se processando dentro de si. Para reforçar essa autoalienação, recorre à medicação controlada, como se a bioquímica dos fármacos pudesse preencher os vazios existenciais.

A protagonista vive desventuras em busca das aparências, do conforto, do luxo, circulando entre figuras proeminentes do mundo empresarial, musical e desportivo. Nesses momentos, o livro nos brinda com referências a celebridades nacionais para, ao final, abraçar outra perspectiva de vida.

A narrativa sobrepõe acontecimentos dos mundos externo e interno da protagonista, com direito a comentários de crítica musical sobre um dos maiores ícones da música brasileira, Chico Buarque. Também é utilizado o recurso de notas de rodapé que devem ser lidas concomitantemente e enriquecem a narrativa. A questão da saúde mental se mostra fio condutor subterrâneo que só encontra sua resolução dramática ao fim dessa leve, mas nada rasa aventura.

As notas de rodapé podem parecer enfadonhas, mas cumprem seu papel e trazem revelações sobre a personagem. Além disso, a parte de jargão técnico sobre a tecnologia de testes de Covid pode desagradar algum leitor pelo espaço que ocupa no texto, mas acreditamos que é necessária para dar maior verossimilhança. Traz informação e há leitores que certamente apreciarão o carinho dado a essa parte de pesquisa.

Ao início da obra, a protagonista afirma que só queria amar e ser amada e, na procura desse objetivo único, chegou a vender a própria alma e trilhar caminhos tortuosos em busca de um lugar bonito na fotografia, esquecendo de cultivar o amor por si mesma. Mas, como heroína de comédia romântica, após toda uma rocambolesca trama de autossuperação, encontrou o que verdadeiramente precisava no príncipe encantado do amor próprio e no afeto verdadeiro pelas coisas simples, depois de muito ter sido beijada pela lona até despertar do sono enfetichado em que caíra.

 

Roberto dos Santos é professor do Instituto Federal de Brasília e escritor. Publicou o livro de poemas Nomear é Preencher o Vazio (Editora Trevo), além de prefácios e participou de coletâneas. Foi finalista na categoria crônica do Prêmio Off Flip 2023 e nas categorias conto e poema no Prêmio Off Flip 2024.

 

 

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