Janela Poética IV

Anna Lúcia Maestri

 

Ilustração: Nicole Marra

 

dois dias

 

num dia acorda-se tarde depois de
se ter aprendido tudo com a cedura das manhãs

num outro dia acorda-se e já terá partido
o seu cão
e só muitos dias depois é que seus pés
aprenderão a se acostumar
com a ausência
de outras patinhas no caminho até o sofá

num dia acorda-se e descobre-se que
a mãe existe
e agora você finalmente tem
para onde voltar
mas o pai continua por se descobrir
quem sabe um outro dia
numa terça ou quarta-feira
de um fevereiro ou dezembro
e sabe se lá deus de que ano

num dia acorda-se e o mundo já terá engolido
a casinha azul onde mora a infância

e mesmo assim
com tantos números quanto o
calendariozinho na geladeira
é capaz de suportar
vive-se dois dias apenas
um em que as coisas todas estão
e outro
em que há muito já ficaram para trás

 

 

 

***

 

 

 

dos pequenos caprichos

 

esconder-me pequena
da lua cheia
descobrir a caligrafia
das vizinhas
aceitar a cartografia bagunceira
de um ipê

pequenos compromissos
com o capricho que é viver

fazer do chuveiro
cachoeira
reclamar de uma ou outra
obrigação
deixar-me aqui a ver
o tempo dos morangos

pequenos caprichos
com o compromisso que é viver

 

 

 

***

 

 

 

como iniciar uma conversa

 

encontre por aí uma formiga.
apenas uma é o bastante por hora.
mas lembre-se que
encontrar uma formiga não é pegar uma formiga.
encontrar uma formiga não é comprar uma formiga.
encontrar uma formiga não é tornar sua a formiga.
ou, como é ainda absurdamente muito comum,
encontrar uma formiga não é,
sob qualquer hipótese, matar uma formiga.
então pergunte à formiga o que ela faz pra se divertir.
acompanhe-a por alguns dias e quando, evidentemente,
não obtiver resposta alguma,
pergunte à pessoa mais próxima

o que as formigas fazem pra se divertir?

 

 

 

***

 

 

 

deixar que uma coisa leve a outra

 

queria escrever em voz alta
manifestar meu anti-manifesto
atirar-me sem artilharia
deixar ir a ideia brilhante
que nem ao menos brilha
nada que interessar possa
ao desinteressantes medos
dar aos dedos
alguma coisa nova
talvez isso,
navegar nas novidades dos dias
tentar diálogos
com os caprichos do tempo
com o diacho das folgas
com o bicho que é meu fôlego
deixar que uma coisa leve a outra
poupar-me do pouco que sei
até não sobrar soberania alguma
alugar algum lugar em que
eu possa estar livre em mim
sem fincar bandeiras
presumir que fugi
fingir que não sei do que se trata
desfazer os tratos comigo
e mesmo assim,
seguir sentindo tudo pelo caminho
e que meus caminhos se resolvam entre si

 

 

 

***

 

 

 

outro dia
passei pelo mundo e vi
Começo e Fim
com seus focinhos esfregados
um contra o outro
um carinho sutil

um carinho
sutil
é capaz de consertar
de coreografar
as linhas do tempo
até que deixem de ser linhas
até que se tornem
danças do tempo
caleidoscópios do tempo
crianças do tempo
pequenos brotos de cenoura do tempo
marés do tempo
acrobatas do tempo

até que deixem de ser linhas do tempo
e se tornem
acrobatas
do tempo

 

 

 

***

 

 

 

o belíssimo espetáculo inimaginável do sonho
chega ao mundo
de perto, bem de perto
lê-se apenas que
é expressamente proibido olhar
pela cortina.
então,
feito criança, espia-se

 

Anna Lúcia Maestri é poeta e educadora, tem 24 anos e nasceu em Santa Catarina. “Tapetes são cidades de dançar” (ed Devir Poesia e Prosa, 2024) é sua obra de estreia na poesia, que cativa novos ares através da imaginação, profundidade, bom humor e encantamento com o que há de pequeno e grande em nosso cotidiano, um olhar sensível cultivado também no trabalho com as crianças pequenas. Atualmente, mora em São Paulo e divulga seus ofícios através das redes sociais.

 

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