SOBRE MENINOS E HOMENS
Por Gustavo Rios
Gosto de Amora, publicado em 2019 pela Editora Malê, é um livro com 15 contos divididos em duas partes. Nele, Mário Medeiros nos mostra, entre outras coisas, que a verdade, a proximidade com a vida e um bom bocado de talento podem nos trazer muito mais do que uma simples leitura.
Mário, que além de escritor é doutor em sociologia pela Unicamp, parece se valer da própria vivência para produzir seus contos. Todavia, diante do que li, posso dizer que esse recurso não se aproxima da chamada autoficção – aqui considerando o conceito do Doubrovsky -, servindo apenas para dar a medida exata das suas verdades. Verdades que passam pela realidade de milhões tais como ele, sendo Medeiros um homem negro num país essencialmente, terrivelmente e estruturalmente racista.
Já pela parte gráfica, concebida pelo talentoso artista paulistano João Pinheiro que, entre outras coisas, foi ganhador de prêmios pelo seu trabalho com a Hq Carolina, uma parceria com a escritora Sirlene Barbosa, Gosto de Amora já nos mostra para que veio. E para aonde quer ir e estar.
Linguagem
Nas 146 páginas da obra nos deparamos com uma linguagem simples e direta. As histórias se baseiam na vida de pessoas que muitas vezes trafegam num mundo invisível. Num tipo de invisibilidade que extrapola o enfoque “social”, negando-os até mesmo a própria perspectiva ao contar suas histórias.
Ao entrar como homem e indivíduo nos textos, o tom supostamente confessional enriquece o trabalho. Assim, além da leitura propriamente dita (a que se prende ao estilo, a linguagem, ao ritmo e a beleza; ao texto em si), Mário nos oportuniza duas coisas: a de conhecermos e/ou confirmarmos uma realidade terrível que berra ao nosso redor, e a de podermos enxergar que, dentro de uma coletividade, existem indivíduos; cada um com sua voz e com sua, importante dizer, subjetividade.
O olhar do leitor extrapola o entendimento, ou mesmo a lembrança fundamental de que, como sociedade, estamos apressados indo para um abismo, apesar das generosas lufadas de esperança decorrentes da última eleição. Porém, essa necessária visão do todo (as pessoas no geral), deve nos comover a partir do uno (uma pessoa: uma vida e, por que não dizer, um coração).
Como exemplo, descrevo um belíssimo trecho do conto “Meias de seda se esgarçando”: “Eu escrevia, no meio da tarde, no meio da sala. Era um domingo. Ela apareceu do nada. Eu, inocentemente, perguntei se havia dormido bem, se estava se sentindo mais disposta. A tudo ela respondeu que sim. Ambos sorrimos. Sabíamos que, do contrário, iriamos nos ferir mais que há três horas, quando tentáramos, mais uma vez o amor.”
Crianças e homens
Novamente me valendo da professora Mariana (sem ela eu seria incapaz de fazer esta resenha), no livro também podemos ter a ideia de nos depararmos com contos infantis, “dentro dos moldes ocidentais”.
Em “Fábrica de balas”, por exemplo, Medeiros já nos mostra suas intenções. No conto o personagem sofre, transita em sua comunidade, encara a miséria ao redor, se relaciona com amigos e com suas próprias angústias – e devemos entender angústia como algo muito além das dores do tipo existenciais, mas que, ainda assim, são calcadas no privilégio de poucos.
O que era para ser doce, ao menos de forma sugerida da bala, vira enjoativo, numa realidade em que a fábrica produzia “balas que (o protagonista do conto, Rubi) não podia chupar, balas que não podia pagar no mercadinho de merda ali perto da favela (a não ser quando as recebia de troco, fato raro, pois sempre tinha o dinheiro contado).”
Uma fábrica “velha, feia, suja, fedida, cuja chaminé – preta, para variar – deixava sair aquele cheiro doce e enjoativo, impregnando todos os cantos, todos, todas as roupas, todos os narizes.”
O trecho abaixo deve confirmar a ideia de que Mário Medeiros não está para brincadeiras:
“Às vezes o Preto Rubi agradecia por não tomar café, porque no barraco da dona Maria Baiana, ela, a filha, o genro, o filho da filha dela, enfim, todo mundo parecia ter as tripas soltas à noite toda, fazendo tudo num barraco só. E como era o primeiro barraco ao lado do córrego que ficava perto da ponte por onde Rubi passava…bom, como era o primeiro barraco, tinha uma espécie de escadinha por onde às cinco e quarenta e cinco, pontualmente, alguém jogava o líquido feito chocolate quente no córrego. Às vezes aquilo dava nojo no Rubi Preto e ele cuspia de lado. Antes, quase vomitava. Depois de dez anos, nem isso”.
Notem no parágrafo acima: Mário trabalha de uma forma simples, como se conversasse conosco. Ideia reforçada pelo uso das reticências e da repetição proposital que se segue (“…bom, como era o primeiro barraco…”), recurso que se mostra fundamental para o bom andamento da cena.
Família
A relação com a família também é outro tema recorrente. E não poderia ser diferente. Medeiros muito nos comove com suas descrições de uma “mão preta, grande, gorda e boa” que o conduzia do portão até o “Grupo Escolar.” Ou mesmo de sua vó, conforme outro belíssimo trecho abaixo:
“Eu adorava seus cabelos brancos e bem penteados, trançados para trás. Seu cabelo branquinho e sua pele preta lisa. Sua voz arrastada e seus olhos vivazes. Vovó. Vó. Vó Paina. Vó desbocada, Vó palavrão, que me ensinou vários, cabeludos feitos suas madeixas largas. Vó Paina que, ao tombar, um dia, derrubou todos nós, deixando um vazio tão grande.”
Da relação familiar, à relação com a comunidade ao redor, Mário nos mostra que, grosso modo, a dinâmica familiar também existe na relação com o outro. Seja o amigo de infância ou mesmo com as pessoas de um bairro. Para exemplificar, sugiro a leitura do conto “Pau, panela, apito”.
A maturidade
Assim, confirmo a ideia de que Gosto de Amora é o trabalho de um escritor maduro e talentoso. Um artista que não vai permitir que lhe determinem o espaço e as escolhas individuais: ele seguirá falando sobre o que desejar, seja algo “coletivo” ou íntimo; ou as duas coisas juntas. Por escolha própria, esse mesmo autor também não deixará de se assumir como parte de um todo, no que podemos chamar e literatura negra e periférica – que conta com outros nomes, tais como Allan de Rosa, Ferrez, Nelson Maca e Fábio Mandingo, entre tantos outros e outras (os nomes citados priorizaram homens de estilos bem distintos, mas com algo em comum; ao menos na minha visão).
A viagem individual de Medeiros é grandiosa pela própria natureza. Mas abarca diversas outras vozes. E isso o torna uma grande pedida. Sem dúvida.
Gustavo Rios é baiano e autor do livro Céu Ausente (Cepe Editora, 2023), dentre outros.