CURTÍSSIMOS CONTOS
Gladson Dalmonech
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Haveria poesia sem palavras? – Pensou ele, chegando à praia, de madrugada, sol quase nascendo. Depois, despojou-se da mochila com os livros, da garrafa de vinho pela metade e das roupas. Em silêncio, mergulhou naquele instante em que a onda se ajeita pra escrever poemas obscenos na areia.
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Os ponteiros do relógio avançavam como cães ferozes no tempo. Ele a esperava, mas ela não veio. Nem nunca mais viria. Uma hora e meia e sete cigarros depois, só o que restara dela era aquele isqueiro vagabundo, com os dizeres “eu te amo”.
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O cara o esfaqueou e correu. O outro caiu na calçada, em frente ao bar. Saí da mesa, última cerveja, fui ajudá-lo. “Você tem um cigarro?” – ele perguntou. Acendi e passei pra ele. “Nem precisa chamar a ambulância. Entendo de facas”. – e deu uma tragada funda. “Apenas fique aqui comigo. Morrer sozinho é foda”. Sentei-me ao seu lado e ficamos ali, mastigando o silêncio da espera. Lá longe, o destino assoviava uma canção no vento da madrugada.
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Ele acolheu o sorriso dela numa foto. Lá se iam trinta e cinco anos daquele clique. E a guardou, em preto e branco, no meio das páginas de um livro surrado. Hoje, arrumando sua velha estante, ela voltou à tona – mesmo doce sorriso – quando a foto, num escape da cela das páginas, mergulhou no piso do escritório. A saudade lhe acenou do retrato. Iria visitá-la. O manicômio não era muito longe.
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Voltou da missa, foi pro quarto, tirou a roupa, fechou os olhos, desceu os dedos. O padre novo da paróquia não era coisa de Deus.
(Convivo com Gladson Dalmonech há 47 anos. Ele, que é professor universitário de comunicação e mestre em Estudos Literários, vive às esfregas com as palavras. Sujeito estranho, ganhou o II Concurso de Contos da Playboy, em 1998, e desde garoto tem essa mania de rabiscar suas loucuras onde der. Agora mesmo escreve seus Curtíssimos Contos no Facebook. Não é fácil conviver com ele. Eu já estou preso dentro dele há tanto tempo que até me esqueço que ele tem dupla personalidade)
Densidade, surpresa no desenrolar de uma prosa tanto mais poética quanto mais surpreendente pela sutil ironia e despojamento de uma simplesmente discreta solidariedade que nao apela para referências consagradas – mas até que podia.
Rápido e brilhante como um cometa, a duradoura cauda ofuscando as retinas da memória…